RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Crime sem castigo

minuto/s restantes


Três anos depois de um fogo em 1986 que vitimou 13 bombeiros e três civis — ainda hoje uma das piores tragédias causadas pelos incêndios rurais —, dois jornalistas do semanário O Jornal acompanharam as acções de combate na região Centro.


Começa o Verão e o fogo desatina a doer.

Rui Araújo atirou-se às chamas, e às causas delas. Aos meios de prevenção, existentes ou não. Esquadrinhou o cartório, à procura das culpas.

Não há Verão sem que os fogos devastem hectares e mais hectares de floresta. E surge, irremediavelmente, a polémica de sempre: quem, afinal, tem a culpa? O facto é que as soluções para reduzir a dimensão da guerra do fogo existem. E não se limitam a uma questão de meios… ou de acusações inconsistentes.


«É uma época estival fértil em fogos florestais». Esta, é a lacónica expressão dos técnicos. Já lá vai o tempo das longas metáforas sobre o penoso — e banal — psicodrama do fogo ou, mais prosaicamente, da guerra do fogo. É sempre a mesma coisa: condições climatéricas desfavoráveis, baixa humidade dos solos e alguma inconsciência das pessoas é quanto basta para que se desenhe o cenário rubro dos «rotativos», da desolação fumegante, imensa, dos olhares resignados. É o ritual do fogo.

Capa da reportagem de Rui Araújo (texto) e Sofia Pinto Coelho (fotos)

10 de Julho (de 1989) — Águeda, Região Centro.

23:10.

O bombeiro Raúl Fradique engata a «terceira». Desliga a sirene. Olha de soslaio para o comandante António Neves dos Santos — o chefe operacional da zona Centro — como que a confirmar implicitamente a iniciativa e prega os olhos na estrada de Sever do Vouga. O volume das comunicações rádio aumenta.

— Não consigo vislumbrar o clarão! Mas vamos tentar apagar isto…

— Isto é uma baralhada, pá. Vou passar a canal 3.

O 2 está na mesma! Machado, estás à escuta? É para dizeres ao comandante de Sever do Vouga para estar aí no quartel para fazermos o ponto da situação

A corrida continua. Veloz. Meia dúzia de casas do lado esquerdo da estrada. Mais à frente o café «Progresso» de portas trancadas.

O painel «Carvoeiro». E o breu da noite, entrecortado por «flashes» azulados do «rotativo». O comandante Neves dos Santos baixa ligeiramente o som do rádio e mete conversa.

— Ainda ontem tive dois fogos ocasionados por queimadas, que são proibidas. Mas demos cabo deles num instante…

— E este fogo aqui na serra. Acidental ou criminoso?

— É difícil saber se é criminoso ou não… A única certeza é que em mais de 90% dos fogos há intervenção humana…

O rádio crepita. Há mais uma chamada. Urgente. As corporações de Vale de Cambra, Aveiro Novos, Aveiro Velhos, Vagos, Ílhavo, Oliveira do Bairro e Sever do Vouga já concentraram homens e material lá para as bandas do Lugar do Coval, Mouta, Campo de Arca e até Agros. O fogo está a avançar — e depressa — para a Serra do Arestal. A coluna de Águeda acelera.

Início da reportagem de Rui Araújo publicada n’O Jornal Ilustrado. Foto: ©Sofia Pinto Coelho

1986 nunca mais!

O comandante Neves dos Santos controla quatro concelhos — 25% da área florestal com árvores de crescimento rápido — da Região Centro. Uma das regiões mais problemáticas do País.

«Na noite de 13 de Junho do ano de 1986, sensivelmente pelas 22:00 declarou-se um foco de incêndio florestal próximo de São João do Monte, concelho de Tondela. Era o anunciar de mais um Verão em nada diferente dos anteriores. Mas não era simplesmente outro fogo florestal que desceria as encostas encrespadas na Serra do Caramulo para se extinguir às proximidades de Águeda». Uma área de 6.078 hectares foi rapidamente consumida pelas chamas e a calamidade tinha-se transformado em catástrofe: 16 bombeiros voluntários e civis tinham perecido. Resultado: a Câmara de Águeda elaborou a «anatomia da tragédia», efectuou um pedido de auxílio extraordinário à CEE e desenvolveu um sistema de prevenção ou de «Defesa Florestal Contra Incêndios». Um projecto piloto que está a ser aplicado unicamente na freguesia de Castanheira do Vouga. Dada a sua limitação, novos fogos eclodiram numa serra propícia à devastação das chamas.

