NOTA: Esta reportagem contém imagens que podem chocar o público mais sensível.
República Centro-Africana.
5 de Janeiro de 2019.
A Força de Reacção Rápida (QRF) portuguesa é projectada para Bambari, a segunda maior cidade do país.
A 7ª missão das Nações Unidas (MINUSCA) inicia a Operação “Bambari sem grupos armados e sem armas”.
O objectivo é expulsar o grupo armado UPC da cidade.
Está programada uma visita do Presidente da República…
10 de Janeiro.
Os relatórios de situação referem tiroteio intenso na cidade.
90 paraquedistas portugueses – 3 grupos de combate, mais exactamente – participam nos combates contra os rebeldes muçulmanos.
Baixas do dia:
2 elementos das Forças de Segurança mortos.
1 comandante das Forças Armadas (FACA) da RCA abatido.
6 rebeldes do grupo armado UPC – o segundo mais importante do país – perdem a vida.
E 23 ficam feridos.
É o princípio da fase 2 da operação.
11 de Janeiro.
Os paraquedistas portugueses avançam ao longo do eixo Maidou – Mbrepou – Élevage.
É preciso dar protecção aos militares do Cambodja.
É o princípio da fase III da operação.
11 de Janeiro.
Bambari.
Bairro muçulmano de Maidou.
Esta casa acanhada ardeu e, agora, está ao abandono.
Das intimidades mais secretas já nada resta.
É o fadário de muita gente…
A guerra deixou, aqui, uma modorra de ruínas ocres.
— O grupo UPC tinha a sua barreira aqui. É por isso que os portugueses vieram rebentar com as barreiras. Foi ao dispararem contra a barreira que a casa começou a arder. As chamas das armas… Começou a arder… E eles tinham a base aqui debaixo da mangueira. Ali à frente, debaixo da mangueira. Havia muitos UPC aqui no nosso bairro. No caminho, os veículos não podiam passar, mas as pessoas que passavam eram revistadas aqui. Pediam-lhes dinheiro para comer. É isso… — conta-me Gabin Gawa, que mora aqui.
— E o que viu quando os portugueses chegaram? — pergunto.
— Vi… Os blindados dos portugueses vieram disparar contra as barreiras. As chamas começaram a subir alto e caíam nas casas. E, a seguir, vi os do UPC a fugir… É por causa disso que os portugueses andaram a combater aqui.
— E houve muitos mortos?
— Só feridos. Mortos, não. Houve apenas feridos.
— Civis ou do grupo UPC?
— Civis. Os da UPC fugiram. Eles fugiram…
A tarde vai passando.
Apesar da miséria e dos morticínios da guerra é preciso viver a vida corrente…
Reparamos no salão “Tribunal de Beleza TANAKA” que, aqui, no meio de nenhures pode parecer anacrónico.
Puxamos paleio com o cabeleireiro.
É apenas um pretexto para escutar os mexericos, esmiuçar as agruras e as aspirações desta gente…
O cartaz carcomido mostra o acessório. Quem vê caras não vê preços…
— Um corte de cabelo, aqui, para as mulheres é 15.000 francos (23,00 euros) porque têm dois cabelos… À frente e atrás. Para os homens é 500 francos (0,77 euros). Tens algum problema com isso? (Ri-se) — explica ou indaga o rapaz Raoul Ether.
— E os jovens daqui desta aldeia… O que querem fazer na vida? Como é que eles vêem o seu futuro?
— O futuro dos jovens, aqui? Não há dinheiro, não há trabalho. Eles sofrem. Uns lavram a terra. Outros, acartam água. Há cabeleireiros, há costureiros. Não há nada para fazer. E eu preciso de ajuda. Há trabalho? (SILÊNCIO) Se há trabalho, vamos a isso. Mas se não há trabalho, ficamos sós, somos uns inúteis. Comemos mangas, meio a dormir. Não há nada. Não é vida…
O comércio nunca pára, apesar de não haver prosperidade há que mundos…
Todos os dias, aqui, são dias de fazer. E esforçados…
Um moço ganha uns vinténs a empurrar o carro da água.
