NUNO GONÇALO POÇAS, ADVOGADO E ESCRITOR

‘À direita, não houve nenhum líder como Francisco Lucas Pires’

por Maria Afonso Peixoto // Março 22, 2024


Categoria: Entrevista P1

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Prematuramente falecido aos 54 anos, em 1998, Francisco Lucas Pires é hoje um dos históricos do CDS-PP, a par de Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Adriano Moreira. Mas deixou sobretudo um legado de intelectual, visionário, percursor da direita liberal em Portugal que o advogado e escritor Nuno Gonçalo Poças quis perpetuar através de uma biografia. Para esta extensa biografia do antigo presidente do CDS-PP, que se destacou também como eurodeputado, o seu biógrafo acompanha a vida de Lucas Pires desde que o político conimbricense veio ao mundo, em 1944, até à data da sua morte. Com este O Príncipe da Democracia, Nuno Gonçalo Poças pretende ressuscitar o pensamento e ideais de Lucas Pires para o debate público.


Francisco Lucas Pires foi presidente do CDS-PP e teve um papel importante na direita portuguesa, mas não é um nome tão sonante como Sá Carneiro ou Adelino Amaro da Costa, por exemplo. Ainda assim, a sua relevância política é comparável?

Eu não tenho bem a certeza das razões pelas quais ele não é tão lembrado como o Sá Carneiro ou o Adelino Amaro da Costa. Consigo imaginar… As pessoas quase que ainda se lembram mais do Adelino Amaro da Costa do que do Freitas do Amaral, por causa da questão da morte; acho que tem mais a ver com isso. E o Lucas Pires também não foi assim tão recordado pelo CDS porque saiu do partido. Portanto, acho que isso também pesou um bocadinho. Mas, de qualquer das formas, diria que o legado político e partidário, e até mais mediático, do Lucas Pires não é comparável ao de Sá Carneiro, de Mário Soares, de Freitas do Amaral ou até o do Álvaro Cunhal; porque foram as figuras de destaque num período, não de transição, mas de afirmação da democracia. Por isso, apesar de tudo, Lucas Pires foi, politicamente, uma figura mais secundária, e só se tornou uma figura de primeira linha quando se tornou presidente do CDS, pela própria inevitabilidade da posição que tinha. Contudo, intelectualmente, filosoficamente e ideologicamente, acho que ele foi, para o campo da direita democrática, muito mais importante do que qualquer um dos outros.

Era um política que valia sobretudo pelas suas ideias?

Sobretudo por causa daquilo que pensava e escrevia, e da maneira como o transmitia. Mas se hoje olharmos para aquilo que foi o programa político da coligação PàF em 2015, do PSD em 2011, e do CDS em 2011, em 2009, em 2005, e em 2001-2, quando o Durão Barroso foi candidato a primeiro-ministro, que tinha um programa mais liberal, e até para o programa da Aliança Democrática [AD] em 2024, não é muito diferente daquilo que era o programa do Grupo Ofir de 1985 – a matriz está lá toda. Depois, há uma série de propostas em concreto que são adaptadas aos tempos, mas a matriz ideológica vem sobretudo dali. E acho que o grande mérito dele é esse, e por isso é que também acho que é importante recuperá-lo. Para quem quiser perceber qual é o campo da direita democrática, ideologicamente e politicamente, e sobretudo numa altura em que a direita se voltou a abrir mais à direita, digamos assim, acho que é importante recuperar a ”fonte” disto tudo. Obviamente que não foi o Lucas Pires que inventou o liberalismo, mas…

Nuno Gonçalo Poças

Se fosse vivo, acha que ele poderia identificar-se com um partido como a Iniciativa Liberal?

Acho que não.

Porque apesar de ser da direita liberal, tinha ideias mais conservadoras?

Sim; e antes de mais, o Lucas Pires era católico e tinha uma presença cristã muito forte na vida dele. Acho muito difícil colar um rótulo ao Lucas Pires; é mais fácil dizer que era uma pessoa de direita, e que era liberal, mas isso é uma simplificação muito grande daquilo que era o pensamento dele. Porque acima de tudo, acho que foi um actor político intelectual mais do que a maioria dos políticos foram. A maioria dos políticos que tivemos foram mais intérpretes do que actores, e ele foi um actor e um criador.