Intenso parcelamento da propriedade. Abandono das culturas tradicionais. Florestação intensiva — pinheiro, mas sobretudo Eucaliptus globulus, explorados em talhadia ou, por outras palavras, em períodos entre 8 e 10 anos. Êxodo e envelhecimento da população. Uma situação deveras vulgar.

Existem em Portugal condições naturais propícias à deflagração de incêndios florestais. Uma realidade tanto mais preocupante quanto infraestruturas de acesso à floresta, meios de prevenção, detecção e combate a incêndios ainda são em muitos casos um mito. Toda a gente o reconhece. População, bombeiros e Governo. Um extenso relatório elaborado há dois anos pelo «Grupo de Trabalho Interministerial para a Preservação da Floresta» aponta os pontos mais significativos de toda esta problemática: «Os meios de detecção não são, nem em número nem em qualidade, os necessários para uma localização rápida e precisa do foco de incêndio. Os patrulhamentos e a fiscalização das matas, por falta de meios humanos e materiais, igualmente têm deficiências e estão aquém das necessidades. O ataque aos fogos ainda está longe de, devido a carências de meios humanos e de equipamento actualizado, ter aquela prontidão e eficiência exigível para este tipo de calamidade. São várias as entidades a intervir no processo de Prevenção, Detecção e Combate aos Incêndios (…), também se verifica que a legislação (…) está necessitada de uma revisão.» (1)

— A falta de ordenamento florestal é a principal causa dos incêndios em Portugal! Uma riqueza que levou anos a construir desaparece em meia dúzia de horas. É dramático. Talvez fosse interessante calcular qual a percentagem de terra que ardeu substituída por eucalipto… — considera Arménio de Figueiredo, um engenheiro do partido Os Verdes. 

Um outro engenheiro, João Soares, director-geral das Florestas, contesta. «O ordenamento florestal só será conseguido se à medida que se forem definindo normas técnicas aconselháveis for possível oferecer aos produtores florestais incentivos financeiros e significativos que paguem efectivamente o diferencial financeiro hoje existente entre as culturas florestais ecologicamente pobres e financeiramente ricas e as culturas ecologicamente ricas e financeiramente pobres».

Se o papel do Estado é, teoricamente, importante o aspecto financeiro é uma realidade essencial. Mesmo se os fogos não são provocados por quel deles beneficia. Pelo menos, é a opinião do Governo. «Não está demonstrada a existência de organizações movidas por interesses económicos marginais, que através de interpostos indivíduos lancem o fogo às matas. Todavia, verifica-se que há fogos de origem criminosa, que têm motivações de interesse económico, tais como a obtenção de madeiras mais baratas, obtenção de áreas de/para plantio de eucalipto, interesses urbanísticos, etc. Outros fogos de origem criminosa derivam da intenção de obter pastagens, de acções de vingança, do gosto de ver arder, etc.»

Incendiário: sem rosto mas com perfil

Uma coisa é certa, porém: praticamente todos os fogos têm origem no homem. E também não é menos verdade que 10.000 fogos por ano é demais para ser atribuído a uma rede organizada. O lucro (negócio ou seguro), a doença psíquica (crime gratuito), o descuido ou a vingança seriam as principais causas. A Polícia Judiciária — de resto bastante activa em todo este processo — até já retratou num estudo sobre «Fogo Posto Florestal» o perfil do criminoso: «É homem, relativamente jovem, solteiro e sem encargos familiares, de baixo estrato social e económico, tem um nível de instrução rudimentar, é natural e residente da área onde comete o crime, actua só aos fins-de-semana, durante o dia, utiliza meios banais, confessa o delito e o modus operandi e não tem antecedentes criminais!»

Quem incendiar florestas. matas ou arvoredos é punido com prisão de 3 a 10 anos. É a sanção prevista na Lei 19/86 de 19 de Julho. Se resultar perigo para a vida ou integridade física de outra pessoa a pena aplicável será de 4 a 12 anos. A morte de uma ou mais pessoas é punida com 5 a 15 anos de cadeia. Mas são raros os incendiários capturados… (2)

Mouta.

00:47. 

