Depois do ‘furacão’ causado pela fugaz passagem de um obscuro fundo das Bahamas, não se pode dizer que prime pela transparência o plano de transferência de alguns dos títulos mais atractivos da Global Media, com o Jornal de Notícias à cabeça, para a esfera de uma nova sociedade de empresários. Pelo contrário. Criada no final do mês passado, com um capital social de apenas 50 mil euros, a Notícias Ilimitadas não revela qualquer accionista nem detentor de direitos de voto no Registo Central do Beneficiário Efectivo, contrariando uma lei de prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, sendo que os administradores indicados (Alexandre Bobone, Diogo Freitas e Domingos de Andrade) declaram não terem qualquer participação accionista. O modelo sugerido para a ‘cisão’ dos títulos da Global Media, a ser autorizado pelo regulador e pelo futuro Governo, abre também a porta a uma eventual ‘Global Media tóxica’ com o Diário de Notícias à boleia. Ou seja, se a Notícias Ilimitadas ficar apenas com o direito de usufruto dos títulos, não assume assim qualquer parte do elevadíssimo passivo da Global Media, que atingia quase 55 milhões de euros em 2022, incluindo 10 milhões de dívidas fiscais. Se, com isto, e com a redução de receitas, a Global Media entrar em falência, o Governo pode então querer salvar o Diário de Notícias, assumindo dívidas e concedendo um perdão fiscal. Um precedente arrepiante…
A falta de transparência continua a ensombrar os títulos jornalísticos ainda detidos pela Global Media. Após a retirada decretada na semana passada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) dos direitos de voto ao World Opportunity Fund – o fundo das Bahamas que chegou a controlar a administração da Global Media, através da maioria do capital da Páginas Civilizadas ao empresário Marco Galinha em Setembro do ano passado –, por não identificar os investidores, agora também se desconhece quem, efectivamente, controla a nova empresa criada para concretizar a cisão dos títulos da Global Media.
Com efeito, apesar de ter sido já constituída em finais de Fevereiro uma empresa – a Notícias Ilimitadas, com sede na Maia –, que já terá assinado um memorando de entendimento com os accionistas da Global Media com direito de voto válidos (Kevin Ho, José Pedro Soeiro e Marco Galinha), em concreto desconhecem-se os verdadeiros investidores. Sabe-se apenas que detém, por agora, um capital social de apenas 50.000 euros distribuídas por 10.000 acções nominativas.
De acordo com uma consulta ao Registo Central do Beneficiário Efectivo (RCBE), a empresa Notícias Ilimitadas apenas identificou os três administradores – o jornalista e actual director-geral da TSF e do JN Domingos de Andrade, que também é agora administrador da Global Media, e os empresários Diogo Freitas e Alexandre Bobone, que preside –, mas nenhum deles indica que possui qualquer nível de controlo da empresa ou sequer direitos de votos.
Saliente-se que, apesar de a Notícias Ilimitadas não deter ainda formalmente qualquer título de comunicação social – e, portanto, não estar, por agora, sujeita à Lei da Transparência dos Media –, o RCBE estipula a obrigatoriedade das sociedades comerciais manter um registo atualizado dos sócios, com discriminação das respetivas participações sociais, ou das pessoas singulares que detêm, ainda que de forma indireta ou através de terceiro, a propriedade das participações sociais, ou de quem, por qualquer forma, detenha o respetivo controlo efetivo.
Ora, nenhuma dessa informação consta do registo referente à Notícias Ilimitadas, que, como indica apenas administradores, está ao mesmo (baixo) nível da ‘qualidade de transparência’ da World Opportunity Fund, que sempre indicou apenas no RCBE o nome e elementos do administrador, o francês Clement Ducasse.
A forma pouco transparente como decorre o processo de cisão dos títulos da Global Media – com a entrada da Notícias Ilimitadas em jogo, depois do breve e conflituoso ‘reinado’ do fundo das Bahamas –, levanta sérias dúvidas sobre as operações financeiras em curso e sobre quem assumirá, no futuro, o elevadíssimo endividamento deste grupo de media.
Recorde-se que a Global Media finalizou 2022 com um passivo de 54,9 milhões de euros, dos quais 11 milhões a instituições bancárias e 10 milhões de dívidas fiscais, das quais cerca de sete milhões criada ao longo desse ano. Ou seja, estava já há muito em situação financeira desastrosa, sendo garantido que concluiu 2023 com capitais próprios negativos. Este mês, a nova administração liderada novamente por Marco Galinha revelou que a demonstração de resultados preliminar aponta para um prejuízo de 7,2 milhões de euros, a transitar para um capital próprio que era de pouco mais de 5,7 milhões de euros em 2022. Efeito disto, sem que tenha sido aprovado qualquer aumento de capital. é a Global Media estar já em falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos de 1,5 milhões de euros. Em 2019, antes da ‘era Galinha’, os capitais próprios eram positivo de quase 15,5 milhões de euros. Além disto, cerca de metade dos activos da Global Media, no valor de cerca de 30,6 milhões de euros em 2022, eram constituídos por goodwill, de reduzidíssima liquidez e de valor de mercado bastante questionável por estar associado ao valor dos títulos, incluindo os arquivos históricos.
