VISTO DE FORA

O circo máximo de Ventura

person holding camera lens

por Tiago Franco // Março 29, 2024


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Começamos a perceber, por esta altura, um pouco melhor daquilo que é o plano do Chega para esta legislatura. Corrijo: o plano de André Ventura. O Chega, mesmo com 50 deputados, continua a ser o partido de um homem só, que se desdobra em entrevistas e que, diariamente, é entrevistado por um canal qualquer para dizer uma série de alarvidades, desmentidas 10 minutos após a saída do estúdio.

Ventura vive, entre nós, aquele famoso momento Trump: “poderia dar um tiro em alguém na Quinta Avenida e, mesmo assim, nada me aconteceria”.

Para os eleitores do Chega, não há um incómodo com o chorrilho de mentiras que o querido líder debita em cada entrevista? Bem sei que tudo é dito com uma altivez de estadista indignado, mas, no fim, são apenas mentiras.

A última foi sobre o deputado eleito pelo círculo europeu, ilegal em França e expulso por via disso, que, segundo Ventura, tinha dado o “salto” para fugir à guerra do Ultramar… em 1976. Provavelmente, ninguém lhe tinha contado que a revolução acontecera dois anos antes. Também pode ser isso. Ele podia acreditar que estava a fugir de uma guerra, como Ventura acredita que está a fazer o trabalho de Deus. O nosso, o filho do carpinteiro; pois, se forem enviados de outro deus qualquer, a começar pelo profeta, é dar-lhes guia de marcha, que o Martim Moniz já está a rebentar pelas costuras.

Mas tudo bem. A mentira não vos incomoda, até por que “todos os políticos são iguais”, certo? Mentem de manhã até à noite.

Sendo assim, o que dizer do partido que se declara anti-sistema e que se prepara para “limpar Portugal”, mas que só aceita as regras do jogo se fizer parte do arco da governação? Há mais sistema do que isso?

Ao verem a chantagem diária e o pedido incessante de Ventura para que o deixem jogar também (leia-se entrar no governo), não ficam com a sensação de que ele nunca quis limpar nada, mas quer, simplesmente, chegar com a mão ao pote? Não? Também não? Tudo bem. Temos tempo para lá chegar.

Se este triste espectáculo da eleição do Presidente da Assembleia da República nos ensinou algo, foi a percebermos, desde a primeira hora, aquilo que o Chega vai fazer nesta legislatura.

É relativamente simples: Ventura vai chantagear, todos os dias, Luís Montenegro. Ou passa a bola, ou terá problemas para aprovar tudo e um par de botas, a começar pelo Orçamento do Estado, e ficando, assim, obrigado a negociar com o Partido Socialista.

Para isso, vai repetir sete vezes ao dia que o Chega representa 20% dos eleitores, deixando de parte, como é óbvio, os restantes 80% que não quiseram ser representados por uma força extremista que não respeita a Constituição Portuguesa. Mais: muitos desses 80% votaram em partidos de direita que disseram, a partir de certa altura da campanha eleitoral, que não haveria coligação com o Chega. Esses, a maioria, são os primeiros que devem ser respeitados, e o “não” de Montenegro, deve mesmo ser não, apesar de algumas pressões que chegam de dentro, nomeadamente pelo CDS.

Ouvi Cecília Meireles – uma personagem particularmente irritante pelas tentativas de normalização da extrema-direita – dizer que “era o que faltava que a Aliança Democrática não pudesse falar com o Chega, quando o PS fala com partidos antidemocráticos como o PCP e o BE”.

Ora, eu já aqui expliquei, algumas vezes, que comparar um partido que lutou pela democracia e que defende diariamente a nossa Constituição, com outro que a quer ignorar e fazer tábula rasa dos direitos que lá estão inscritos, é uma daquelas idiotices sem tamanho. É a nova narrativa que a direita e alguns comentadores com espaço em horário nobre vão ensaiando.

Primeiro, o PCP era “negacionista” porque organizava o Primeiro de Maio ou o Avante, seguindo todas as regras de distanciamento. Como, por exemplo, acontecia na Suécia. Depois, o PCP passou a putinista, porque, apesar de falar mal de Putin desde 2000 (quando a União Europeia lhe beijava os pés a troco de gás), defendia uma solução de negociação para a guerra da Ucrânia (que obviamente acontecerá, como a Administração Biden já assumiu). Agora que é necessário validar uma aberração antidemocrática como o Chega, o PCP também é pau para toda a obra, entrando nas mentiras de um contra-ponto à esquerda.

O PCP é o Fredrik Aursnes da política portuguesa.

Aquilo que eu espero, sinceramente, é que o Ventura não cesse de falar em estabilidade, enquanto chantageia o Governo diariamente. Aliás, até desejo que o faça até nova queda e eleições. Pode ser que chegue à maioria absoluta no próximo sufrágio e aí, todos os pobres, trabalhadores e dependentes do Estado social que votaram nele, percebam finalmente o buraco em que se meteram.

Até lá, é desligar a Fox Comedy e sintonizar no canal do Parlamento.

Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.