Ah, os aviões! Dinossauros gigantes a galgar a pista. Um rugido grave que se aproxima. Suave, primeiro. Forte. Novamente suave, até desaparecer. Patas engolidas pelo ventre. Foi. E já no céu surgem ao longe os olhos de fogo dos que em poucos segundos tomarão o seu lugar. Pousarão bruscos e pesados. Tremerá o chão. Mas aterrar acalma-os. Mansos e dóceis, rosnam baixinho enquanto procuram um sítio seguro para deixarem sair os minúsculos seres que transportam.
Luísa inveja as estátuas que, no centro da rotunda, olham fixamente o céu sem que lhes doa a cervical. As luzes de aproximação. O nariz apontado às nuvens. O céu riscado a giz. Adivinhar origens e destinos. Na sua mente, silenciosos, um “Boa viagem!” ou um “Bem-vindos!”.
O aeroporto e os aviões sempre presentes na vida dos farenses. Não admira, pois, que à pergunta: “O que queres ser quando fores grande?”, ela tenha respondido desde muito cedo “⎼ Hospedeira.”. Consequência das muitas tardes passadas junto à rede do aeroporto a ver desembarcar as tripulações. As hospedeiras, assim se chamavam nesse tempo, fascinavam-na. Fardas elegantes, mulheres esbeltas, impecavelmente penteadas e maquilhadas. Exalavam glamour, classe, sucesso e uma liberdade pela qual sempre tinha ansiado. O que poderia ser mais libertador do que voar? E, entenda-se que, na sua lógica de criança, não era preciso ter aquele conjunto de características para ser hospedeira. Era ser hospedeira que garantia que se tornaria igual a elas. Perfeita!
Tudo isto seria normal, da mesma forma que o foi mudar de ideias já na universidade. O que é menos normal é que este seu desejo coabitasse com o pavor de voar. Viajar de avião é uma decisão tomada apenas quando não existem alternativas viáveis. Cada voo é um misto de felicidade por ir, por saber que chegará rapidamente ao destino, e o terror de sentir que não tem chão.
Afastada uma carreira que se adivinhava auspiciosa, manteve-se porém a necessidade de voar de vez em quando.
Na última viagem que fez a Roma, ao embarcar no regresso a casa, deparou-se com um piloto imberbe. Calafrios instantâneos. Suores. Punhos cerrados. Dor de estômago. Enquanto procurava o seu lugar, repetia para si mesma que quanto mais jovem o piloto menor a probabilidade de ter um AVC ou um enfarte. Que melhores eram os reflexos e a visão… Acalmou um pouco. Sentou-se, recorrendo a posições de ioga cuja finalidade finalmente percebeu. E, surgiram então os assistentes de bordo com os coletes salva-vidas e as máscaras de oxigénio a recordar-lhe que poderiam ter de aterrar no mar. Tentou não ouvir. Ninguém prepara os passageiros para o caso de um comboio descarrilar, pensou. Qual era a probabilidade? Não queria ouvir. Abriu o livro que trazia consigo e começou a ler.
Uma das assistentes pegou no microfone e apresentou-se. Tinha o nome da sua falecida mãe, Lucrécia. Raríssimo. Ativou o modo supersticioso e assumiu tratar-se de um sinal. Só podia querer dizer que estava protegida.
–Vai correr tudo bem. – murmurou.
O avião descolou e Luísa tranquila como nunca.
Pouco tempo depois, a máquina foi envolvida por um temporal pavoroso. Abanava por todos os lados. O medo dos passageiros era audível. Luísa manteve o controlo durante algum tempo. Porém, passados poucos minutos, começou a desconfiar de que o facto de a assistente ter o nome da sua mãe podia não ser sinal de proteção, mas sim de que me iria juntar a ela não tardava mesmo nada. Ativou, então, o modo religioso. E vá de rezar até o avião pousar. Se foi das orações, das figas ou de uma mãozinha do Além, não sabia, mas tendia a desconfiar que o milagre pudesse ter sido obra do miúdo loiro da cabine…
Para chegar a casa, havia, no entanto, que apanhar um segundo voo. Uma passagem pelos lavabos, permitiu-lhe refrescar-se, salpicando o rosto repetidamente até se sentir mais calma. Estava aterrorizada com a ideia de voltar a entrar num avião, mas não havia alternativa. À chamada, caminhou com passo lento e coração acelerado em direção à sala de embarque. Olhou rapidamente em redor para ver quem iria embarcar consigo. Muitas crianças era bom auspício. Nunca se ouviu falar de cair um avião cheio de crianças. Gente feliz e com ar saudável. Excelente prenúncio. Não tinham ar de quem ia morrer naquele dia. Uma cara ou outra com ar mais mortiço provocavam-lhe maus pensamentos. Passava adiante. Ao fundo, a um canto da sala, um homem captou a sua atenção. Meio enrolado na cadeira, debruçado sobre uma mochila preta, ar de poucos amigos, uma barba farfalhuda. Passou-o de imediato pelo seu detetor de riscos aéreos. E foram necessários alguns segundos até que se apercebesse de que se tratava afinal do seu pobre marido, ainda enjoado, e com muito pouca vontade de embarcar numa nova centrifugação.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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