Lucas Pires já defendia, por exemplo, a criação de um Tribunal Constitucional.

Sim, ele defendia a criação do Tribunal Constitucional já antes do 25 de Abril. E ele tem também um texto interessante sobre o poder local e a maneira como as autarquias se organizam.

Onde até critica o Partido Socialista?

Sim, e aquilo é um texto de 1976 que continua actualíssimo, porque não mudou rigorosamente nada. Todas as críticas que ele fazia naquela altura continuam actuais.  E esse pensamento parte de uma base liberal no sentido em que, para o Lucas Pires, toda a base do pensamento é o homem enquanto centro da actividade política.

A tal antropocracia que defendia?

Exactamente; a ideia da soberania do Homem antes da soberania do Estado. Por exemplo, em relação a essa questão do poder local, [ele] parte desse princípio da soberania do Homem e da maneira como as próprias cidades e comunidades são organizadas, e de que o homem é o centro do poder político. E, ao mesmo tempo, parte de uma matriz quase social-cristã daquilo que ele acha que deve ser a organização de uma sociedade. Portanto, há aqui uma mistura de influências e também um lado criativo que o leva a apresentar propostas, na maioria das vezes, antes do tempo; antes delas sequer chegarem a ser equacionadas ou implementadas. E estamos a falar de coisas com 10, 20 ou 30 anos de antecipação, e que a maioria delas continua muito actual. Acho, por exemplo, que não teria havido a revisão constitucional de 1982 sem ele; não teria havido o fim do Conselho da Revolução e o regresso dos militares aos quartéis sem o seu papel e sem a força do pensamento dele; e não teria havido a revisão constitucional de 1989, com o fim da irreversibilidade das nacionalizações e a liberalização do sector económico. Portugal também não teria aderido à moeda única sem o papel que ele teve. Talvez tivesse aderido à Comunidade Europeia porque foi uma coisa um bocadinho mais consensual, mas ainda assim, o papel dele foi bastante importante. Em 1974-75, ele era das poucas pessoas que, de facto, entendia que Portugal já estava num bloco europeu e que Portugal devia ser um país europeu. E nessa altura, o país ainda não estava propriamente aí; uma boa parte das pessoas achava que Portugal devia estar sob a esfera da União Soviética, e outra parte do país – talvez uma minoria mais ruidosa – achava que Portugal devia estar na rota do Terceiro Mundo, quase.

Era um europeísta convicto, e nesse aspecto, até se distanciou de uma direita mais nacionalista?

Ou de uma direita mais soberanista, que apareceu quase por oposição a ele. Ou seja, se calhar, há uma inversão de termos. Mas acho que o europeísmo dele também partia exactamente desse princípio da soberania do Homem e não da soberania do Estado. E no fundo, ele achava que a construção de uma democracia europeia não podia ser uma democracia com um cariz tecnocrático, e que o Parlamento Europeu devia ter muito mais relevância, muito mais força e mais competências; muito mais poder decisão do que tinha, e até ainda do que tem hoje, precisamente com base nessa lógica – o Parlamento Europeu era, de facto, quem representava o povo europeu directamente, e não os governos representados proporcionalmente no Conselho Europeu.

Acha que ele veria com bons olhos a União Europeia actual? Corresponde ao modelo que ele defendia?

Acho que não. Isto é um bocadinho contrafactual e tentar-me pôr na cabeça de uma pessoa que morreu há 25 anos, e já aconteceram imensas coisas que ele não viu. Mas, tendo em conta aquilo que ele pensava e que deixou escrito nos últimos anos, acho que ele não teria deixado de ser um europeísta.

Ele defendia uma União Cultural da Europa, certo?

Sim, e percebia que a Europa podia ser um mercado único, mas não podia ser só um mercado único.

Era apologista de um Estado federal da Europa?