Uns vendedores ambulantes de pé descalço aproximam-se.
Kossei, pastéis de feijão a 10 francos (0,02 euros).
Um café de tacho custa 25 francos (0,05 euros)…
40 soldados (um pelotão de Infantaria do Nepal com 4 viaturas APC) patrulham Maidou. 24 horas por dia, 7 dias por semana…
Agora… porque antes da operação da MINUSCA não podiam meter os pés aqui.
O cenário no lugarejo é este:
Militares.
Perigo.
Arame farpado.
Casas em ruínas.
Destruição e miséria.
E… ladroagem pela noite fora…
Élevage, um dos bairros problemáticos de Bambari — juntamente com o de Maidou e Adji.
Há dois anos Élevage era mato.
Hoje, vivem neste campo duas mil e tal pessoas, sobretudo criadores de gado, que fugiram de Ippy, uma terriola a cento e tal quilómetros daqui.
— Se o país estiver bem, se houver paz regressamos para a nossa terra, Ippy. Mas até agora os problemas são aqui nesta pequena aldeia… Há massacres. Há gente a morrer. Há muitos problemas no mato. É por isso que continuamos aqui em Bambari. — diz Hassan Issa, o imã de Élevage.
Os soldados nepaleses da MINUSCA efectuam, aqui, patrulhas 24/7. São os únicos.
As forças armadas da RCA (FACA) e a polícia não metem aqui os pés.
Percorremos o campo banhado de sol.
Mais miséria. E mais desconfiança, também. Plenamente justificada.
Os Capacetes Azuis nem sempre conseguiram impedir os massacres como foram, por outro lado, acusados de cometer crimes (sexuais) contra as populações que eram supostos defender.
A paz decretada há meses (com a assinatura do 8º acordo de paz) é precária.
Há quem defenda que o mandato da MINUSCA devia ser mais ofensivo para permitir a resolução do conflito e a reconstrução do país.
A luz turva da tarde está a chegar…
O muezim chama os fiéis para a prece obrigatória.
É o fim do segundo apelo. Há cinco por dia.
Mesquita Central de Bambari.
Bairro de Bornou.
Os fiéis entram.
O imã é Hamat Hamadi.
44 anos. É comerciante. Tem 5 filhos e uma única mulher…
É um homem respeitado no burgo.
O imã despacha-se já que nem todos estamos com vagar.
Terminada a oração, o arauto e os outros crentes partem.
Decidimos falar com o homem.
— A UPC é o quê? Que gente é essa?
— Em todo o caso, senhor jornalista, a UPC é um movimento que nasceu depois da crise, mas os bairros muçulmanos e os meios muçulmanos já existiam antes. Podemos dizer quase há meio século. Os bairros muçulmanos existem e os homens da UPC existiam antes de a crise chegar. Portanto, é escusado dizer é um meio da UPC ou um meio tal. É um bairro como os outros bairros da cidade. Não há nada de bom nesta guerra. Não há um vencedor nesta guerra. Pelo contrário, só há perdedores. Nós somos todos perdedores. A outra comunidade governou este país durante meio século. E a nossa comunidade que vivia com eles veio, por sua vez, gerir o poder. Eles não estão de acordo. Inventaram tudo e mais alguma coisa para nos irmos embora. Fizeram-nos deixar o poder. Mas porque razão ainda trazem milícias que matam. Já viste um muçulmano, um Seleka, cortar alguém aos pedaços? Comer a carne de uma pessoa? Não. Vimos o canibalismo no outro lado. Toda a gente viu.
— A MINUSCA está cá. Os portugueses estiveram cá até há umas semanas. Houve combates sangrentos aqui e não só. Qual é a lição que tira destes acontecimentos? — questiono.
— A MINUSCA está cá. Trabalhou muito para o regresso da paz e da segurança no nosso país. Sim, devemos agradecer à MINUSCA. Ela fez coisas boas.