A aldeia — umas 20 e tal almas — ainda está mais em polvorosa. Agora que o comandante Neves dos Santos — acompanhado do responsável da Protecção Civil — e a coluna de bombeiros invadiram a aldeia. Um imenso clarão avermelhado quebra a monotonia de uma serra de contornos indefinidos.

— Há 13 anos houve aqui um fogo. Fez a mesma ronda que agora este. Levou milho, carqueira e tudo. As casas ficaram graças a nós e aos bombeiros. O fogo não demorou meia hora do Coval até aqui… — conta a correr, mas sem papas na língua Maria Custódia Sabino.

— E sabe como apareceu o fogo?

— Então, não sei! Foi ateado em Campo de Arca.

— E este agora também foi fogo posto! O local é monte. Não há lá ninguém… Foi fogo posto. — grita o ancião Manuel Joaquim Dias. Um homem simples que moureja de Sol a Sol. E que ousa chamar as coisas pelo seu nome.

— Provas, não as há?

O velhote de Mouta desanda. Já falou de mais. Uma mulher balbucia palavras que não entendo. Um bombeiro voluntário de Sever do Vouga aproveita a pausa, aproxima-se e mete conversa. A barafunda é tal que ainda nem jantou.

O fotogénico «rotativo» do Toyota 4X4 do Comandante Operacional começa a girar. Há novidade. O motor arranca. O probela está, aparentemente, resolvido em Mouta. Já Torgueira é outra história. A aldeia tem uma casa, uma família. E as chamas cada vez mais perto. Se ainda lá não chegaram…

O cansaço da impotência… Foto: ©Sofia Pinto Coelho

«Eles querem acabar com a floresta…»

Curvas e mais curvas. Arvoredo. E um jipe da GNR estacionado à beira da estrada. Matrícula: J 380. Ou J 390. Pouco importa. A velocidade não permite apreender tanto detalhe. O objectivo é alcançar o mais rapidamente possível Torgueira. Cortamos à direita. Um caminho de terra serve de estrada que não há. Acabamos por avistar uma casa com uma motorizada ao lado da entrada, uns quilómetros mais adiante. Luzes apagadas. O único sinal da vida que por ali corre é um cão que ladra. E é bem capaz de morder.

A sirene toca. Uma mulher aproxima-se, lentamente, da patrulha. É nova e bonita. O penteado desfeito e os brincos vistosos dão-lhe um ar de Madonna. A rapariga dá as boas noites. Fátima. É Fátima e mais nada. E sorri. Aconchega-se no casaco de malha azul às riscas. E olha para o monte da desolação. Mora ali, longe de tudo e de todos a pensar na aldeia. Em casa, tem os tios, o filho, cinco vacas leiteiras e três cachorros — mais o pequenino. A família está com o resto do povo da serra uma meia légua mais acima. Estão todos a combater o fogo. É o costume. Os bombeiros chegam quando chegam. E, às vezes, aparecem tarde e a más horas… Fátima quedou-se com o filho.

— Mas, então, para onde é que eu hei-de ir? O que é que vale eu ter medo? Por acaso até tenho, não pudera ter. O fogo não está assim tão longe. É mais outro fogo posto.

— Porquê?

— Começou assim sem mais nem menos. E de noite. Eles querem é acabar com a floresta…

O caminho até ao fogo está semeado de espinheiras. E de pinheiros bravos. Ainda mal se vê o clarão por causa da encosta. O carreiro é escuro. Os isqueiros acendem-se e apagam-se. Pirilampos. Entre árvores, arbustos e alguma urze. É sempre a subir. Até mergulharmos, subitamente, no espectáculo do fogo. A primeira imagem: os contornos de dois homens a bater na erva incandescente com ramos de pinheiro. Ao lado, uns 10 aldeões assistem, sentados, ao movimento dos homens. Olhares mais exaustos do que angustiados.

Há um dia que estão ali. O fogo não passa, mas mete-se pela colina abaixo. E desliza ruidosamente até ao rio.

— Ardeu mais do que da última vez e ainda não se sabe o que é que vai arder mais. — conta Jaime Coutinho. 

Um dos muitos pequenos rendeiros destas bandas conformado com as agruras da terra. E o povo acena que sim quando o sujeito afiança que logo que as chamas «passarem para o terreno lá mais abaixo, podem ser dominadas».

— Isto, aqui, até ardia mesmo com a gente cá. Só não arde porque não tem brenha.

— Está roçado. — diz uma mulher pouco afeita a palavras inúteis.