Não era bem um Estado federal. Acho que, mesmo aqui, reduzir o Francisco Lucas Pires a um federalista também é um bocadinho redutor; porque a visão dele para a Europa é uma visão absolutamente criativa e inovadora, que foge a essa disputa dos soberanistas e dos federalistas. Ele percebia que conseguia afirmar uma espécie de nacionalismo através de uma federação de Estados, numa lógica em que Portugal estaria muito mais representado no espaço europeu, no Parlamento Europeu, do que não estando lá. Ou seja, num mundo em processo de avanço da globalização e de grandes blocos políticos, económicos e até militares, ele percebia que a grande força da Europa dos portugueses só podia ser veiculada dessa maneira. E há algumas coisas interessantes. Por exemplo, aquilo que ele dizia relativamente à necessidade de a Europa ter um poder militar por ela própria e não ficar dependente da NATO, e da importância que isso tinha relativamente àquilo que a Rússia podia vir a sentir à medida que a NATO se ia alargando a Leste – é uma coisa muito interessante, e não é um texto, foi um relato oral que ele fez para uma rádio em 1995. 30 anos depois, estamos exactamente aí.

E ele começa a divergir do CDS, e sai do partido, em 1991, em colisão com Manuel Monteiro, que tinha uma visão muito mais eurocéptica?

Ele sai do CDS ainda antes de Manuel Monteiro ser presidente. Ele percebe que o CDS, para continuar a existir naquela altura, tinha de passar a ser outra coisa completamente diferente. Portanto, percebendo que o rumo do CDS só podia ser esse e que ele não se identificaria com ele, resolve sair. E depois, Manuel Monteiro foi eleito presidente e apostou numa política um bocadinho mais soberanista, contra o Tratado de Maastricht, que até acaba por ter sucesso eleitoral. Porque em 1995 o CDS recupera muitos deputados que tinha perdido em 1987 e 1991.

Quando Lucas Pires esteve à frente do CDS, entre 1983 e 1985, as eleições legislativas não lhe correram muito bem.

Sim, em 1985. Mas depois foi candidato às eleições europeias em 1987 e teve um bom resultado. Houve eleições legislativas e europeias no mesmo dia e o CDS, com ele, faz uma campanha quase unipessoal, e para as europeias consegue 16 ou 17%, e nas legislativas, no mesmo dia, tem só 4%. Houve claramente uma divergência eleitoral muito grande. E em 1987, como dizia José Miguel Júdice, ele era visto quase como o político do século seguinte. Era a pessoa mais fresca, que trazia mais novidade e mais adaptada ao tempo e àquilo que o futuro aparentava ser.

E também sofreu um bocado precisamente por ter esse lado visionário, foi mais incompreendido?

Eu acho que isto é uma coisa muito triste de se dizer, mas em política, normalmente, quem tem razão antes do tempo não ganha nada com isso. Mais vale não ter razão do que ter razão antes do tempo. Mas isso também é o que o distingue, porque o Lucas Pires não foi só um político – foi um político e um intelectual ao mesmo tempo. E não houve muitos. E ele conseguiu sê-lo, ainda por cima, à escala Europeia. Acho que a grande dificuldade dele tem um bocadinho a ver com isso… O Jacinto Lucas Pires [filho de Francisco Lucas Pires] disse-me que ele sofreu sempre um bocadinho porque na política foi sempre visto como um intelectual, e no campo académico mais intelectual, foi sempre visto como um político. E as pessoas em Portugal tendem a deixar estas coisas mais estanques, divididas em caixotes – um académico é um académico, não vai para os jornais dar entrevistas e para as ruas distribuir panfletos, ou discursar para o Parlamento e coisas do género. E na política é exactamente a mesma coisa; parte-se do princípio que um político não está a reflectir sobre o futuro e sobre a organização do Estado, porque, no fundo, está a resolver problemas do quotidiano. Nós criámos um bocado essa imagem e acho que também se percebe isso à medida que se acompanha o percurso dele e o percurso do país: criámos a perspectiva do político como uma espécie de intérprete, de um executante, um director-geral.

Um burocrata?

