Se a coragem e responsabilidade são apanágios da profissão de jornalista, recentemente houve 15 profissionais com esta carteira que preferiram jogar pelo seguro e ‘escapar’ de responsabilidades ou dos incómodos de uma defesa contra acusações injustas. E assim aproveitaram a visita do Papa Francisco para se livrarem de processos disciplinares, através da Lei da Amnistia. Quem são, não se sabe, porque a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), que revelou sempre os nomes dos visados, mesmo quando foram ilibados, os mantém agora em segredo. No entanto, na lista de potenciais beneficiados pela ‘benção papal’ terá havido quatro jornalistas alvo de processos disciplinares que recusaram receber qualquer benesse, mantendo a sua defesa. Um desses processos, ainda em curso, visa o director do PÁGINA UM por um queixa accionada pelo almirante Gouveia e Melo.
Quinze jornalistas portugueses decidiram aproveitar a amnistia papal para se livrarem de processos disciplinares, mas os seus nomes estão a ser intencionalmente escondidos pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), liderada por Licínia Girão. É a primeira vez que esta entidade com funções disciplinares não revela a identidade dos visados em processos concluídos, mesmo quando estes acabam arquivados por se provar não ter havido qualquer violação ao Estatuto do Jornalista.
Recorde-se que no âmbito da visita do Papa Francisco a Portugal para a Jornada Mundial da Juventude, no Verão passado, a Assembleia da República concedeu amnistias para as “sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que [tivessem] entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, com excepções em função da tipologia do crime, bem como as sanções acessórias relativas a contraordenações e infracções disciplinares civis e militares até àquela data, desde que, nestes últimos casos, não houvesse ilícitos penais em causa.
Contudo, a amnistia não era automática, podendo o arguido recusar que essa benesse lhe fosse aplicada, de modo a evitar que ficasse a dúvida sobre uma eventual conduta que apenas não acabara a uma sanção por via desse ‘perdão’. Aliás, o director do PÁGINA UM – alvo de um processo disciplinar, por queixa do almirante Gouveia e Melo, que decorre desde Maio do ano passado sem sequer ser deduzida acusação – foi ‘convidado’ a aceitar a amnistia papal em Dezembro passado, mas informou a secção disciplinar da CCPJ que se opunha. E salientava que “como não necessito de amnistias para defender, como jornalista, o meu trabalho que, ainda mais neste caso em concreto, reputo de rigoroso e pertinente, não poderia jamais aceitar que a CCPJ pudesse deixar no ar qualquer dúvida sobre essa matéria, pelo que aguardava com interesse a finalização da instrução do processo disciplinar”. Saliente-se que as notícias do PÁGINA UM que visaram o actual Chefe de Estado-Maior da Armada estão ainda a ser investigadas pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.
Distinta opção tiveram outros 15 jornalistas, que jogaram pelo seguro, aceitando a amnistia – que não é uma absolvição, pois simplesmente anula a existência do acto suspeito de ser ilícito. De acordo com uma listagem no site da CCPJ, relativamente a alegadas infracções do ano de 2022 foram amnistiados os processos disciplinares 5/2022, 6/2022, 7/2022, 8/2022/9/2022, 10/2022 e 11/2022, enquanto para o ano de 2023 receberam ‘perdão’ os processos 2/2023, 3/2023, 4/2023, 5/2023, 6/2023, 7/2023, 8/2023 e 10/2023. Tendo em conta que tinham sido decididos entretanto dois processos abertos em 2022 (processo 1/2022 e 2/2022), em princípio cinco jornalistas terão recusado receber amnistia.
Ao contrário da norma aplicada por todas as entidades abrangidas pelo Código do Processo Administrativo, o organismo que gere os títulos e a disciplina dos jornalistas tem pautado a sua conduta pela falta de transparência. Por esse motivo, ignora-se quem foram os jornalistas que, sendo alvo de processos disciplinares, preferiram não assumir as consequências ou não se quiseram dar ao incómodo de se defenderem condigna e corajosamente de acusações injustas.
Com efeito, apesar de em todos os anos anteriores surgir a listagem dos processos disciplinares concluídos com a respectiva decisão – que, em muitos casos, é o arquivamento –, pela primeira vez a CCPJ, presidida por Licínia Girão, decidiu esconder os nomes ‘benzidos’ pela amnistia do Papa Francisco. Em todo os processos apenas é indicado o número, o objecto – ou seja, a alegada violação do Estatuto do Jornalista – e a seguinte frase: “A SD [Secção Disciplinar] deliberou, por unanimidade, declarar extinta, por amnistia, o processo disciplinar [número] e, em consequência determinar o arquivamento dos presentes autos (Lei de Perdão de Penas e Amnistia de Infrações, Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto)”.
O PÁGINA UM pediu esclarecimentos à CCPJ e à sua presidente, Licínia Girão, sobre as razões para esconder o nome dos beneficiados pela amnistia, e para confirmar o número exacto de jornalistas que a recusaram. Não foi dada qualquer resposta. O PÁGINA UM pondera recorrer à Lei do Acesso aos Documentos Administrativos para aceder aos processos concluídos por via da aplicação da amnistia, mesmo se se mostra absurdo de ter usar esse método contra o obscurantismo numa entidade pública que, na verdade, integra oito jornalistas.
N.D. Jamais concebi, como jornalista, beneficiar de qualquer amnistia para ‘apagar’ qualquer erro que possa cometer no exercício das minhas funções profissionais, nem aceitaria que ficassem quaisquer dúvidas sobre a minha conduta que me impossibilitasse a cabal defesa do meu trabalho. Cada um é como é, mas há uma ética no jornalismo que não está sequer escrito no Estatuto do Jornalista nem nas ‘linhas orientadoras’ corporativistas da CCPJ. Aliás, a CCPJ acabou de arquivar – e bem, até por não lhe restar outra alternativa – um processo disciplinar contra mim (por iniciativa da sua presidente coadjuvada por outros dois membros do Secretariado) no decurso de uma iniciativa da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Escrevi sobre essa matéria quando me abriram o processo, agora arquivado. Também convidei a CCPJ a abrir-me um processo disciplinar depois de a sua presidente Licínia Girão ter conseguido um ‘parecer de favor’ do lastimável Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas por causa de artigos que escrevi sobre ela. A senhora presidente da CCPJ não teve sequer coragem de abrir-me um processo para tirar tudo a limpo, e o mais caricato é terem andado meses a ‘fugir’ de uma resposta até alegarem a Lei da Amnistia para não abrirem o processo. Obviamente, uma patetice, porque só arquivamento somente seria possível se houvesse processo aberto e não houvesse oposição para amnistiar. Quanto à não divulgação dos nomes dos 15 amnistiados: enfim, a questão da falta de transparência em Portugal é algo que está enraizado até no jornalismo, por isso se anda a cultivar tanto esse predicado.
Pedro Almeida Vieira
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