— Ali à frente é que não há quem pare o fogo. Tem muita caruma. O fogo agarra-se àquilo e arde… — completa uma vizinha da matrona.

— A gente desconfia, mas não temos a certeza de quem fez isto. Foi só para fazer mal: inveja e madeira barata… — o comandante Neves dos Santos confirma a banalidade da situação embora a venda de madeira queimada seja mais comum com o eucalipto.

E voltamos para o jipe. Entre duas comunicações rádio «ataco» o operacional.

— Isto era inevitável?

— Este Inverno foi o mais seco dos últimos 60 anos. Tenho povoações no meu concelho sem água. O abastecimento é feito por nós. Este ano vai ser mau. E este fogo é dos piores que há. É impossível atacá-lo. Se não dermos cabo dele no rio Gresso só nos resta esperar.

O Toyota desgalga a serra. É preciso encontrar um atalho que vá dar ao riacho. Se o fogo passar para a outra margem uma boa parte da serra poderá ser consumida pelas chamas. Seja como for, a situação é problemática.

— Os fogos não se apagam. Sem que tal represente qualquer menosprezo pela excelente acção da maioria dos bombeiros continuo a sustentar que os fogos florestais não se apagam. Ou se evitam  e considero evitar ser capaz de acorrer nos primeiros 10 minutos depois da eclosão do sinistro ou se circunscrevem. — afiança o engenheiro João Soares, director-geral das Florestas.

Os soldados da paz confirmam esta tese. E vão mais longe. Os fogos florestais têm tido nos últimos 16 anos um impacto negativo na floresta portuguesa consumindo uma área média por ano superior à que se regenera naturalmente somada com a que é plantada e semeada. O que muita gente não sabe é que a maioria dos grandes fogos tem origem em reacendimentos. Finda a «gigantesca» tarefa da extinção importa ter no local um pequeno dispositivo de bombeiros e um elevado número de pessoas civil (ou militar) fresco.

 Ao fim de sete horas de fogo devíamos mudar os homens todos. E não mudamos. Não temos nunca gente suficiente para acudir…  confessa o comandante Neves dos Santos enquanto o motorista aplica a tracção às quatro rodas.

O carreiro é íngreme. Há troços onde o jipe mal consegue passar. Os calhaus são muitos. Os troncos baixos. Por debaixo de um pinheiro esquelético perdemos a antena. E a ligação com o exterior. Continuamos. A viagem termina uns metros mais à frente num milheiral. O riacho ainda está bem longe. O fogo vai avançar.

A «trágica» média do ano é de 86 fogos por dia. A região do país mais afectada é a do Norte com mais de um milhar de incêndios. E 1.300 hectares devastados. Uma área apesar de tudo bem superior à do ano passado. É certo que 1988 foi por diversas razões um ano excepcional.

Evolução do número de incêndios e da área ardida entre 1983 e 1989 (até Junho)

Optimismos

O combate aos incêndios florestais compete às 440 corporações de bombeiros dispersas pelo Continente mais 17 nos Açores, 4 na Madeira e 1 em Macau. Ao todo serão uns 30 mil homens dos quais apenas 2 mil são profissionais (3). Os bombeiros dispõem de 3.650 viaturas de combate a fogos (auto-tanques, auto-escadas, etc.), 2.100 ambulâncias e ainda 500 veículos de socorro. Também existem alguns meios aéreos: dois helicópteros AL III, mas sobretudo um avião C-130 Hercules da Esquadrilha 501, cuja missão é o lançamento de produtos químicos (Phos-chek) retardantes de combustão. As missões são accionadas após solicitação do Centro Coordenador da Lousã para o Comando Operacional da Força Aérea (4).

Os planos e perspectivas governamentais apontam para um reforço substancial dos meios de combate nos próximos anos. Resta, agora, saber se este optimismo é partilhado pelos homens no terreno…

Campo dos Mártires da Pátria, Lisboa. 

A morada do Serviço Nacional de Bombeiros (SNB) é tão somente uma ironia do Destino. A sede do SNB é um local alegre. Um palacete antigo com jardim. Ao cimo da escadaria que dá para o primeiro andar, uma porta de vidro «pintado» reza que S. Marçal é o «advogado dos incêndios». O engenheiro José António Laranjeira — presidente do SNB — confirma. E começa a entrevista.

— Contesta todo este optimismo oficial apesar de estar na dependência directa do MAI?