Sim; um tecnocrata, um burocrata, um director-geral que é eleito em vez de ser nomeado ou escolhido por concurso. E que é uma coisa um bocado estranha. Quando se fala da profissionalização da política, acho que é um conceito mais difícil de se materializar… Quer dizer, o Lucas Pires fez política desde 1976, ininterruptamente, até 1998. E podia-se considerar, nesse sentido, que seria um profissional da política, embora não tivesse feito só política; foi jurisconsulto e continuou a dar aulas, etc. Mas a profissionalização da política não tem tanto a ver com o tempo que se dedica à actividade política em si; tem a ver, sobretudo com a forma como ela é exercida. E acho que, nesse aspecto, ele nunca foi um profissional da política. Tal como também foi um líder que nunca teve um ”ismo” atrás dele – o ”pirismo” nunca existiu. Embora houvesse piristas, talvez; pessoas que lhe eram muito leais e que o seguiam com muita dedicação. Mas o pirismo enquanto doutrina, quase como o cavaquismo, o suarismo, ou o passismo, acho que nunca existiu. Porque o Lucas Pires tinha essa condição de personalidade; no fundo, era alguém que prezava a liberdade acima de qualquer outra coisa, e isso incluía necessariamente a liberdade dos outros e o respeito pela opinião dos outros. E esse tipo de personalidade torna muito difícil que uma pessoa seja líder de um movimento seguidista.

No livro até se diz que ele tinha um “tique do contraditório”.

Sim, e há uma expressão engraçada que ele tem sobre isso; dizia que a política e a vida, no fundo, era quase como ter uma laranja na mão, uma coisa esférica, e aquilo vai-se rodando e o propósito é mesmo esse: ficar a olhar para uma coisa, rodá-la e perceber que ela pode ser vista de vários prismas, de várias maneiras. E não há uma maneira absolutamente mais certa do que a outra. E ele conseguiu afirmar as suas ideias e, ao mesmo tempo, ter essa noção de que a opinião do outro era importante. Era por isso, também, que ele tinha o hábito de ler os jornais do Avante ao Diabo; e de tentar perceber a perspectiva dos outros, até como fórmula para enriquecer as suas próprias ideias e, depois, tentar responder a isso.

Era alguém que fazia pontes e era até amigo próximo de comunistas, como Vital Moreira, e de pessoas que tinham visões muito diferentes...

Sim, mas acho que isso até na faculdade já se notava muito.

Conseguia não ser ostracizado pelas esquerdas?

Sim. Aliás, se fizermos um balanço, até acho que, durante muito tempo, talvez a esquerda o tenha admirado mais, embora tenha discordado sempre dele. E a direita, embora tenha concordado mais com ele – embora nem sempre – o admirava menos.  Porque – e talvez esta expressão não seja a mais correcta – ele era menos fiável, no sentido em que não era um chefe de claques. E as pessoas na política gostam muito disso – de sentir que aquela pessoa é um chefe de claques, e não é alguém que está lá para fazer perguntas, para interrogar e fazer ver o outro lado. E é uma qualidade que eu aprecio particularmente – se alguém está com mais de 20 pessoas à mesa, e disser A, e toda a gente a seguir também disser A, eu provavelmente faria o mesmo: teria necessidade de dizer ”então e se fosse B?”. E ele tinha essa capacidade, mas, politicamente, eu percebo que isto possa não ser uma grande vantagem comparativa.

Mas ele nunca se importou com isso, não tinha uma ambição tão grande de ser um político profissional, como disse, e de ter cargos de maior destaque?

Eu acho que ele teve essa ambição. Aliás, acho que ele foi talvez o único presidente do CDS que teve a real ambição e perspectiva de liderar o maior partido à direita. Talvez tenha sido mesmo o primeiro presidente do CDS que quis ser primeiro-ministro e não vice-primeiro-ministro – mas exactamente por causa da necessidade de afirmação das suas ideias; por acreditar que aquilo em que tinha pensado, as propostas que tinha e as ideias que tinha desenvolvido com outras pessoas, deviam ser implementadas. E, na verdade, muitas foram. Embora não tenha sido, obviamente, apenas mérito dele porque houve muito mais pessoas envolvidas nos processos.

E foi também coordenador da primeira AD.

