Já não receio nada.
Braço dados contigo,
Desafio o meu século.
Friedrich Schiller
Século XVIII
Sim, é verdade, tivemos eleições. E essas eleições dizem-nos coisas importantes. Talvez não tanto sobre Portugal, onde era evidente que já ninguém podia ver o PS nem morto[1]. E onde também já toda a gente esperava a grande subida do CHEGA, e aliás, pormenor sempre irritante, falava dela no tom fatalista de quem não pode intervir sobre uma catástrofe que já viu desenhar-se ao longe a mais de um ano de distância[2]. E, já agora, o que é de péssima educação, onde ninguém se lembra de saudar a tenacidade democrática do povo português, que, ao contrário de todas as previsões bisonhas de desinteresse com que andávamos a ser bombardeados, só se absteve nuns mínimos 38% e fez questão de ir às urnas dizer o que queria, mesmo que não queira o que nós queríamos que quisesse. Agora, essas eleições dizem-nos é muitíssimo sobre o nosso mundo e sobre todos os horrores com que poderemos vir a ter de viver muito em breve. E, nessa altura, se continuarmos anestesiados por uma comunicação social que não nos explica absolutamente nada sobre o que é que está realmente em curso no xadrez colossal de todos os países, a culpa do inferno que aí vem será toda, e apenas, de quem todos os dias se dedica à sabotagem dos nossos cinco sentidos[3]. Mas vamos todos lá parar. Tal como enfatizou em 2018 ao Vatican News o padre Athos Turchi, professor de Filosofia na Faculdade Teológica da Itália Central, “o inferno não é um lugar ou um espaço, mas antes um estado da alma”[4]. E já antes dele, em 2015, o Papa Francisco deixara muito claro que o inferno não é uma condenação, mas antes uma escolha[5]. “Ninguém é mandado para o inferno,” disse então o Santo Padre. “Quem para lá vai, por escolha própria, estará afastado para sempre da felicidade.[6]”
E então pensei que podia dar-vos umas boas imagens do que nos acontecerá se continuarmos a escolher a torto e a direito este inferno sem felicidade, sejamos nós crentes ou não. O estado de espírito que lá se encontra é igual para toda a gente.
O Inferno são quatro paredes. Sem portas. Quem fez o Inferno não fez portas, porque quem está no Inferno está lá para sempre. E não entra por uma porta, consubstancia-se no Inferno por vontade do seu criador. E encontra-se logo entre quatro paredes.
Do mesmo modo não existem nas paredes signos, asperidades, ilustrações ou motivos arquitectónicos. Qualquer um desses elementos poderia representar uma porta simbólica, e as portas do Inferno são portanto lisas.
Nada permite diferenciar uma parede da outra. Nesse sentido, as quatro paredes do Inferno são uma concretização da quadratura do círculo. São um quadrado que é um círculo. Por isso ninguém poderá dizer nunca que conhece os quatro cantos do Inferno.
O Inferno não tem dimensões. As paredes encostam-se ao seu ocupante até impedir os seus movimentos, e de seguida afastam-se até perder de vista. Jamais sabemos a que distância nos encontramos delas. Se fosse possível medir o Inferno, teríamos um início de entendimento da sua realidade. Uma porta. Talvez apenas mental, mas uma porta. Não há qualquer porta no Inferno.
No Inferno não existem direcções. Pela mesma razão que as quatro paredes formam um círculo, não existe nenhuma orientação no Inferno. Quem se consubstanciou no Inferno, tem apenas um ponto de referência: si-próprio. Referência inútil na circunstância, visto que o ser está carregado de sentido, e constitui portanto a antítese do Inferno. O ser e o Inferno não são compatíveis.
No Inferno não há mais ninguém. É o nosso Inferno, com as nossas paredes. Sem nós, aquele Inferno não existiria.
No Inferno nada responde. Procuramos signos, distâncias, direcções. Nada responde. Nunca haverá respostas. O Inferno é a interrogação perpétua. A parede.