— E os portugueses? Há umas semanas, os paraquedistas…
— Há semanas os paraquedistas portugueses estavam na cidade. Travaram um combate sangrento, como referiu, com homens armados, mas eu digo-lhe: o que eles fizeram não o fizeram com profissionalismo. Os portugueses não fizeram a diferença entre o homem armado e o homem civil. Porquê? Os homens armados moram nos mesmos bairros que os civis. Eles querem montar uma operação militar e não têm escolha. O exército português matou muita gente que é inocente. Então, eu peço-lhes para darem provas de profissionalismo nas suas acções…
— A UPC não meteu os civis à frente justamente para se servir dos civis?
— Senhor, o último combate que ocorreu aqui na cidade foi à uma da madrugada. Eu pergunto-lhe: quem é o civil que vai estar acordado a essa hora para estar metido nessa história? À uma hora da manhã, por favor…
— Pode ter sido obrigado…
— Obrigado por quem?
— Pela UPC…
— Eu não tenho a prova. Eu não tenho a prova. Eu estava no interior quando os tiros de canhão começaram a retentir. Ouvi gritos aqui e acolá. A população começou a fugir nessa noite. Uns, caíram com as balas. Outros, escaparam.
O grupo armado usou crianças como escudos humanos em Bambari.
É o que reza vermelho no branco um relatório militar a que a TVI teve acesso.
Bambari, a “Fascinante”.
O eixo CTO — a rua Direita —– começa no PK0 e acaba, ali ao fundo, na ponte do Ouaka.
O rio de povo passa…
Na outra margem, lá em baixo… As lavadeiras. A roupa a corar.
Roupa branca que a gente estendeu…
O pescador…
Os putos a brincar.
E os areeiros, que afeitos a horas longas, batem a margem e enchem bidões à custa de muito suor.
Bambari foi um importante polo económico. Foi…
Para o algodão e para o açúcar.
Hoje, a cidade é apenas mais um ponto de passagem.
As bancas e o mercado dos cristãos, que esteve fechado durante quase um ano, dão uma aparência de normalidade…
9:46
A patrulha apeada conjunta arranca…
Dois polícias, outros tantos guardas, três soldados e sete Capacetes Azuis da Mauritânia garantem a segurança e impedem os roubos.
O comércio: mercearias, barbeiros e bancas de roupa.
É um arraial incessante de propostas.
As falas doces dos vendedores de pé no palco improvisado parecem réplicas. Eles representam. Como toda a gente, aliás. E governam-se…
Calças de ganga a 2 mil francos (3,00 euros).
Camisas a 1.500 (2,30 euros).
Vestidos a 500 (0,70 euros).
Os clientes enganados ou desenganados — nunca se sabe! — compram os precisos e a roupa. Quando compram…
No mercado, a meio rua, a coisa fia mais fino: os muçulmanos fornecem a carne e os cristãos o resto.
— Isto pode rebentar a qualquer momento? — digo a Bob Gbiassango, oficial da Gendarmerie local.
— Pode ou não pode… Pois. Pode ou não pode… Eu não sou a melhor pessoa para dizer se pode explodir. Para mim, isto está resolvido… Houve combates… Mas a população, efectivamente, foi ela quem sofreu… Os combates foram travados em toda a cidade… Depois, quando acabaram, a população ficou de um lado e os assaltantes do outro. Houve muita gente que morreu nos dois lados feitas as contas. Feitas as contas, não foram coisas sem gravidade…
— Foram momentos terríveis…
— Sim, efectivamente foram momentos terríveis, mas isso já passou. Com a tropa é sempre assim. Quando a coisa rebenta deve aquecer, mas depois fica calmo. É assim…
“Momentos terríveis…” É a formulação autorizada. E politicamente correcta.
Os combates entre as forças da MINUSCA e o grupo armado UPC provocam, segundo uma fonte religiosa, 50 mortos e um número indeterminado de feridos.
Rebeldes e, sobretudo, civis…
Estas fotografias dão conta da tragédia…
Em parte…
Habitações esburacadas, destruídas. Fogo… Cinzas e mais cinzas. E morte… por toda a parte: homens, mulheres e muitas crianças…
“Os nús e os mortos” (1), aqui, são os mesmos…
O raio da guerra não poupa nada nem ninguém…
12 de Janeiro.
