ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Ambição

brown and blue wallpaper

minuto/s restantes

Há um silêncio que embrulha aquele senhor, não é solene, é uma cautela, um cálculo, um sorriso de escarninho. Respostas curtas e a gotejar de desdém, esperteza, manha, diria diplomacia mas prefiro dizer ardil.

Este senhor tem a pele saudável, dentes devidamente monitorizados, perfume em aroma leve, elegante, roupa engomada e discreta. Uma aparente calma (devidamente monitorizada), senta-se de forma confortável na cadeira estofada, sem anseios ou devaneios. Boas noites de sono propiciam isto, saúde (calma).

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Há uma trança de números que embrulha aquele senhor, moedas que geram moedas e quantos algarismos sobram para ele. Trata de assuntos. Tem três telemóveis hiperactivos e vários números importantes gravados na lista de todos. Os números são importantes, porque pertencem todos a outros senhores calmos e bem engomados, alguns eleitos, outros instituídos (ungidos), nunca encardidos ou puídos pela traça.

Defronte da cadeira estofada está a mesa redonda com centro de pedra marmoreada, de novo com um brilho elegante (leve), e em cima da mesa os meus bonecos, desenhos suados de um esforço vão de tentar brincar aos sistemas, onde as pessoas vão ser roubadas e compartimentadas em caixas indignas, casas fatiadas como pão de forma, farelo, para render uma medida política, para acenar com circo (e pão), nós de forca em pescoços tensos, nada de calma, nada de escárnio, só cabeça baixa (não baixa, vergada, vergada pela bota da ambição).

Há um silêncio conivente, que nos embrulha a todos perante um senhor assim, a mão estendida é sempre solene, a cautela já pouco importa. Primeiro direito. Depois esquerda e segue-se a vénia. Obra feita para encher a boca com bolo rei, e nós todos a rabear na orla da toalha, a ver se nos cai migalhas para encher a barriga, que a vida não é só rezar e sobra pouco a oeste da meseta em tempos de terceiras guerras disfarçadas de acidentes.

stack of stack of books

Há salas assim de cadeiras estofadas e mesas debruadas a mogno, dignas, onde ocasionalmente indignos entram de mão estendida a ver o que lhes toca, ou outros disfarçam o roncar de estômago com um pigarrear tímido, ou outros fazem peito de raposa segura das suas capacidades, ou outros entram com absoluto sentido de propriedade, cautela, cálculo, calma, ardil. E todos manobram rodas para que a coisa ande (avança, avança! Se viras as costas ao sistema, o sistema vira-te as costas a ti).

Ora pois então o senhor calmo, composto, sossegado trata de assuntos. Um gavião. Uma pedra filosofal. (Se não comes estás a ser comido, sabes, sabes?)

Escusemo-nos de juízos de valor, por favor, predadores fazem parte da lei natural (sabes, sabes?), eles seguem por aí a controlar a população de lebres, a restringir o crescimento dos patos bravos. Desde que as salas continuem com umbrais selectivos, desde que as pedras não se danifiquem por palmas suadas de ansiedade, os aromas permanecem sem a intensidade dos brutos, isto é importante!

Quando o senhor se levanta, alheio a contemplações desta natureza, alheio porque genuinamente desinteressado dos novelos, (para quê novelos se já as tranças levam tanto tempo e atenção a manter apertadas?) sabemos que a conversa está encerrada. O bólide não se paga sozinho. O retemperar forças em férias onde o sol se mantém a brilhar não se sustenta a mãos estendidas. Se insistimos em novelos estranhos sobre ética e deontologia vemos a calma a perturbar-se, a impaciência sacode-lhe a anca, de repente vemos os números dos seus olhos a ponderar o quão dispensável somos, como interlocutores tão impertinentes. Que as crianças não pagam nada, e as crianças é que acreditam em heróis e vilanias.

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Convenhamos, de novo, não se atormentem a julgar o senhor. Entre o falcão e o bando de pombos são poucos os que escolhem os pestilentos gangrenados.

O senhor Ambição é um motor! Toda uma economia!

Isto no fim do dia é tudo um jogo.

Mariana Santos Martins é arquitecta


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