Sim, embora esse lugar tenha sido um bocadinho vazio de conteúdo; foi quase oferecido para o manter dentro sem lhe dar demasiado gás – para usar uma expressão mais corriqueira.

Mas, de qualquer maneira, as suas ideias foram fazendo caminho?

Eu acho que fizeram sempre; embora muitas delas, ainda não. Em boa parte, acho que o legado político-ideológico do Lucas Pires ainda está por cumprir – ao nível das estruturas do Estado, mas também ao nível das estruturas mentais do próprio país, ou da comunidade portuguesa. Há uma série de coisas que estão por cumprir.

E quais é que destacaria?

Há uma expressão engraçada, que não sei se é bem dele, mas que acho que fica muito clara em 1985, quando ele se candidata contra o Cavaco Silva. Ele parte do princípio, em quase tudo – mesmo naquilo que é mais discutível – que para o ser-humano ser o mais livre possível, isso traz necessariamente uma responsabilidade acrescida. Portanto, que as pessoas são directamente responsáveis pelos seus actos, escolhas e decisões; e não é o Estado que decide, escolhe e pensa em função delas. Não é o Estado que decide aquilo que as pessoas devem ou não fazer, ou ambicionar. E acho que a vitória do Cavaco em 1985 foi muito por causa disso – porque ofereceu uma visão alternativa a essa, que fazia quase um intermédio entre aquilo que era a visão mais estatista do PS – porque o PS na altura também tinha virado muito à esquerda com Almeida Santos – e do PCP, com a visão mais liberal do CDS. Portanto, aquilo que o Cavaco garantia é que o país podia sofrer uma mudança suave. E esse discurso até voltou um bocadinho, recentemente. Acho que o Cavaco corresponde muito mais àquilo a que eu chamo as pequenas ambições do português médio, e o Lucas Pires estava noutro patamar: aquilo que queria dar às pessoas era total liberdade e total responsabilidade. E acho que continuamos ainda nesse ponto; não somos um país com especial apreço pela liberdade e por assumir a nossa própria responsabilidade. É sempre mais fácil ter o Estado, o burocrata, alguém a decidir aquilo que é melhor para nós, para depois, nós podermo-nos queixar de outra pessoa, e não de nós próprios. Por isso é que digo que, em termos estruturais, da mentalidade colectiva, isso continua por mudar. Tal como também continua por mudar outra coisa de que ele falava: a necessidade de uma revolução cultural para acabar com a “mendicidade rica“, que era a cultura do compadrio e das cunhas. Como vemos, as coisas continuam exactamente na mesma. Mas acho que nunca chegámos aí, também porque o país, e o Estado, nunca fez alterações políticas institucionais que permitissem fazer com que esse espírito de liberdade fosse mais comum do que é.

Ele também criticava a importância excessiva que se dava aos líderes, e não àquilo que efectivamente se queria para o país.

Sim, a pergunta do quê, e não do quem. E nós estamos sempre a perguntar pelo quem. Acho que isso ainda hoje é muito evidente. Continuamos sempre a ver quem é o candidato mais simpático…

Ou o mais carismático…

Sim, o mais carismático, aquele que está melhor nos debates, ou aquele que está pior… No fundo, não há uma discussão séria sobre aquilo que os candidatos, ou os políticos, defendem.

Olha-se mais para a embalagem, não tanto para o conteúdo.

Exactamente; discute-se o rótulo mais do que o produto, como dizia Lucas Pires.

E como surgiu este título? Porque é que Lucas Pires foi o príncipe da democracia?

O título surgiu num brainstorming. Eu tinha uma lista muito grande de títulos e não estava especialmente contente com nenhum, e acho que este faz muito sentido e adapta-se muito bem. Primeiro – se quisermos ser um bocadinho mais redutores –, porque o príncipe não governa; e ele, na verdade, nunca governou. Mas se pensarmos naquilo que é a figura de um príncipe, no sentido da elegância, da elevação, da capacidade de unir, de representar – acho que ele foi tudo isso. E da democracia, porque foi na democracia que ele viveu e foi para isso que, essencialmente, contribuiu. E acho que é “O“ príncipe e não “Um“ príncipe, precisamente por causa daquilo que eu estava a dizer no início: em Portugal, em 50 anos, não houve ninguém, excepto ele, que tenha conseguido ser simultaneamente actor, intérprete, e criador da maneira como ele foi. Nesse aspecto, acho que foi um político absolutamente singular.