6:05 da manhã.
A Força de Reacção Rápida (QRC) portuguesa parte de Bambari para Bokolobo, o quartel-general do grupo armado UPC.
As forças do Ruanda avançam para o mesmo objectivo a partir de Alindao, outra terra de massacres, que fica mais a Sul.
A operação contra o grupo armado UPC em Bokolobo é um sucesso.
Balanço estimado: 65 a 83 rebeldes mortos e 29 a 42 feridos.
A MINUSCA não sofreu qualquer baixa.
No dia seguinte os paraquedistas portugueses regressam à base do PK3, em Bambari.
16 de Janeiro.
9 da manhã.
200 ou 250 moradores dos bairros muçulmanos de Bambari protestam contra a operação militar da MINUSCA.
Lamentam os mortos e a destruição. E pedem o fim do uso da força em Bambari e Bokolobo.
Três palavras de ordem:
“NÃO AO CONTINGENTE PORTUGUÊS E AO NEPALÊS
NÃO NÃO NÃO À GUERRA
QUEREMOS PAZ“
— A MINUSCA tem os meios humanos e materiais de que necessita para cumprir a sua missão aqui? Num país tão vasto quanto a Península Ibérica… — pergunto.
— Vamos lá a ver. A MINUSCA tem… tem… tem, sob o ponto de vista da sua organização, da sua componente militar, um perfil que está estabelecido e que está aprovado. Não vale a pena estarmos a apelar para aumentar o efectivo da força quando isso não tem sido autorizado pelo Conselho de Segurança. — responde o general Marco Serronha, 2º Comandante da MINUSCA.
— Estamos a falar de cerca de 12.000 homens…
— 11 mil… 11 mil e 600. 11.654, mais precisamente. Mas o que nós temos tentado fazer junto de Nova Iorque é, sem subir por assim dizer o tecto do efectivo, melhorar as capacidades e estamos a trabalhar nesse sentido. Ou seja: que os contingentes internacionais tragam capacidades adicionais nalgumas áreas, nomeadamente nas áreas que têm a ver com a possibilidade de terem uma, o que nós chamamos uma situation aware, terem a capacidade de antecipar aquilo que se está a passar e para isso é preciso meios tecnológicos que alguns deles não têm, mas que nós estamos a fazer força para terem. Nomeadamente uma das questões também que estamos a trabalhar e que já temos são os meios aéreos não tripulados que estão a ser utilizados também, mas que temos de algum modo estender mais para permitir que possamos saber melhor o que se passa no terreno. Agora, não temos, vamos lá a ver, não vamos pedir um aumento de efectivo porque isso não é autorizado, portanto, não vale a pena…
— Uma QRF (Quick Reaction Force ou Força de Reacção Rápida) sem meios aéreos chega sempre tarde e a más horas…
— Essa é uma das questões também. Nós estamos a fazer força junto de Nova Iorque para obter mais meios aéreos nomeadamente mais uma unidade de helicópteros, não só para ter a possibilidade de projectar ou apoiar a projecção de forças, mas essencialmente para cobrir melhor um dos aspectos sensíveis destas missões de paz que é a evacuação de baixas, caso aconteçam.
17 de Janeiro.
Élevage.
A potencial chegada a Bambari de dois generais do grupo UPC pode indiciar — segundo serviços militares — a continuação da guerra.
Durante a tarde, os paraquedistas portugueses detectam movimentos suspeitos no bairro muçulmano.
Este homem, que se encontra perto do local onde foram encontradas armas, é identificado como elemento do grupo armado e detido.
Bambari, uma cidade sem grupos armados e sem armas?
Mais ou menos…
É neste quartel das Forças Armadas da República Centro-Africana, as FACA, que os mercenários russos estão instalados.
Alguns pertenceram às forças especiais.
