Se um Governo quiser impedir o acesso a documentos da sua função político-administrativa tem agora um bom argumento ‘fornecido’ por um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS): basta que diga que possuem natureza política. No decurso de uma intimação do PÁGINA UM para acesso ao inquérito sobre incompatibilidades preenchido por Caleia Rodrigues antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em Fevereiro do ano passado – o único que o fez ainda durante o Governo Costa –, três desembargadores do TCAS, entre os quais um ex-inspector-geral da Administração Interna, vieram agora confirmar uma sentença de há um ano do Tribunal Administrativo de Lisboa. Para os desembargadores, aqueles inquéritos – que terão sido agora também preenchidos pelos membros do Governo Montenegro – são de natureza política, o que implica o seu imediato secretismo. Como a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, criada em 1993, se mostra ambígua sobre os documentos que não são administrativos, significa que esta tese do TCAS, a fazer jurisprudência, concede o direito a qualquer membro do Governo alegar que todos os ofícios, estudos, relatórios e pareceres têm um cunho político, evitando assim a sua divugação. E mesmo o acesso a jornalistas.
Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), aprovado no final do mês passado, concede, de forma indirecta, a receita para qualquer Governo, no contexto da actual Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), fugir à transparência: alegar que relatórios, inquéritos ou outras quaisquer decisões escritas ou em formato digital são documentos políticos. Esse ‘truque’ transforma-os em documentos secretos, independentemente de qualquer classificação.
Em causa estava um processo de intimação do PÁGINA UM para o acesso aos inquéritos dos convidados a integrarem os Governos, designadamente ministros e secretários de Estado, uma prática introduzida por uma Resolução de Conselho de Ministros no início do ano passado, mas que foi apenas usada no Governo de António Costa uma única vez. Gonçalo Caleia Rodrigues, antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em 15 de Fevereiro de 2023, foi o único que preencheu o inquérito, ao qual o PÁGINA UM pedira o acesso, que foi recusado pelo Governo de António Costa. Com a entrada em funções dos novos ministros e secretários de Estado do Governo de Luís Montenegro, terão sido, eventualmente, preenchidos novos inquéritos, embora com este acórdão não seja possível sequer conseguir confirmar documentalmente a sua existência.
Aprovado por unanimidade, o acórdão do TCAS assinado por três desembargadores, o primeiro dos quais é Pedro Figueiredo, inspector-geral da Administração Interna entre 2015 e 2019, tendo recebido um louvor do então ministro Eduardo Cabrita aquando da sua saída daquelas funções. Os outros dois desembargadores foram Marcelo Mendonça e Carlos Araújo.
A decisão do tribunal é muito lacónica e nem se perde sequer em grandes considerações. Ocupa pouco mais de duas páginas e confirma uma sentença de Abril do ano passado do Tribunal Administrativo de Lisboa com 10 páginas. O PÁGINA UM alegara que, embora se estivesse perante acto preparatório de uma decisão política – a posterior nomeação de governantes –, o inquérito (o documento em si) constituía o cumprimento de um requisito administrativo, emanado de uma lei, tanto mais que era preenchido por alguém que não exercia ainda funções governativas, sendo antes um pré-requisito de um cidadão para ser nomeado pelo primeiro-ministro ou por um ministro. Além disso, o PÁGINA UM salientava que, tendo a dita Resolução do Conselho de Ministros, justificado o inquérito pela “importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, o secretismo em redor do seu conteúdo era incongruente para esse propósito.
Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros estipula que “uma vez preenchido, o questionário [pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.” A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.
Contudo, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”
Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.
Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”
Em todo o caso, esta justificação nem sequer seria necessária, na interpretação dos juízes e desembargadores do Tribunal Administrativo. No acórdão, que confirma a linha de uma primeira sentença, conclui-se que “o preenchimento do dito ‘questionário de apreciação prévia’ insere-se no processo de escolha dos membros do Governo, pelo Primeiro-Ministro, tal actividade é política, não administrativa e visará salvaguardar o prestígio do Governo”. E dizem ainda os desembargadores que “as restantes preocupações referidas pelo recorrente [PÁGINA UM], nomeadamente o desejo de averiguar se o Governo deu cumprimento à Resolução Fundamentada referida nos autos, não são susceptíveis de alterar o decidido, porquanto a LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos] não o permite”.
Este acórdão abre, deste modo, uma panóplia de possibilidades a qualquer Governo em considerar político todos os pareceres, relatórios ou mesmo troca de comunicações elaborados para a posterior tomada de uma decisão ministerial ou do Conselho de Ministros, prejudicando assim a transparência tão propagandeada na teoria mas pouco evidente na prática. Aliás, ao contrário do que sucede em diversos países europeus, a legislação portuguesa na transparência nas decisões políticas é pouca.
Nesse âmbito, a LADA é, intencionalmente ambígua, permitindo interpretações à la carte como as do acórdão do TCAS, na definição do que não é documento administrativo. Nesse diploma, cuja primeira versão tem 31 anos, salienta-se que estão excluído do acesso “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – ou seja, não são, em princípios, acessivos mensagem de e-mail ou de WhatsApp –, ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português” e também “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação”.
Ora, este “designadamente” permite ambiguidades, porque não exclui outras actividades para além das que se referem às reuniões formais de governantes. No limite, se um qualquer governante assim desejar pode, a partir de agora, se a interpretação dos desembargadores fizer jurisprudência, alegar que todos os documentos, mesmo que aparentem ser de índole administrativa, constituem actividade política, até porque um Governo tanto administra como exerce funções políticas sendo a fronteiras entre estas funções bastante ténue ou mesmo inexistente.
Saliente-se que o PÁGINA UM, conhecendo à partida a possibilidade de insucesso desta intimação, avançou mesmo assim para que, em caso de indeferimento – como se confirmou agora –, pelo menos ficasse patente a hipocrisia de uma medida política de evidente populismo: decretou-se um inquérito prévio, em prol da transparência, para averiguar da idoneidade de futuros governantes, mas depois publicamente fica tudo secreto. No limite, pode nem sequer haver inquéritos preenchidos. E mesmo que existam, no fim das funções dos governantes, ou se os candidatos não forem aceites, a Resolução do Conselho de Ministros determina a sua destruição. Nem para os historiadores ficam. Na verdade, existirem ou não existirem os ditos inquéritos é ‘igual ao litro’. Nem servem ‘para inglês ver’.
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