Biopolis já pagou por ajuste directo 180 mil euros para promover a sua investigação

Jornal Público aceita truque contratual para financiar notícias de ambiente ‘prêt-à-porter’

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por Pedro Almeida Vieira // Abril 13, 2024


Categoria: Imprensa

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A troco de mais 90 mil euros, o jornal Público repetiu a dose: disponibiliza-se, pelo segundo ano consecutivo, a fazer obrigatoriamente 26 artigos jornalísticos na secção ambiental Azul sobre as actividades da Biopolis, um consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier. Apesar de o Público jurar independência, nos contratos ainda é usado um truque de legalidade duvidosa. Como a Biopolis está abrangida pelo Código dos Contratos Públicos, e não poderia entregar 90 mil euros ‘à Lagarère’, tem-se usado uma norma de excepção para fundamentar ajustes directos alegando-se estarem em causa direitos de propriedade intelectual apenas detidos pelo Público. Ora, muito estranhos serão esses “direitos intelectuais”, uma vez que os artigos nem sequer foram ainda escritos.


Pelo segundo ano consecutivo, o jornal Público celebrou um contrato de prestação de serviços com a Associação Biopolis com a obrigação de publicar “26 (vinte e seis) artigos editoriais” sobre projectos na área do ambiente e sustentabilidade deste consórcio da Universidade do Porto, da Porto Business School e da Universidade francesa de Montpellier.

A troco de 90 mil euros, o Público tem também a obrigação de formar um cientista, contratualmente ligado á Biopolis, “no domínio da actividade jornalística, através da sua integração na equipa editorial do AZUL”, a secção de ambiente deste jornal, “na qualidade de jornalista estagiário”. Tal como no ano passado, onde também recebeu 90 mil euros, o contrato garante a independência editorial, apesar da gestão do contrato ser seguida, no Público, pelo responsável da Área Financeira e Circulação.

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Além das questões deontológicas na criação de um ‘pronto-a-vestir noticioso” – onde entidades externas têm, pelo menos, o poder expresso de indicar o número mínimo de notícias sobre determinados temas que disponibilizam numa espécie de menu, obrigando contratualmente o jornal a publicar –, o contrato celebrado entre as partes por ajuste directo fundamenta-se numa norma do Código dos Contratos Públicos que merece muitas dúvidas legais.

Com efeito, mesmo sendo uma associação científica de direito privado, a Biopolis está abrangida pelas normas da contratação pública, pelo que para um contrato desta natureza e para este montante (90 mil euros) seria necessário abrir um concurso ou então encontrar uma excepção no Código dos Contratos Públicos. Ora, sucede que o Público – que integra o universo da imprensa que tem como funções detectar ‘truques’ nas contratações públicas – aceitou que o ajuste directo se fundamentasse numa excepção que dificilmente se encaixa nos serviços que os seus jornalistas serão obrigados a prestar para cumprir o contrato pecuniário com a Biopolis.

Para a escolha do ajuste directo, a Biopolis e a empresa gestora do Público – a Público Comunicações, do Grupo Sonae – consideraram que os serviços em causa (publicar 26 artigos jornalísticos, ainda não escritos, e formar um jornalista – “só podiam ser confiad[o]s” ao Público, uma vez que se seria “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”. Esta norma de aplicabilidade absurda neste tipo de serviços – não apenas por haver mais entidades capazes de escrever 26 artigos jornalísticos como por não se poder considerar a existência de “propriedade intelectual” para textos ainda não escritos – já havia sido usada no ano passado para mais um contrato similar de 90 mil euros.

David Pontes, director do Público.

Estes dois contratos servem, na verdade, para enquadrar, de forma pouco ortodoxa, o desejo de a Biopolis apoiar o AZUL, projecto editorial do Público nascido em Abril de 2022 apresentado então como modelo de jornalismo independente dedicado em exclusivo ao Ambiente. Como não pode, como sucede com uma empresa privada, fazer um patrocínio directo, enquadrar tudo num contrato de prestação de serviços com um objecto concreto (destacando-se os 26 artigos) foi o ‘truque’ escolhido.

Desde a sua fundação, integrado na edição digital do Público, os responsáveis do Azul diziam, no respectivo estatuto editorial, ser um projecto de jornalismo de causas ambientais – com a biodiversidade, a sustentabilidade e a crise climática como bandeiras –, e que, estando aberto à sociedade civil, contava “com o apoio de parceiros comprometidos com agenda do ambiente para financiar a sua equipa e a sua operação”.

Na linha da frente, como parceiros, foram então destacadas quatro entidades: a Fundação Calouste Gulbenkian, a Biopolis , a Lipor – a empresa pública de tratamento de resíduos do Grande Porto, cuja central de incineração é um dos focos mais importantes de emissão de dioxinas em Portugal – e a Sociedade Ponto Verde – uma das empresas gestoras de resíduos de embalagem.

Para garantir a execução do Azul, a direcção editorial do Público – então comandada por Manuel Carvalho – destacou, além de duas experientes jornalistas da área da Ciência, como editoras (Teresa Firmino e Andrea Cunha Freitas), uma equipa de 10 pessoas, das quais seis jornalistas, o que implicaria a impossibilidade de elaboração de conteúdos comerciais ou a subordinação a entidade externas.

Porém, apesar de o Público ter garantido que o Azul seguiria “um modelo de cooperação e mecenato cada vez mais frequente em projectos jornalísticos na Europa e nos Estados Unidos”, e que “os parceiros e o jornal reconhecem que uma condição crítica para o sucesso” deste projecto editorial “passa[ria] pela transparência e pelo respeito integral das regras profissionais e deontológicas do jornalismo consagradas na lei”, a realidade mostra-se bem diferente.

Em Outubro do ano passado, numa missiva de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa, em sequência de anterior artigo do PÁGINA UM, o director do Público, David Pontes, garantia que a secção Azul e o seu jornal “pautam-se pela total transparência na relação com os seus parceiros, não tendo qualquer problema em revelar os contratos que firmam com eles, o que irão fazer muito em breve em local próprio”. O “muito em breve” prolonga-se até agora, e pelo menos no local próprio – a secção do AZUL – não há o mínimo sinal dos termos das parcerias nem de valores de patrocínios das outras três entidades assumidamente identificadas: Fundação Calouste Gulbenkian, Lipor e Sociedade Ponto Verde.

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Com efeito, embora ainda sejam desconhecidos os protocolos com três dos alegados mecenas conhecidos do Azul – apesar de solicitados pelo PÁGINA UM à direcção editorial do Público –, sabe-se agora que a Biopolis fez afinal um contrato de prestação de serviços com a administração do jornal, pelo menos no período compreendido entre Março e Agosto deste ano.

Tal como referia o contrato do ano passado, este agora assinado na passada terça-feira também garante total independência jornalística e salienta que os textos alvo da prestação de serviços serão identificados com a referência “promovido por BIOPOLIS”. Mas se for como o contrato de 2023, esta promessa no contrato deste ano será ‘para inglês ver’: se se pesquisar no Google por essa expressão o único resultado é a notícia do PÁGINA UM de Junho do ano passado que explicitava essa ‘promessa’ contratual, o que coloca em causa a própria concretização de um contrato público.


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