((Foto: Documento de um serviço secreto ocidental/ Arquivo de Rui Araújo)
— Com os russos, tudo bem, porque eles são parceiros nossos… — diz o Comandante Florent Ogalama das FACA.
— O que fazem exactamente, aqui? Ao nosso lado…
— São amigos nossos. Estão cá connosco…
— E estão a fazer o quê?
— Não comento… Não comento…
Chega a haver 20 mercenários russos em cada destacamento das FACA.
Os russos do grupo Wagner ou Séwa, aqui, fazem o que querem.
E não é só andarem a passear na rua de espingarda automática. E formarem a tropa. Torturam pessoas!
(Foto: Rui Araújo)
Este documento militar classificado, por exemplo, é peremptório:
11 de Janeiro.
8:00 da manhã.
Os mercenários russos prendem em Bambari um cidadão de 38 anos a pretexto de ser coronel dos grupos armados muçulmanos.
Depois de ter sido torturado durante 5 dias o homem acabou por mutilar-se, cortou um dedo da mão direita para conseguir ir para a Gendarmerie.
(Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo de Rui Araújo)
Há menos de um ano, foram assassinados no norte do país três jornalistas russos que investigavam as actividades do grupo privado militar russo (sem existência legal) Wagner.
Os corpos foram descobertos pela MINUSCA…
(Foto: D.R.)
As ambições imperiais da Rússia (que passam pela reconquista geopolítica e económica do continente africano) são assumidas… por Lobanov, o representante diplomático de Moscovo em Bangui.
“A URSS foi um dos primeiros países a reconhecer esse jovem Estado africano.“
“Hoje, a Rússia regressa a passos largos ao continente africano.“
A influência crescente da Rússia, que vai ter 30 observadores e pessoal de comunicações na MINUSCA, reflecte-se a vários níveis:
– Doação de armamento
– Instrução das Forças Armadas
– Assessoria e Segurança (incluindo do presidente)
– Medidas políticas
– Influência sobre os grupos armados no processo de paz
– Colunas humanitárias… ou coisa que valha. Há colunas “humanitárias” russas com protecção blindada e mercenários que vêm do Sudão (pela fronteira no nordeste, em Birao para Ndele ou para Kaga Bandor,o antes de se dividirem: uma parte da coluna vai para Bria e outra para Bangui) e que ninguém controla (nem sequer a MINUSCA).
A primeira entrega de armas e munições russas teve lugar no ano passado.
O plano prevê mais fornecimentos…
Milhares de armas de todos os tamanhos e feitios e milhões de munições calibre 7.62 e 5.45, etc.
A ajuda internacional nunca é desinteressada…
Há quem pense que a intenção real da Rússia na República Centro-Africana é testar uma abordagem pluridisciplinar (política, militar, económica e mediática) susceptível de ser duplicada noutros pontos do continente.
(Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo de Rui Araújo)
— A presença russa é uma realidade neste país. Portanto, temos que ter em conta esse facto. Não é só neste país como sabemos… A presença russa tem um plano estratégico, que não é um plano desconhecido para África, portanto, há claramente um regressar a África, uma influência a todos os níveis em África do ponto de vista político, do ponto de vista operacional e até nas áreas mais ligadas aos recursos, nas áreas comerciais. Portanto, a Rússia está presente. Como é que a Rússia iniciou a sua actividade aqui na RCA? Iniciou-a com oferta de armamento para equipar as Forças Armadas centro-africanas. Isso foi a porta de entrada. — explica o general Hermínio Maio, comandante da Missão da UE na RCA.
A União Europeia está a apoiar a “transição para a paz” (sic). O acompanhamento é político e militar. E o responsável europeu da missão de treino das Forças Armadas da República Centro-Africana é um general português…
A coluna faz um alto!
É preciso avaliar a situação.
O inimigo, aqui, nunca está longe.
É dada ordem de marcha.
E o que conta em campo aberto é a cadência.
E a melhor forma de sobrevivência.
Esta guerra é complexa e surpreendente…
Campo Kassai.
Marchar é preciso…
É mais um dia de formação.
