VISÃO DA GRAÇA - A Opinião de Elisabete Tavares

Carta aberta aos nascidos nos anos 70 e 80

Groud Level Shot of Ghettoblaster

por Elisabete Tavares // Abril 8, 2024


Categoria: Opinião

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Num vídeo, que se tornou viral, um rapaz mostra-se a bater com o ombro numa porta e imita as reacções ao acidente conforme as diferentes gerações. No caso dos nascidos nos anos 70, depois de irem contra a porta, prosseguem indiferentes. Os nascidos na década de 80 entram em confronto verbal com porta. Os nascidos nos anos 90 levam a mão ao ombro com dor ligeira e reviram os olhos. Os nascidos depois dos 2000 fazem um drama, caem no chão e aproveitam para tirar uma selfie com muitos # de vitimização. Certamente que alguns fariam hoje um vídeo curto sobre o ‘acidente’ para o TikTok.

Mas este tipo de vídeos e memes, apesar de poderem ser engraçados, estão longe de representar a triste realidade: grande parte da corajosa malta nascida nos desafiantes anos 70 e 80 transformou-se, rendeu-se e traiu a sua geração (e as suas promessas).

Estas gerações que assistiram ao nascimento e infância da democracia em Portugal, no pós-25 de Abril, que assistiram à queda do Muro de Berlim e ao fim da Guerra Fria, estão, na sua maioria, em silêncio perante o regresso da cultura de censura e repressão. E estão em silêncio, na sua maioria, perante o regresso do poder dos senhores que promovem (e lucram) com as guerras.

Uns ter-se-ão esquecido quem são devido ao conforto do carro na garagem do condomínio, aos centros comerciais gigantescos, à era do consumo, do smartphone e da Netflix. Outros sentem-se derrotados por décadas de baixos salários, empregos precários e por não verem a luz ao fundo do túnel. E estes também esqueceram quem são.

Outros, estarão doentes, cansados, desanimados. Mas todos estão rendidos e renegaram, sem saber, às suas promessas de juventude.

Mas, quer estejam aburguesados, doentes, ou desanimados, assisto, triste, a muitos da minha geração parados, impávidos perante o assalto à democracia e à liberdade que estamos a sofrer na Europa. Em vez de lutarem contra os fortes ataques à democracia em Portugal e na Europa, entretêm-se a publicar quase só fotos de gatinhos, a pôr likes em posts de celebridades e influencers e a encher os seus bolsos pagos pela publicidade encapotada. Em vez de lutarem pela defesa da liberdade de expressão e liberdade de imprensa, apoiam aqueles mass media que estão em perseguição dos que estão a defender a liberdade de expressão, a democracia e a lutar contra a censura.  

white cassette tape close-up photography

Muitos da minha geração pensam mesmo – imagine-se – que em Portugal se vai mesmo celebrar os 50 anos de Abril. E acreditam que os comentadores que nas TV falam sobre as cinco décadas da Revolução dos Cravos são mesmo, na sua maioria, defensores da democracia. Muitos da minha geração ignoram o que se está a passar. Ignoram que muitos dos comentadores são pró-censura e pró-leis tiranas. E pró-guerra e pró-condicionamento das liberdades civis e dos direitos humanos, ‘pelo bem de todos’.

Não entendo. Custa compreender.

Quando me perguntam, por exemplo, porque tantos jornalistas têm estado em silêncio e pactuado com a censura e a cultura de tirania pró-ditadura (reflectida em leis e políticas de governos ocidentais), respondo: “porque são jornalistas espertos”. São espertos porque defendem o seu ganha-pão, o seu sustento. Sabem que estamos a viver numa era em que regressaram as tendências pró-ditadura – agora disfarçadas sob capas de combate à desinformação e luta contra a ‘extrema-direita’.   

Já nem falo das estrelas de cinema que tanto me desiludiram nos últimos anos, ao defenderem a censura, nomeadamente nos Estados Unidos, ou a violação da soberania sobre o próprio corpo. Já nem falo das estrelas do rock e da pop que deram concertos apenas a audiências segregadas, apoiando uma cultura ignóbil de discriminação entre seres humanos.

