Ele corre pela pista fora. Pequenino. Muito magro. Moreno. Cabelo levemente ondulado. Olhos e lábios inchados. Brilhantes como os de quem chorou longas horas.
Veste uns calções pretos e brancos de turco. No peitilho, um urso conduz um carro vermelho. E ele corre. Veloz. Os braços acompanham o ritmo. Agarro-o. Agarramo-lo os três. Um sopro de felicidade envolve o reencontro.
É esta a imagem que retenho do regresso a Portugal. Da primeira vez que vi o meu irmão. Uma falsa memória, porém. Hoje sei que não foi assim. E sei-o simplesmente porque não pode ter sido. Os factos contrariam a curta-metragem que a minha mente gravou. E, contudo, é tão viva, tão clara quanto a dos meus dedos a saltitar sobre o teclado neste momento. Talvez por isso, nunca me ocorreu perguntar como foi a chegada. Assumi sempre que sabia. Só recentemente me apercebi das incongruências e questionei a veracidade das minhas memórias.
Uma criança a correr solta pela pista de um aeroporto. A família a aguardá-la junto ao avião. O suficiente para questionar este episódio. Não o fiz. Nem sequer desconfiei da perspetiva. Vejo o pequenito lá ao fundo, de frente para nós. Apesar da distância que nos separa, um grande plano permite-me observá-lo em pormenor. Começa a correr e, nesse momento, acompanho o trajeto colocando-me ao seu lado. O vento afasta-lhe o cabelo do rosto e vejo-o de perfil. O meu olhar desliza, foca-o de perto. É uma câmara sobre carris. Sempre ao seu lado. E ele corre célere, ansioso, em direção a três desconhecidos.
Três. Insisto neste número nem sei bem porquê. O pai que tinha então bigode e segurava a minha mão esquerda enquanto descíamos a escada do avião. O pai que correu para abraçar o filho que tinha visto uma única vez e o levantou no ar à nossa frente, não viajou connosco. E, todavia, vejo-o nitidamente. Um sorriso inconfundível. Mas não estava lá. Regressámos sós, a mãe e eu. A desmobilização dos soldados ocorreria meses mais tarde. A reunião da pequena família, mais uma vez adiada. 25 de abril. Um dia extraordinário. Mas um dia que foram dias, anos, décadas. Que não aconteceu em simultâneo para todos e ainda está por acontecer para muitos.
Nem mesmo a felicidade que me lembro de sentir enquanto vi o meu irmão pode ser real. Não o conhecia. Não conhecia ninguém. Tinha acabado de ser arrancada ao lugar das minhas primeiras memórias. Afastada da minha única realidade: do pai, dos amigos, da casa, dos animais de estimação, das cores, do cheiro a caju e mangas maduras.
A decisão de nos juntarmos ao pai em África revelar-se-ia trágica. A separação deixa marcas indeléveis. A partida nunca é verdadeiramente compreendida ou aceite por quem fica. Corrói a alma o sentimento de se ter sido deixado para trás, de se ter sido privado de uma vida que existe apenas para os que partiram. Ele nunca se encaixará no nosso pequeno mundo. Estará ausente das nossas histórias, das nossas aventuras, das nossas canções. Nós. Um nós que não desejámos. Que se supôs transitório e se fez perene. Ele nunca pertencerá. Crescerá na incerteza de nos amar ou odiar profundamente. Insegurança, carência, agressividade, dor, desespero. Um ressentimento que, passados 50 anos, determina ainda as nossas vidas. Uma ferida reaberta em cada almoço de domingo, em cada jantar de Natal, em cada aniversário, minando-os até à sua extinção.
A ilusão de que aquele dia poderia devolver-nos a uma ordem primordial idealizada esboroou-se lenta e impiedosamente.
A verdade é que o meu irmão não correu para nós. Nunca correu para nós. Nunca voltámos a ser família. Cinco décadas decorridas e os nossos mundos ainda não se encontraram.
O 25 de abril acontece aos poucos. Vai chegando e recuando, e chegando mais um pouco. Chegará, certamente. Mas nesse dia já cá não estarão os que conhecem o significado de não ser abril.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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