— Os meios humanos de que dispomos são suficientes… Agora, até temos a funcionar 24 horas por dia 287 Grupos Especiais de Primeira Intervenção. Cada um desses grupos é constituído por cinco bombeiros, que dispõem de uma viatura ligeira «todo-o-terreno» com 500 ou 600 litros de água e meios rádio. As brigadas móveis da Direcção-Geral das Florestas e da Guarda Nacional Republicana (GNR)completam este movimento. O SNB é a entidade tutelar dos corpos de bombeiros com atribuições de orientação, coordenação e fiscalização técnica. A elaboração e análise dos riscos é uma das tarefas.

— Alguém é directamente responsável por esta calamidade que são os fogos?

— A negligência continua a provocar a maioria dos fogos de florestas. E mais: 50% das saídas dos bombeiros durante 1988 tiveram lugar nos distritos de Braga, Porto, Aveiro e Lisboa. A minha conclusão é que onde há muita gente há muitos fogos. O grande apelo é pedir aos portugueses que aprendam a viver e a respeitar a floresta que ainda temos…

O engenheiro Laranjeira sabe do que está a falar. Está em contacto com os corpos de bombeiros, o sistema nacional de Protecção Civil, a Direcção-Geral das Florestas e a Comissão Nacional Especializada em Fogos Florestais — onde de resto está representado. A questão dos fogos passa, essencialmente, por estas entidades.

Uma guerra sem tréguas apesar da escassez de meios… Foto: ©Sofia Pinto Coelho

Sever do Vouga. 

02:29. 

Damos com uma coluna. Três ligeiros e um auto-tanque de Oliveira do Bairro.

— Isto já está a arder há seis dias. Esta noite ardeu uma área muito grande. Até tivemos helicópteros durante três dias, mas não… O rescaldo é uma coisa danada!

— Uma viatura está sem gasóleo… e em Montemor uma fábrica de resina está a arder… Comandante Machado chama carro de Comando Operacional…

— Não é mesmo possível meter um contra-fogo no rio?

— E chegar lá a baixo? Já andámos por tudo quanto é sítio e não há passagem.

Os dois homens ainda hesitam em atacar as chamas quando elas atravessarem a estrada, mas abandonam o projecto. A via é estreita e o fogo vem lá de baixo. É dos mais perigosos. Optam por um pedido de apoio aéreo logo que o dia nasça. Vale de Cambra não está longe. E os aero-tanques da Lousã ou da Covilhã também não demoram muito a chegar. Pouco ou nada se pode fazer agora. E os homens estão exaustos.

— O Comandante de Sever do Vouga é Tesoureiro da Fazenda Pública. Tem mesmo de abrir a «loja«. E eu, daqui, quase vou directamente para a fábrica de confecções onde labuto…

— Então, voltamos mesmo para Águeda?

— Voltamos. E já não é sem tempo…

E se preveníssemos?

Lá para as bandas de Lamas ou de Macinhata o rádio despertou. Duas casas atingidas em São Joaninho. Uma voz rouca entra no canal 2.

— Isto é uma coisa louca! Mandem já apoio para aqui…

Silêncio. O campo corre veloz. O calor da serra ainda arde na pele. E aquelas brasas não param de bailar. As caras negras de pó a afogar a desolação no riacho. Soluções?

— O fogo deve ser ecologicamente utilizado. Só que as perspectivas são sombrias. As empresas de celulose estão a tomar conta da área florestal. — garante o engenheiro Arménio de Figueiredo (Os Verdes), antes de apontar algumas soluções concretas como o associativismo que «é importante promover» como forma de dinamização das explorações porque «a prevenção também passa por aí».

— Está por fazer a educação do público em geral, e dos incendiários acidentais em particular. E também é verdade que a prevenção ainda não tem clara supremacia sobre o combate… — afirma o engenheiro João Soares da DGF.

As perspectivas também são, na sua opinião, sombrias. «Enquanto os fogos em 1988 se propagaram devagar, este ano — com as actuais condições climatéricas — vão correr. Em vez de meia hora, vamos talvez dispor de 15 minutos. É rezar…»

— Mesmo com condições climáticas normais, 1989 pode ser um ano francamente mau: há poucas reservas de água no solo e a vegetação rasteira do ano passado está por queimar. — palavras do professor Xavier Viegas, um universitário pioneiro dos estudos dos fogos florestais.