Esta manhã são os militares do Batalhão de Infantaria Territorial 4.
Duas companhias: 336 homens e 8 mulheres.
Têm pouco mais de 3 meses para apreender a arte da guerra.
— Alistei-me no exército centro-africano só para apoiar o meu país. Só para defender a integridade territorial do meu país, mas hoje infelizmente não há paz no meu país. Estou, portanto, decepcionado com o que está a acontecer no meu país. Pois, eu peço mesmo a Deus. Se Deus me der a paz no meu país é o suficiente. — confessa o cabo BIT 4, Régis Moresse.
Treino operacional e educação.
O projecto é de Bruxelas.
Os 46 formadores de 5 nacionalidades são, essencialmente, europeus.
A crise — para não dizer a guerra — começou há sete longos anos.
O pais é um dos mais pobres do Mundo apesar da riqueza: diamantes, ouro e urânio.
Os grupos armados são um dos problemas.
— Chegou-se a um nível básico de crueldade entre as pessoas que é incrível e que é difícil de aceitar. Da minha experiência noutros países africanos, obviamente pensei que seria difícil ver pior, mas o pior existe aqui na República Centro Africana. E se nós considerarmos que estamos no coração de África, isto deve naturalmente interpelar-nos. — conclui o comandante da Missão da União Europeia na RCA.
Treino de tiro com dois instrutores de Portugal e um de França.
A arma é a AK 47.
Calibre 7.62.
Há 10 atiradores de cada vez.
4 posições de tiro.
São 2 tiros por posição.
As distâncias são 25, 50, 80 e 100 metros.
O responsavel, esta manhã, é um sargento-mor francês – de Infantaria de Marinha – que não poupa nada nem ninguém.
— Zero! Não é o seu primeiro zero! Você é um adepto do zero. — grita um sargento francês.
A ideia é atirar a matar.
O alvo é para atingir no centro, mais exactamente na zona laranja.
A dificuldade é tirar a mirada – alinhar o ponto de mira com o centro do alvo.
— Temos que insistir muito mais porque é mais difícil a compreensão deles. Por exemplo, quando estamos, aqui, numa acção destas, não tenho ali alguém sempre ao meu lado para traduzir. Tenho que andar em cima deles. Conduzi-los muitas vezes para a acção. Faz assim… Faz assim… muitas vezes por gestos. Falo francês e eles não compreendem. Já sei algumas palavras em sangho, mas só isso não chega. Então, temos de estar em cima deles nesse aspecto. — afirma o primeiro-sargento Pedro Monteiro.
Mudança de cenário.
É dia de táctica de pelotão de combate.
Deslocamento para a área do objectivo.
Não há tempo a perder.
O perigo na zona de morte é uma constante.
O grupo de assalto avança.
É preciso limpar o objectivo. O português orienta o movimento, corrige os erros.
O primeiro inimigo é abatido. A fingir, claro.
Inimigos neutralizados.
Operação terminada.
42 homens e uma mulher partem.
É o momento do balanço.
— O grande desafio, aqui, serão exactamente os meios. Sabemos que estamos com fracos recursos e também temos que ter atenção a isso, adaptar-nos às condições que eles têm e dar-lhes ferramentas de forma a eles não fazerem porque sim, mas perceberem porque é que o fazem. — complementa o alferes Roque Seguro.
A esperança — e o caminho a percorrer será necessariamente longo e penoso — é o horizonte, um dia, daqui a algum tempo, sabe-se lá, ser feito de democracia e de paz.
—A formação vai prosseguir e é tanto mais importante quanto a guerra continue.
Os rebeldes controlam 80 por cento do território do país. Os acordos de paz — e não são poucos, já vamos no oitavo — sucedem-se, mas até hoje resumiram-se a estrondosos fracassos. — conto dentro de um helicóptero cheio de militares da RCA.
(Foto: Rui Araújo)
Bokolobo.
Umas semanas depois dos combates.
À entrada da cidade a barreira do grupo UPC.
Há homens armados e de todas as idades por toda a parte.