No início de Fevereiro, o jornal Público avançou como hipótese mais provável que um grupo de empresários – onde se inclui os dois actuais administradores da Notícias Ilimitadas – viesse a comprar o JN, O Jogo e as revistas Evasões e Volta ao Mundo. Estas últimas são, na verdade, propriedade de Marco Galinha, através da Páginas de Prestígio, não estando integradas desde Setembro do ano passado na Global Media. No entanto, o jornal Eco concretizou que o negócio implicaria “a compra dos títulos, não de nenhuma empresa”, adiantando que os “actuais accionistas minoritário do grupo devem assumir uma posição na nova sociedade”, ou seja, na novel Notícias Ilimitadas – algo que não se consegue confirmar por ausência de informação no RCBE.
A concretizar-se uma simples venda ou cedência dos títulos para uma empresa fora do universo da Global Media seguir-se-á então um modelo muito similar à que ocorreu com o Tal & Qual. Com efeito, este título encontra-se registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial em nome da Global Media mas foi concedido o direito de usufruto à empresa Parem as Máquinas – curiosamente fundada por José Paulo Fafe em finais de 2020 – em (re)publicar o semanário. Obviamente, neste modelo não existe qualquer relação societária entre as duas empresas, antes apenas uma relação comercial com o eventual pagamento pelo uso da marca.
Aliás, o objecto social da Notícias Ilimitadas sugere esta opção, uma vez que a empresa diz que a sua actividade, no âmbito estrito da imprensa, é de “difusão de actividades de terceiro designadamente por anúncio; editar, produzir, comercializar e distribuir jornais e revista e outros meios de comunicação social”.
Seguir este modelo para o JN, O Jogo, a TSF e as revistas Evasões e Volta ao Mundo pode ser um expediente atractivo para os accionistas (desconhecidos) da Notícias Ilimitadas (onde estarão, em princípio, também Marco Galinha, Kevin Ho e José Pedro Soeiro), mas potencialmente catastrófico para os credores da Global Media, incluindo o Estado. Isto porque sendo aceite pela ERC a transmissão dos títulos – e até os jornalistas e produção – da Global Media para a Notícias Ilimitadas, a sobrevivência daqueles órgãos de comunicação social fica garantida pela nova empresa sedeada na Maia, mas se a situação financeira da Global Media se deteriorar, e entrar mesmo em falência, o ‘calote’ não ‘infectará’ a Notícias Ilimitadas, mesmo se houver sócios ou accionistas comuns.
Com a retirada dos seus títulos ainda rentáveis, a Global Media fica mesmo assim com dois ‘trunfos’, que valem muito pelo simbolismo: o Diário de Notícias (que detém a 100%) e o Açoriano Oriental (a 90%) são os mais antigos órgãos de comunicação social de Portugal. Daí que numa eventual falência da ‘Global Media tóxica’, pode vir a ‘salvação’, aceite e até recomendada por partido como o Livre e o PCP, através de uma operação de nacionalização com assumpção das dívidas e perdão fiscal pelo Estado.
Saliente-se, por fim, que desde a entrada de Marco Galinha ao universo da Global Media em 2020, sucedem-se as empresas com nomes muito sui generis com um similar diapasão. Embora a novel Notícias Ilimitadas não venha a ser, em princípio, nem accionista nem subsidiária da Global Media, o dono do Grupo Bel mostra ser apreciador de nomes pomposos para empresas ligadas aos media. Foi ele que criou uma ‘matrioska’ de empresas, quando assumiu o controlo da Global Media, fundando a Páginas Civilizadas e ainda a Norma Erudita e a Palavras de Prestígio.
Curiosamente, esta última empresa, criada também por Marco Galinha em 2020, teve como sócios a Parsoc e a Ilíria – que agora surgem como eventuais accionistas da Notícias Ilimitadas –, mas as quotas foram adquiridas, sem qualquer explicação, pelo Grupo Bel pouco tempo antes da entrada do World Opportunity Fund na Global Media.
O PÁGINA UM, no decurso da elaboração desta notícia, tentou obter comentários e esclarecimentos de Alexandre Bobone, presidente do C0nselho de Administração da Notícias Ilimitadas, e que surge como contacto no RCBE, mas não houve qualquer reacção.
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