Falo aqui das pessoas comuns, as que, como eu, frequentaram os bailes ao ar livre nos anos 90, em Lisboa. As que iam ao cinema sempre que podiam. As que sabem de cor os diálogos de ‘The Breakfast Club’ ou do ‘Assalto ao Arranha Céus’. As que ouviram vezes sem conta ‘Get up, Stand up’, de Bob Marley. É para elas que escrevo este texto. Onde estão? O que vos aconteceu?

Na Europa, a antiga ministra da Defesa da Alemanha, a Sra. Von der Leyen, arrasta o nosso Continente para uma guerra sem fim. O anúncio de uma ‘Economia de Guerra’ na União Europeia não despertou a minha geração para a acção?

Onde estão os pacifistas da minha geração? Onde estão os pacifistas em geral, os que sabem que as guerras são monstros para alimentar lucros de multinacionais e os bolsos dos políticos (e dos seus filhos) que as promovem?

Onde estão os pacifistas portugueses? Onde estão os pacifistas europeus? Onde estão os pacifistas do Ocidente? Onde estão os pacifistas do Mundo? Estarão enfiados em shoppings a comprar o último iPhone ou a viajar pela América do Sul? Estarão entretidos a lavar o seu novo carro eléctrico ou a fazer like no seu influencer preferido? Estarão a assistir todo o fim-de-semana aos inúmeros jogos das diferentes Ligas? Estarão distraídos a ver (de novo) ‘aquela série’ da Netflix? Ou estão quebrados por doenças e a sentir-se vítimas de uma vida ‘que os tem maltratado’?

Onde estão os corajosos, lutadores e destemidos ‘jovens’ da geração de 70 e 80? Onde estão os jovens inspirados a fazer um bypass ao status quo depois de ver o ‘Clube dos Poetas Mortos’? Onde estão os apaixonados e utópicos ‘jovens’ que têm ainda a cassete VHS com o filme (que viram no cinema) sobre ‘Cyrano de Bergerac’?

E os jovens que gravavam as cassetes com as músicas das rádios pirata? Onde estão?

Não estranham que, ao fim de tantos anos, não se consiga acabar com os sem-abrigo, a fome e a pobreza, mas que haja sempre milhares de milhões para armas, bancos, ‘a economia’ e as guerras?

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Não estranham que tenham sido aprovadas, nos últimos tempos, leis na Europa que condicionam a liberdade de imprensa e de expressão? E não estranham que haja em Portugal movimentos de grandes partidos no Parlamento para mutilar de forma impensável a nossa Constituição? Não estranham que esteja a ser desmembrado o conceito de direitos humanos nas alterações ao Regulamento Sanitário Internacional da Organização Mundial da Saúde que estão a ser negociadas por países, incluindo Portugal?

Não estranham que políticos supostamente de esquerda sejam a favor da censura e da repressão e estejam a perseguir ‘opositores’? (É ler este artigo sobre a reacção de Musk à repressão em curso no Brasil).

Não estranham que haja censura em 2024 e que tudo o que seja ‘contra o regime’ é ‘desinformação’ e ‘extrema-direita’ (na pandemia eram negacionistas e anti-vacinas’)? Não estranham que muitos dos mass media apoiem a censura e sejam hoje máquinas de propaganda?

Malta: a torre Nakatomi está em chamas e a nossa geração anda a pôr likes em selfies?

Nós vimos John McClane descalço, ferido, sozinho, a dar cabo dos assassinos gananciosos e com ar sofisticado! E vimos centenas de filmes com heróis a defender a democracia, a liberdade, a lutar contra os maus!

(Foto: D.R.)

Alugámos dezenas de cassetes de vídeo de filmes em que se lutava contra corruptos e a ganância. Vimos ‘Erin Brockovich! Vimos ‘Alien’ e a pobre da Sigourney Weaver a matar ‘bichos viscosos e feios’ atrás de ‘bichos viscosos e feios’.  

Vimos Mulder e Dana nos ‘X- Files’. No entanto, não estranhamos que nos dias de hoje cada vez mais se perseguem pessoas que fazem alguns alertas sobre as novas leis, chamando-os de ‘teóricos da conspiração’?  Vimos ‘Matrix’ com o Neo. (E, se calhar, continuamos à espera desse ‘The One’ que nos virá salvar.)