Bokolobo é um desses lugares onde a guerra parece humana…
Fomos ter com os inimigos dos paraquedistas portugueses, aqui, no seu quartel-general.
O grupo UPC perdeu dezenas e mais dezenas de combatentes, mas continua a controlar a cidade e a região.
Centro de Saúde de Bokolobo.
No pátio que faz de sala de espera…
Aichatou Nouhou.
9 anos.
Foi para Pombolo para fugir da guerra. Não escapou à fome.
Aichatou está a morrer. De malnutrição aguda.
É muçulmana. Mas Deus (seja ele qual for!) não mora aqui…
No interior do estabelecimento uma doente acamada espera…
Tem 32 anos. É camponesa. Cuida da terra a 10 quilómetros daqui. Perdeu os sentidos por causa da fome…
Os poucos medicamentos que há são distribuídos.
Principais diagnósticos para os 14 mil 330 doentes: diarreia, malária, infecções, mais as doenças associadas à malnutrição.
— Quando vejo as crianças que sofrem, magras, e não temos nada para lhes dar, dói… Dói-me porque pedimos muitas vezes à Comunidade Internacional para ajudar essas crianças e ninguém as ajuda… Há vezes em que as crianças morrem de fome… — narra Jean Claude Dounia, chefe do Centro de Saúde de Bokolobo.
— Portanto, há a guerra…
— Há a guerra… Há o conflito armado que abalou as duas etnias: muçulmanos e cristãos. O sofrimento é o mesmo para todos. É o mesmo problema. É o mesmo problema…
— E está optimista?
— Eu sou optimista. (PAUSA) Eu sou optimista…
O Centro de Saúde não tem médico, não tem ambulância, não tem remédios que cheguem…
A agonia é lúcida para a maioria desta gente.
Olhares que nos interpelam…
— Há crianças que vêm cá e que morrem por causa da malnutrição. Peço aos parceiros… às pessoas de boa vontade para nos ajudarem a salvar a vida das crianças com problemas nesta aldeia. — diz em forma de lamento Kaleb Kette-Ouabolo, o auxiliar do Centro de Saúde.
— Então, aqui, vive-se com… Há a guerra. Há a miséria. Há a fome… Que vida é esta, aqui?
—Aqui, bem, é certo que a guerra reina, mas nós continuamos a viver juntos, cristãos e muçulmanos. Mas a miséria e a fome ultrapassam-nos. A fome e a miséria ultrapassam-nos porque, vocês sabe, na guerra que devastou este país muitas pessoas dos dois lados perderam os seus pertences, mas continuamos a viver juntos.
— Não é uma guerra de religião?
—Não é uma guerra de religião, não.
— É uma guerra de quê?
— É um assunto do Estado. Não é uma guerra de religião…
Esta gente luta com afinco para sobreviver, aqui, fora de mão e longe de tudo…
Aproximo-me de um doente.
(Foto: Rui Araújo)
— Deve ajudar-me. O corpo, sofro muito. Como? O que está a acontecer-me? Preciso de ajuda para salvar-me. É isso que lhe peço. — implora o ancião Paul Dolokepa.
— A vida, aqui, é difícil?
— É difícil, se souber como estamos. Eu luto. Eu quero dar uma explicação para que possa ver em que condições me encontro. O que se passa comigo? Porque estou assim, tão magro?
— Come todos os dias?
— Eu não como quase nada! O comer é mandioca.
À falta de mandioca há quem mate a fome com as mangas.
Os rebeldes do grupo UPC não estão longe. E tanto andam fardados como não. Depende… De quê? Não sabemos.
— Adamu Hassan. Tenente da UPC. — comunico ou pergunto ao rapaz que aceitou
falar.
— Sim.
— Tem que idade?
— Tenho 22 anos. Aqui, na República Centro-Africana… Estou com as pessoas da UPC. Era o que eu queria. Há outros colegas queriam ser polícias ou gendarmes. Os outros queriam ir para as Forças Armadas. Queríamos ir para as Forças Armadas da República Centro-Africana.
— Para fazerem o quê?