Lucas Pires faleceu com apenas 53 anos, em 1998. Acredita que se tivesse vivido mais tempo, teria conseguido materializar mais aquela que era a sua visão, ou o país nunca estaria preparado para as suas ideias?

Eu acho que continua a não estar. Mas em termos mais práticos… Um antigo secretário-geral do Partido Popular Europeu que eu também entrevistei, diz que se ele não tivesse morrido naquela altura, teria sido provavelmente, o primeiro, e até agora único, presidente português do Parlamento Europeu. Além disso, eu não ponho de parte a hipótese de ele poder ter sido, pelo menos, candidato a Presidente da República; e talvez até tivesse tido sucesso.

Acha que ele poderia ter sido Presidente da República?

Acho que podia ter essa ambição, e era um lugar em que talvez até encaixasse melhor.

Ele defendia, aliás, que o Presidente da República deveria ter um papel mais decisivo.

Sim, e no meio de tudo aquilo que era o pensamento dele, o Presidente da República encaixava quase como uma espécie de representação do espírito do país e daquilo que achava que o país devia ser. O Presidente da República não tem de ter um programa político eleitoral, no sentido em que não tem de pôr em prática propostas políticas concretas, de resolução de pequenos problemas ou de transformações estruturais do Estado e da sociedade; mas deve ter um programa político lato sensu. Tem de ter uma visão do Estado e da sociedade e deve corporizá-la.

Nuno Gonçalo Poças, ao centro, na sessão de lançamento da biografia de Lucas Pires. Ao seu lado direito, Martinho Lucas Pires e Francisco Camacho (editor da Oficina do Livro); e ao seu lado esquerdo, os políticos Francisco Assis e Paulo Rangel.

Não tem de estar tão agarrado àquilo que são as ideias de um partido.

E nem ter de estar agarrado à espuma dos dias – tem de perceber que tipo de país é que gostava de ter, e no fundo, exercer a sua função nesse sentido. Obviamente, o Presidente da República é uma figura de pontes e de elaboração de consensos, mas também pode ser o contrário. Por isso é que é importante que tenha uma posição política, porque não é neutro; não é a Rainha de Inglaterra.

No livro, refere que o responsável de marketing da Margaret Thatcher chegou a dizer que achava Lucas Pires demasiado inteligente para liderar a direita em Portugal. Era demasiado inteligente para ser líder da direita, mas poderia almejar ser Presidente da República?

Se Lucas Pires tivesse mesmo sido Presidente da República, isso teria muito a ver com as dinâmicas eleitorais presidenciais dos anos, em concreto, em que houve eleições: 2001 e 2006. E também não dou por garantido que ele fosse eleito, mas acho que podia ser candidato a Presidente da República. Mas eu percebo o argumento: por causa da barba e por ser demasiado inteligente, não podia liderar a direita em Portugal. Percebo, porque para ter sucesso na política – não só no sentido da ambição pessoal, mas também a nível da implementação de políticas –, acho que é preciso ser inteligente, mas talvez não ajude ser muito inteligente.

Pois, ser-se um intelectual pode não ser uma vantagem. Talvez seja mais útil ser-se “esperto“.

Sim, mais hábil, como agora se diz, não é?

Pois. Como intelectual, deixou um legado de ideias e propostas, que ficaram por concretizar.

Sim, acho que esse talvez seja o legado mais importante de Lucas Pires. Hoje, 25 anos depois de ter morrido, e quase 80 anos depois de ter nascido, para mim o mais interessante é pegar nisto e perceber que praticamente tudo aquilo que ele escreveu nos últimos 60 anos continua actual.

Algumas coisas talvez até mais actuais agora do que antes.

Sim, algumas até mais actuais do que na altura em que ele escreveu.