O Inferno não tem eco. Inúmeros animais guiam-se por ecos, as cores e os sons são ecos, o mundo é um eco multidireccional. No Inferno é inútil chamar, aliás não há ninguém, e também é inútil gritar para provocar um eco. Todo o grito se perde.
No Inferno a noção do tempo desaparece rapidamente. Depois de consubstanciados entre as quatro paredes, tudo parece ter durado desde sempre e vir a durar para sempre.
No Inferno não existem nomes. As palavras são inúteis. Não há nada para nomear. O Inferno são quatro paredes, chamadas paredes em todas as línguas do mundo. Não havendo nada para nomear, não havendo distância, e portanto perspectiva, não havendo tempo, as palavras confundem-se com o ser e não têm para onde ir.
E agora digam lá. Todos os que escolhem nem sequer pensar em fazer escolhas e consideram mais confortável ignorar defesas ou exigências de direitos. Todos os que, pura e simplesmente, não têm qualquer espécie de paciência para se juntarem ao cheiro a suor dos seus semelhantes, na defesa seja do que for que os une a todos. Todos os que mentem. Todos os que se corrompem. Todos os que, ao longo dos anos, já mentiram tanto, e já se corromperam tanto, que fizeram dos seus próprios seguidores bandos incontáveis de mentirosos e corruptos, ou então desmotivaram por completo dezenas, centenas, milhares de pessoas que eram promissoras, que eram boas, que eram muito boas, que eram mesmo verdadeiramente excelentes[7]. Todos os demagogos sem vergonha que têm o descaramento pecaminoso de prometer grandes mudanças, sem nunca, por uma vez que seja, proferirem uma só palavra, quanto mais uma só frase, sobre a forma como essas mudanças serão construídas, pedra sobre pedra, por forma a chegarem, conforme o plano, a ver num dado momento a luz do dia. Todos os patrões da comunicação social que já bombardearam os portugueses com tanto lixo que acabaram por torná-los insensíveis e acríticos às verdadeiras notícias, verdadeiras reportagens, verdadeiras sátiras ou verdadeiros segmentos culturais. Todos aqueles que, com a mais acabada falta de escrúpulos e de remorsos, estão constantemente a movimentar-se nas sombras, com a intenção deliberada de, parafraseando a Greta Thunberg, roubarem o futuro aos filhos dos portugueses.
Agora digam lá.
É num estado de espírito destes, um inferno sem mais ninguém, sem portas e sem palavras e até sem eco – é nesta quadratura do círculo infinita que querem vir a ter de passar o resto da vida e ainda mais a eternidade, dentro de uma mera e curta questão de tempo?
Portugueses, aquela gente não lê e não pensa. Se quisermos que exista de facto alguma mudança, os agentes dessa mudança teremos de ser nós. O apocalipse já nos foi anunciado. Depois não poderemos dizer que não sabíamos.
Responsabilidades destas parecem sempre tão esmagadoras da primeira vez que as encaramos que é normal sentirmos uma vontade nada desprezível de lhes virarmos as costas, argumentando que não há caminho.
Mas acontece que há caminho.
Um caminho de cabras escarpado encosta acima, por onde avançamos muito devagar e com muita prudência, não deixa lá por isso de ser um caminho.
Provavelmente até estamos a falar de um caminho de onde se vão descobrindo, curva a curva, paisagens que ainda nunca ninguém descobriu antes de nós.
Hão de ter reparado que a passagem sobre o Inferno com quatro paredes que formam um círculo e não têm portas é uma longa e belíssima charada que não parece escrita por mim.
Não parece porque não foi[8].
Então e se não foi, onde terei eu ido buscá-la?