O pessimismo generalizado contrasta com a opinião oficial ou a inexistência de estratégias e acção no terreno. A prioridade para alguns departamentos oficiais parece continuar a ser sobretudo o combate. O Plano a médio prazo do Ministério do Planeamento e da Administração do Território — coordenação de acções de fogos florestais — prevê para 1989 mais de 1.417 mil contos para o combate enquanto a verba para a prevenção não ultrapassa 719 mil contos. É pouco. Para instalar, tratar e conduzir povoamentos florestais, criar redes de acesso e barreiras divisionais; instalar sistemas de vigilância e informar o público (desde as escolas, como sugere o «Projecto de Prevenção para a Escola Primária» da Universidade de Coimbra, mas ainda por aplicar até à RTP onde não houve qualquer campanha este ano). A legislação adequada é outra lacuna.

— A solução não está no desenvolvimento crescente dos meios de luta, mas reside na prevenção. É preciso desmatar e limpar a floresta e repovoá-la, dando apoios aos que desejariam aí trabalhar e viver. E responsabilizar as pessoas.

O silvicultor Manuel Ferreirinha é capaz de ter razão. O fogo não é uma metáfora. Quem é que disse que mais vale prevenir do que remediar?


(1) – O Governo tomou, entretanto, algumas iniciativas. A Portaria 528/89 de 11 de Julho: depois de anunciar que tendo surgido algumas dúvidas acerca do Decreto-lei 175/88, que estabeleceu pela primeira vez em Portugal «condicionamentos vastos e efectivos» (sic) à arborização e rearborização com recurso a espécies florestais de rápido crescimento (como o eucalipto) e da ulterior publicação do Decreto-Lei 139/89, cujo objectivo era «clarificar» (sic) a intervenção das Câmaras Municipais, o legislador acaba por indicar que a portaria ora aprovada «condiciona» (sic) a florestação e reflorestação com as tais espécies de rápido crescimento… A última medida «preventiva» data de 13 de Julho. O Ministério da Administração Interna (MAI) proíbe a realização de qualquer actividade que utilize o fogo em todas as zonas florestais do país entre 15 de Julho e 15 de Outubro (queimadas, fazer fogo — incluindo fumar, lançar foguetes e balões com mecha acesa, queimar lixos, etc.).

(2) – A Faculdade de Psicologia e de Ciências da Universidade de Coimbra está a preparar um estudo sobre a personalidade de incendiários detidos.

(3) – Entre Junho e Outubro constituem-se Grupos Especiais de Intervenção.

(4) – A FAP colabora no combate aos fogos juntamente com o Serviço Nacional de Protecção Civil. Em 1983, começou a operar o «Modular Airborne Fire Fighting System» (MAFFS). Em 1983, foram efectuadas oito missões. Em 1985, o número subiu para 15. Em 1988, realizaram-se apenas oito missões — todas elas na Região Centro.

A FLORESTA QUE TEMOS

«A floresta portuguesa está distribuída por grandes áreas, especialmente situadas no interior do território, com reduzidas infraestruturas de acesso e de protecção de incêndios.

É na sua maior parte propriedade privada, cerca de 80%, e é pertença de cerca de 600 mil proprietários. É quase toda minifúndio.

É constituída, na parte mais sensível aos fogos, pelo pinheiro, somente, ou pinheiro e eucalipto em grandes manchas de monocultura.

As grandes manchas de pinheiro e também de eucalipto, situam-se em zonas interiores de Verões quentes, secos e com ventos de NE, que no Verão sopram com intensidade e transportam ar extremamente seco.

As matas florestais, na sua grande maioria, deixaram de ser limpas e o subcoberto arbustivo existente funciona de rastilho para a propagação do fogo. As razões principais da sua não limpeza são a emigração da população válida, a melhoria do nível de vida, a diminuição da pastorícia.

Há falta de informação e de formação das populações locais, que não têm conhecimento real do valor da floresta e que, por incúria, são responsáveis pelo ateamento de incêndio.»

O mesmo acontece com a gente estranha à floresta.

Fonte: Grupo de Trabalho Interministerial para a Preservação da Floresta – 1987.


Reportagem originalmente publicada n’O Jornal Ilustrado (suplemento ao nº 752 de O Jornal), na edição de 21 a 27 de Julho de 1989, da autoria de Rui Araújo e com foto de Sofia Pinto Coelho, aos quais o PÁGINA UM agradece a autorização de republicação.


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