Ele já falava, por exemplo, no envelhecimento da população portuguesa…

Exacto. E também introduziu a questão do direito constitucional europeu, que foi uma coisa que só se discutiu quase 20 anos depois, e mesmo assim não foi uma discussão muito profunda. Em Portugal, foi absolutamente a primeira a pessoa a escrever sobre direito constitucional europeu; e na Europa, se não foi a primeira, foi das primeiras. Quase tudo aquilo que ele trouxe foi novo, e em 2024 é absolutamente actual. É quase como se fosse um futurista na política; alguém que tem um pensamento absolutamente contemporâneo, e que consegue compreender o seu tempo. Mas lá está: para alguém ter sucesso na política, é preciso compreender o seu tempo, e para alguém ser Francisco Lucas Pires, é preciso compreender o seu tempo e para onde se caminhará consoante as decisões que sejam tomadas. E acho que isso é aquilo que o distingue de todos os outros. De resto, era uma pessoa muito apreciada por quase toda a gente.

Não era alguém que semeasse ódios?

Não, mas como morreu precocemente, as pessoas têm muita dificuldade em criticar quem já cá não está. Mas ele teve os seus conflitos partidários, e, tal como também dizia, o CDS não é um clube de escoteiros. Portanto, essas coisas fazem parte, e ele teve as suas zangas e conflitos; é normal. Mas, feito um balanço, creio que toda a gente reconhece que o lugar dele é inquestionável. Também por isso é que resolvi escrever o livro –  acho que é importante recuperá-lo nesta fase da nossa vida colectiva, e quase obrigar as pessoas a olhar para isto e perceber que, se calhar, há uma série de coisas que podíamos ter feito de outra maneira e não fizemos. No final dos anos 1990, antes de morrer, ele diz que, pela maneira como as coisas estavam a nível europeu e português, muito provavelmente daqui uns tempos nós estaríamos a queixar-nos por não termos feito as reformas necessárias para entrarmos na moeda única, e que estaríamos a queixar-nos do Banco Central Europeu [BCE] em vez de nos queixarmos de nós próprios por causa daquilo que não fizemos. Acho que isso é muito evidente e, de facto, essas coisas aconteceram. Portugal continua a fazer exactamente a mesma coisa que ele sempre apontou. Nós preferimos sempre escudarmo-nos nos outros, pelas nossas próprias falhas; continuamos a não fazer aquilo que é preciso fazer para sermos um país com mais sucesso, e apontamos sempre a responsabilidade por essas falhas a terceiros: à crise financeira internacional, aos mercados, ao BCE, à Comissão Europeia, às agências de rating, aos imigrantes, ou seja ao que for. E não somos capazes de perceber que, se as coisas não resultaram, foi por responsabilidade nossa, porque nós não fizemos esse trabalho. Porque há outros países que fazem.

Há uma desresponsabilização crónica na sociedade portuguesa?

Sim; por isso é que o princípio dele é sempre este: o Homem é o centro da vida colectiva, da actividade política, e é mais do que o Estado. O Estado é uma construção filosófica, e só existe depois do Homem. O Estado existe porque o Homem pensou nele enquanto mecanismo de organização colectiva. E, seguindo esta lógica, não faz sentido que seja o Estado a decidir como vai ser a vida das pessoas, precisamente porque o Estado não é uma entidade abstracta; são outras pessoas. São burocratas, tecnocratas, etc., a decidir por terceiros aquilo que é melhor para a vida das pessoas.

Em Portugal, o Estado ainda tem muito peso.

Sim, nós estamos em 2024 e continuamos a discutir exactamente isso. Esse talvez seja o grande ponto da campanha eleitoral de 2024: é estatismo contra a contra o não estatismo, digamos assim.