Possivelmente a um daqueles primeiros livros das primeiras culturas do mundo de que por esta hora já se percebeu que eu tanto gosto. Ao LIVRO DOS MORTOS do Antigo Egipto, por exemplo. À GÉNESE DO MUNDO da Antiga Babilónia, também era plausível. E se fosse uma qualquer pré-configuração do Hades descoberta num fragmento Pré-Socrático ainda mais antigo do que todos os outros? Ah, deixem. Eu não passo a vida a jogar sempre ao mesmo jogo, e para esta história do século XXI fazer sentido a referência teria de ser, também, do século XXI. Os dez poemas em prosa sobre o inferno são da autoria do poeta discreto Filipe Jarro[9], e foram publicados em 2007 pelas edições Moura. Na dedicatória impressa, o autor até lhes atribui poderes mágicos: “Quando fechados na estante, incham até preencher o espaço que lhes cabe. Depois sei que rebentam. Espalham-se então as suas letras geneticamente pelo interior de todos os livros vizinhos[10] e aí ficam para sempre, alterando-lhes definitivamente o sentido, impedindo que sejam lidos, tomando conta deles.” Falar com o Filipe é uma festa, um exercício de ironia, de parte a parte uma crítica válida e um apoio precioso. Isso, desde já, nós podemos rever-nos na citação de Schiller e fazer muito mais do que tendemos a fazer agora. Tal como Schiller e Goethe injectaram uma nova saúde nas letras alemãs do século XVIII quando criaram o espaço de intercâmbio que veio a ficar conhecido como o Classicismo Weimar, nós podemos, devemos reencontrar os nossos amigos, apoiar-nos neles e dar-lhes apoio, rir tudo o que houver para rir e usar a dureza que ainda ninguém ousou usar – e, na radiância desta energia[11], enfrentar melhor a jornada.
Já sabemos que vai ser muito dura.
Vale a pena responder-lhe com o nosso melhor.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Pelos motivos óbvios que todos conhecemos, e credo, já basta. Eu não sou socialista, mas sou de esquerda. Andava cheia de vergonha, e esta pequena frase não se destina a funcionar como nenhum efeito de ironia.
[2] Foi impressão minha, ou existiam bastantes e belíssimos contra-argumentos para aquelas frases promocionais completamente palermas deles? É que ao menos isso. Quem se opõe tem o dever de desmontar tudo o que tiver tempo para desmontar, seus bananas.
[3] Ou seis, se contarmos a Intuição Feminina, como se fazia nos tempos da Revolução Científica.
[4] Este senhor não é nenhum rebelde, ou então não ocupava a sua posição académica. Aliás, vejam-se já a seguir as declarações do próprio Papa, feitas aos fiéis em plena homilia.
[5] Ambas as declarações foram feitas no âmbito da Semana Santa, que vai começar agora. Obviamente, já que rememora a morte de Cristo e todo o sofrimento padecido anteriormente, é a melhor altura do Calendário Católico para reflectir sobre o Inferno.
[6] Na frase completa, proferia numa homilia em Roma, “… do Deus que dá a felicidade.”
[7] E quantas vezes, pior ainda, atacaram aguerridamente essas pessoas para que não fizessem sombra aos videirinhos de que se rodeavam.
[8] Vá lá, confessem. Deram logo por isso? Ou só estão a dar por isso agora? É que aquilo é lindo e quem me dera, mas eu não escrevo assim, nunca escrevi assim em 64 anos de vida e 40 de publicações, e não era esta noite, de repente, a meio do resto da crónica, que se acendia dentro do meu cérebro a luz brilhante de uma inspiração estrangeira.
[9] Deixem-se de tretas. Somos amigos desde o tempo do liceu. Santo Deus, esta gente.
[10] A bióloga que transcreve o texto acha que, aqui, a escolha deste geneticamente é um bocado duvidosa, sobretudo considerando tanto advérbio de modo que há no mundo — mas enfim, o livro é do Filipe, não é meu.
[11] “radiância” eu tirei da dedicatória do Filipe. Palavra de poeta, mesmo.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.