— Porque… Porque a UPC é um bom movimento para as pessoas fazerem o nosso país ir para a frente. A UPC não queria a guerra. É um bom movimento.
— E porque razão é um bom movimento?
— Porque a UPC não queria desordem. É um bom movimento. Queria a paz…
— E a guerra para um jovem de 22 anos é o quê?
— A guerra não é bom, mas na República Centro-Africana nós… nós… (Engasga-se)
— O que é a guerra para um jovem?
— A guerra… A guerra não é bom. O que nós… o que nós desejamos para o nosso país é bom.
A propaganda inculcada dá sempre um discurso prudente…
E tudo tem dois sentidos…
É tarde de mais para perguntas de circunstância.
Esta gente é perigosa.
Há meia dúzia de meses, 200 a 400 combatentes do grupo UPC mataram com o apoio de civis mais de 100 pessoas (incluindo mulheres e crianças, algumas foram queimadas vivas) no campo de deslocados de Alindao.
Estamos no território dos inimigos dos paraquedistas portugueses. E não só…
Chegada do general Ali Darassa, o líder do grupo armado UPC.
Pompa e circunstância. E demonstração de força.
(Foto: Rui Araújo)
O guerrilheiro pretende tirar dividendos do acordo de paz celebrado há semanas, mas recusa fazer cedências significativas.
A coisa promete…
— Os grupos armados, incluindo a UPC, vão integrar o governo da República Centro-Africana. Uma paz duradoura é possível, agora, neste país?
— Como você disse, os grupos armados e o governo celebraram um acordo e até agora as coisas têm corrido muito bem. Estão a correr bem, mas não sabemos como é que vai ser no futuro. — responde-me o general em Fula.
— Qual é o maior desafio para si, agora?
— O maior desafio é a organização das unidades especiais mistas. Se essas unidades foram correctamente constituídas, pensamos que pouco a pouco o resto correrá bem.
— Os combates em Bambari e, aqui mesmo, em Bokolobo há pouco tempo foram sangrentos. Os paraquedistas portugueses participaram. O que aconteceu de facto? Qual é a sua versão dos acontecimentos?
— O que aconteceu em Bambari e aqui… A MINUSCA e mais exactamente o contingente português foram ludibriados pelo governo da República Centro-Africana. Nessa altura, ainda não tínhamos chegado a um acordo com o governo. O governo enganou-os e eles começaram a lutar contra nós. Os combates foram particularmente sangrentos e houve baixas dos dois lados. Em nada ajudou este país…
— Houve quantas baixas do seu lado?
— É impossível dar números. Feitas as contas, foi a população civil quem mais sofreu…
— Há cerca de ano e meio, aqui, em Bokolobo estávamos ali sentados e disse-me que não tinha má opinião dos portugueses. Faço-lhe a pergunta hoje. O que pensa dos portugueses?
— Não temos problemas com os portugueses. O que aconteceu foi um incidente. O governo enganou-os. Eles avançaram. Aconteceu o que aconteceu. Isso, hoje, pertence ao passado.
— Tenho só mais três perguntas. Qual é o seu sonho para a República Centro-Africana?
— O nosso maior sonho para a República Centro-Africana é que haja paz. E que cada cidadão possa circular livremente…
— E para a UPC? Qual é o seu sonho?
— O sonho para a UPC é podermos integrar as Forças Armadas da República Centro-Africana e que a UPC possa contribuir para a segurança da população e do país.
Os grupos armados proliferam no país. Controlam o território e os recursos.
As Forças Armadas pouco ou nada podem fazer…
A capital, Bangui, continua praticamente isolada do resto do país.
(Foto: Rui Araújo)
O destino colectivo desta gente ainda é um espantalho dentro e fora do país apesar do oitavo acordo de paz…
(1) Referência implícita ao grande livro sobre a guerra de Norman Mailer
NOTA:
Reportagem emitida originalmente na TVI, em 3 de Junho de 2019 [VER AQUI].
Nota: Esta reportagem tem uma primeira parte: “Troquei a arma por uma máquina de costura“.
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