Ouvimos Nirvana, U2, Queen, Metallica, Pink Floyd (e mais todos aqueles que não admitimos que ouvimos, como Def Leppard e Europe). Ouvimos música com sintetizadores. E também músicas com letras sobre liberdade, amor e paz.

Como é que aceitamos que se difamem e cancelem pessoas, acusando-as de ser da extrema-direita (ou outro nome pejorativo qualquer) porque defendem… a paz, a liberdade e a democracia? É isso que está a acontecer, hoje.

Nós somos a geração do Ferris Bueller! Vamos deixar que os que têm tiques de ‘bufos’, os censores e a repressão vençam? Que a nova tecno-ditadura se instale? Que o jornalismo seja substituído pela propaganda de mass media amigos do poder (que também lucram com políticas anti-democráticas e a com a tecno-censura)?

(Foto: D.R.)

Nós somos a geração de ‘The Breakfast Club’. Vamos deixar que as próximas gerações vivam sem liberdade de expressão e sob repressão constantes? Vamos permitir que a guerra avance e Von der Leyen, os donos da indústria de armamento, as grandes multinacionais e magnatas pró-censura das Big Techs vençam? Vamos deixar que os mass media pró-guerra e pró-ditadura vençam?

Vamos permitir que todos os que gritam ‘paz’, ‘liberdade’ e ‘democracia’ sejam perseguidos e difamados com acusações que se tornaram cliché, de tão comuns?

Vamos poder ser quem queremos ser, vamos poder viver em liberdade? Vamos poder expressar a nossa verdade? Vamos poder fugir aos ‘carimbos’, à segregação (por género, etnia, nome de família, conta bancária, ….) e procurar viver numa sociedade que se baseia em valores e princípios mais elevados?

Lembram-se da carta que Brian Johnson escreveu naquele Sábado de detenção n’ ‘O Clube’, num famoso dia 24 de Março? Começa com “Dear Mr. Vernon” e termina assim: “You see us as you want to see us: in the simplest terms, in the most convenient definitions. But what we found out is that each one of us is a brain, and an athlete, and a basket case, a princess, and a criminal. Does that answer your question? Sincerely yours, The Breakfast Club.”

Não interessa como (nos) vos vêem. Sabemos quem somos. E nós somos a geração de 70 e 80. E não sabemos apenas ‘quem’ somos. O mais importante é que sabemos o que podemos fazer. Juntos.

carnation, flowers, red

O que quero acreditar é que, apesar do conforto e do aburguesamento, apesar da doença ou da pobreza, ou dos shoppings, da Netflix e do carro-na-garagem, ainda há ‘jovens’ genuínos dos anos 70 e 80, por aí.

Não falo só da malta que andava com joelhos e os cotovelos feridos de jogar na rua e no asfalto. Não falo só da malta que não se detém perante o embate em portas. Falo da malta que tem a liberdade no sangue, a democracia nos genes e a rebeldia nas células. Falo da malta que tem a poesia da música na alma e no coração. Da malta que se inspirou em Gandhi, que leu Pessoa, que leu Espanca.

Acredito que muita dessa malta que tem estado adormecida, embalada com as selfies, o futebol, as férias no paraíso (a crédito, às vezes), o conforto do carro na garagem, ainda têm um pouco de rock em si e se lembram quem são.

Acredito que muita dessa malta que pode estar doente, sem dinheiro, triste, ainda tem muita garra e coragem para ‘dar e vender’.

people, friends, together

São os da geração que viu Sarah Connor e John McClane. São vocês, aí. E estão a tempo de ser os heróis das gerações futuras, se lutarem contra os novos censores, os senhores (e senhoras) da guerra e a cultura pró-ditadura.

Podem até fazê-lo com selfies e com gatinhos. Ao som de rock ou de pop. Ao estilo de Ferris Bueller ou de Mulder. Mas façam-no. Porque não acredito que “quando se cresce, o nosso coração morre”, como disse Allyson. Pelo menos, espero que não.

Elisabete Tavares é jornalista


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