Por falar na campanha eleitoral para estas legislativas, e é uma questão meramente especulativa, mas tendo em conta aquilo que já sabe sobre Lucas Pires, acredita que se ele fosse vivo, seria um dos apoiantes desta nova AD? Tendo ele sido um inconformado, talvez esta AD ainda não materialize o fundamental das suas ideias…

Talvez não, mas eu acho que ele sempre compreendeu também em que ponto é que o país estava, e qual era a direita possível. Penso que ele não era um liberal no sentido mais libertário, precisamente por causa da influência cristã na vida dele; tinha uma perspectiva mais liberal-conservadora do que liberal-liberal. Por outro lado, não era de todo um autoritário; era um cosmopolita, um europeísta, e não era estatista. Portanto, em 2024 – digo eu, mas é uma opinião muito pessoal –, não faça uma manchete a dizer que Lucas Pires votaria na AD, porque não sei se é verdade, mas acho que fosse talvez o campo mais natural; e até porque a AD representa um campo de maior amplitude ideológica, cabe lá muita gente. E nós vimos isso ao longo da campanha: a AD vai de Rui Rio, que dizia que o PSD é um partido de centro-esquerda, a Adolfo Mesquita Nunes – essas pessoas estão todas no mesmo sítio. Portanto, tem uma amplitude ideológica grande o suficiente para eu achar que ele podia lá caber. Mas acho muito arriscado responder a isso [risos].

E como foi o processo de escrita do livro?

Foi uma viagem muito gira. Eu tinha alguma admiração por ele, já conhecia os trabalhos do Grupo de Ofir… Demorei dois anos e meio a escrever, porque também tenho de trabalhar. Mas falei com muita gente e conheci a família dele. E no final, a sensação que eu tenho, é de ter ganhado, talvez não um amigo, mas pelo menos um professor, um mestre-escola; aprendi imenso com ele, directamente: a ouvir aquilo que dizia, a ler aquilo que escrevia. Durante este período todo, houve uma fase em que eu simplesmente deixei de trabalhar porque já não suportava ouvir a voz dele, aquilo já me cansava, de tão absorvido que estava. Mas depois reequilibrei-me. Porque no início começa-se com muito entusiasmo, sempre a recolher informação, e ganha-se um fascínio muito grande. É quase como os casamentos, mas há que saber sobreviver a isso, e criar uma relação um bocadinho mais estável. Às vezes, quase que me é natural tratá-lo por Francisco, como se tivesse andado na escola com ele.

Mas não por Chico? [risos]

Não, não chega a tanto. Acho que só as pessoas que estiveram com ele em Coimbra, e que o conhecem na fase de adolescente ou jovem adulto, é que o tratam por Chico Lucas Pires; como o José Miguel Júdice, ou alguns amigos mais antigos como o Vital Moreira, o Luís Cunha, e a irmã também o trata por Chico às vezes, mas é muito raro. A maior parte das pessoas trata-o por Francisco, e nos casos de maior formalidade, por Lucas Pires. Mas isso é muito giro de observar. Já não sei quantas pessoas entrevistei ao todo, mas foi muito giro perceber as dinâmicas pessoais entre os que o rodeavam. Algo comum que percebi é que toda a gente o admirava muito; alguns sentiam quase um fascínio, e outros menos, também por causa da questão política, nomeadamente aqueles que estavam em campos opostos. Também foi giro entrar na dinâmica familiar. Ele tem quatro filhos, e entrevistei os quatro, para além da mulher e da irmã.

No campo da direita, pelo menos, não houve nenhum outro líder em Portugal como Lucas Pires?

Eu acho mesmo que não. Daqui a 50 anos, se alguém quiser olhar para trás e ver quem foram as pessoas realmente importantes da democracia, acho que são o Soares e o Cavaco. O Cavaco governou 10 anos, foi primeiro-ministro no período de maior transformação e crescimento da economia nos primeiros 50 anos de democracia, e o Soares foi o responsável pela afirmação da democracia do tipo ocidental e não soviético. Portanto, são, talvez, as duas grandes figuras. Depois, há uma série de figuras secundárias, que foram importantes em alguns momentos, e nas quais se inclui, por exemplo, Sá Carneiro. Sá Carneiro foi importante na afirmação de uma alternativa ao poder do PS e do fim da tutela militar. O Freitas do Amaral também teve uma importância em todos estes momentos. Mas, o Lucas Pires tem outra coisa a favor dele: foi, de longe, o mais criativo. E não me admirava que, daqui a 50 anos, se voltasse a pegar nisto, percebesse que a maioria das coisas que ele dizia continuariam actuais.


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