Recensão: O piolho viajante

A picar também se castigam os costumes

por Paulo Moreiras // Abril 13, 2024


Categoria: Cultura

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Título

O piolho viajante

Autor

ANTÓNIO MANUEL POLICARPO DA SILVA

Editora (Edição)

Palimpsesto (Novembro de 2023)

Cotação

20/20

Recensão

Quem diria que as picadas de um piolho do século XIX ainda hoje provocassem comichão na literatura portuguesa. E é isso mesmo o que tem vindo a fazer O piolho viajante nas suas sucessivas edições, desde que saiu do prelo em Lisboa na forma de folheto no ano de 1802.

A autoria desta "obra maior da literatura portuguesa menor", como a classificou João Palma-Ferreira (1931-1989), investigador e professor de Literatura Portuguesa, andou durante séculos envolta em mistério, uma vez que os folhetos haviam sido publicados de forma anónima. Contudo, após inúmeros debates, estabeleceu-se que o seu autor foi António Manuel Policarpo da Silva (ca 1790-ca 1819), "livreiro-editor, estabelecido em Lisboa durante muitos anos com loja na Praça do Comércio, debaixo da arcada do antigo Senado, ou Câmara Municipal", excelente pouso e atalaia "para captar todo o pitoresco da cidade e para conhecer as tricas da cabala literária", nas palavras de João Palma-Ferreira, que dedicou cerca de cinco anos, "entre 1962 e 1972", a coligir em alfarrabistas todas as aventuras e carapuças deste piolho errante, que posteriormente foram sacadas à luz, após mais de 120 anos de esquecimento, na editora Estúdios Cor em Novembro de 1973, meses antes do 25 de Abril de 74.

Esta nova edição de O piolho viajante, da responsabilidade da Palimpsesto, regressa às livrarias pela mão de João Filipe Palma-Ferreira, filho do investigador e professor de Literatura Portuguesa, precisamente no momento em que se assinalam cinquenta anos daquela primorosa edição realizada por seu pai.

Composto por 72 carapuças, O piolho viajante é uma das obras literárias portuguesas mais interessantes e divertidas, que conheceu "uma extraordinária divulgação em Portugal" e no Brasil, entre 1802 e 1854, com os seus folhetos "impressos em papel vulgar, escritos ao estilo picaresco, mas com uma qualidade assombrosa", que não só mantinham uma periodicidade incerta como circulavam de mão em mão. Apesar da sua popularidade, a obra "não obteve o favor de nenhuma crítica nem os elogios dos patriarcas letrados do tempo", acabando por "lentamente se eclipsar e sofrer o destino de outras notáveis obras populares que preencheram os ócios da burguesia, satirizaram os costumes e registaram um sem-número de particularismos da vida do País nos finais do século XVIII e primeiras e agitadas décadas do seguinte."

Através das andanças e desandanças deste pícaro piolho, por cujas cabeças passa e repassa, vislumbramos "a miséria, a falta de higiene (...), a estupidez, a maldade, o vício, a brutalidade (...), a cupidez, a baixeza, o ciúme, a desonestidade, a esperteza, a tolice e a imbecilidade" daqueles que então cirandavam pelas ruas de Lisboa, num "retábulo terrível de verdades", que, na opinião de João Palma-Ferreira, "a história oficiosa escondeu, ou que a literatura culta nunca se atreveu a divulgar com o mesmo desplante com que o fez Policarpo da Silva", expondo nestas picarescas aventuras "os processos de sobrevivência, os hábitos alimentares, as toscas diversões, a poesia miserável, o vestuário sórdido, a medicina corrupta, a farmacopeia mixordeira" existente na capital de um país que "levava sessenta anos de atraso em relação à Europa".

Em boa hora João Palma-Ferreira exumou esta obra "para a colocar no escano que lhe pertence, que realmente lhe pertence na história da literatura de crítica social e de sátira de costumes em língua portuguesa e para aceitar defender-lhe a excelência de alguns capítulos como dos melhores que, neste aspecto, e no domínio popular, até agora se escreveram em Portugal", obra essa que, de acordo com João Palma-Ferreira, reconduz o leitor "para o convívio de um dos mais ricos e desprezados sectores da literatura portuguesa, desde Gil Vicente a D. Francisco Manuel de Melo, desde os panfletários do século XVII aos esquecidos ironistas do século XIX, desde a Arte de Furtar às sátiras de Tolentino", destacando-se as qualidades do autor, tais como "a agudeza (...), a vivacidade dos grandes frescos que nos deixou, a loquacidade das aventuras mas, sobretudo, o seu espírito crítico, entre desiludido, cruel, hipócrita e inteligentíssimo".

Nos tempos sérios em que vivemos, é de saudar a reedição desta obra satírica, pujante de mordacidade, e que ela possa trazer-nos, com o seu refinado humor, algum conforto de espírito e estímulo intelectual para enfrentar as lutas que se avizinham. A picar também se castigam os costumes.

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