MIA NEGRÃO, ADVOGADA E ACTIVISTA PELOS DIREITOS DAS GRÁVIDAS

‘As autoridades de saúde, incluindo a DGS, também praticam violência obstétrica’

por Maria Afonso Peixoto // Abril 16, 2024


Categoria: Entrevista P1

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O silencioso flagelo que é a violência obstétrica ganhou mediatismo com a pandemia da covid-19 – uma altura em que a Direcção-Geral da Saúde emitiu recomendações que violaram grosseiramente os direitos das grávidas, sem qualquer fundamento científico e até em contracorrente com a Organização Mundial da Saúde. Além de ter sido vedado às grávidas o direito a um acompanhante, tiveram ainda de suportar o trabalho de parto de máscara, e muitas foram até separadas dos seus bebés. Mas ainda hoje a DGS emite orientações sobre procedimentos no parto que configuram violência obstétrica. Contudo, como explica a advogada e activista Mia Negrão, as grávidas já há muito que eram sujeitas a protocolos e intervenções desadequadas, tendo, em alguns casos, sofrido danos físicos ou emocionais permanentes. A autora do livro O meu parto, as minhas regras e fundadora do projecto Nascer com Direitos pretende devolver a todas as futuras mães a possibilidade de fazer escolhas informadas para que a gravidez, o parto, e o pós- parto sejam menos traumáticos e medicalizados, e mais humanos e respeitados.


Como advogada e activista, fundou o projecto Nascer com Direitos e lança agora o livro O meu parto, as minhas regras, que pretende consciencializar as mulheres para os seus direitos na gravidez e no parto. Porque é importante falar sobre isto?

Em primeiro lugar, porque a violência obstétrica existe, e as mulheres estão muito pouco informadas. Estamos em 2024 e já se fala de violência obstétrica noutros países, como a Venezuela, desde 2007, e nós só começámos a falar sobre isto mais ou menos em 2020; portanto, estamos com algum atraso. As mulheres vão para os hospitais sem saberem quais são os direitos que têm na gravidez e no parto, e até depois no pós-parto, pelo menos durante o tempo em que estão internadas, naqueles dois a três dias após o parto ou cesariana. E, no fundo, isto é importante porque quando as pessoas não conhecem os seus direitos, também não sabem que opções têm, e acabam por fazer aquilo que está protocolado pelos hospitais e pelos profissionais de saúde sem questionarem. E, depois, quando sentem as consequências disso, nomeadamente para a própria saúde ou para a saúde dos bebés, é que percebem que foram vítimas de violência obstétrica ou de violência neonatal e que, afinal, tinham direitos e que esses direitos não foram respeitados.

O termo violência obstétrica é, provavelmente, ainda desconhecido por muitas pessoas. Também é algo polémico entre os profissionais de saúde. Como é que se pode definir a violência obstétrica?

A violência obstétrica é a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres. Na lei venezuelana de 2007, eles conceptualizam a violência obstétrica – e foi a primeira lei a conceptualizá-la –, e dizem que é feita por profissionais de saúde. Ou seja, é a apropriação dos corpos e dos processos reprodutivos das mulheres por profissionais de saúde. Não concordo que seja só por profissionais de saúde, na medida em que temos entidades de saúde que também praticam violência obstétrica, porque são elas que emitem as recomendações, orientações, etc., e que muitas vezes já estão a limitar os direitos das grávidas, e até dos bebés, e já estão a protocolar situações que não deviam estar protocoladas, nomeadamente, tudo aquilo que tem a ver com intervir em gravidezes ou partos de grávidas de baixo risco, como acontece hoje. Ainda agora, há dois ou três dias, foi actualizada uma orientação da Direcção-Geral da Saúde [DGS], em que continuam a recomendar, por exemplo, a episiotomia [corte cirúrgico no períneo], a canalização da veia, ou outras coisas para as quais não há evidência de que haja benefícios em gravidezes de baixo risco. Obviamente, o que devíamos fazer era uma aferição do risco à partida, para podermos distinguir uma grávida de risco e uma grávida de baixo risco. E as grávidas de risco, de facto, podem ter de ter algumas intervenções. Mas não sei até que ponto devem estar protocoladas porque, na verdade, mesmo nas grávidas de risco, há muitos aspectos em que o risco pode ser diferente. Por exemplo, uma pode precisar de um antibiótico, e outra precisar só de uma vigilância mais apertada. Portanto, protocolar estas coisas nem sempre é boa ideia.

Até porque, como refere no livro, uma primeira intervenção que até não seria de facto necessária, muitas vezes dá azo a uma “cascata de intervenções” – e é algo que pode começar com uma coisa aparentemente tão simples como confinar a grávida à cama, certo?

Sim, e é uma coisa muito comum nos hospitais em Portugal. Aliás, eu ainda há pouco tempo contava esta história: tenho uma amiga que estava grávida e quando fui ter com ela estava com outra amiga que já tinha tido um bebé no hospital onde ela também ia ter o bebé. E eu disse que nesse hospital há muita violência obstétrica, e que eu conheço bem, e a outra rapariga disse que tinha adorado o parto e que foi maravilhoso, foi muito respeitada, e foi tudo como ela quis… E eu perguntei-lhe em que posição é que tinha parido – que escolheu para parir – e ela ficou a olhar para mim sem perceber muito bem a pergunta, e lá disse que tinha sido numa posição “normal”, ou seja, deitada. Na verdade, ela nem sequer conhecia outras opções. Portanto, como é que ela acha que a vontade dela foi respeitada? O que aconteceu foi que afunilaram todas as opções e levaram-na a acreditar que aquela era a única opção que ela tinha. E, como ela não tinha outras ideias, conhecimento, nem qualquer tipo de informação, achou que aquilo era o normal. Ela não sabe que a experiência de parto dela podia ter sido muito melhor se ela tivesse mais informação, porque depois, claro, fizeram uma episiotomia, e o bebé foi tirado com ventosas, etc., mas “correu tudo bem”. Ela teve uma experiência positiva, e ainda bem, porque há muitas experiências com violência obstétrica que são positivas na mesma; a violência obstétrica é objectiva, mas a experiência de parto é subjectiva. Portanto, ela teve uma experiência boa, mas houve violência obstétrica, porque ninguém a informou de nada. Basicamente, obrigaram-na àquilo; só que ela não se sentiu obrigada, porque como ela não conhecia outras opções, e foi jogando o jogo deles.

E porque é que acha que as normas não são actualizadas de forma a corresponderem às evidências científicas actuais? Porque é que as nossas autoridades de saúde não alteram os protocolos?

Porque nós estamos muito atrasados relativamente às evidências científicas. É muito difícil actualizarmos profissionais mais antigos, que estão habituados a fazer as coisas de uma certa forma, porque aprenderam daquela forma. Os jovens que estão agora a acabar o curso de medicina ou de especialidade já vêm com outras ideias e já querem mudar um bocadinho as coisas. Mas, efectivamente, continuamos a ter muitos médicos que ainda fazem as coisas à maneira antiga. Portanto, ou nós temos uma renovação de gerações, ou então é muito difícil que estas gerações mais antigas de profissionais de saúde consigam actualizar-se, porque eles não sabem fazer as coisas de outra forma. Aprenderam assim, e acham que é assim que está correcto. É muito difícil, por exemplo, dizermos a um obstetra que não deve fazer episiotomia, porque não basta não fazer episiotomia. E o que eles dizem é que ela é necessária, e que sempre que fazem é por necessidade. E eu acredito que eles acreditam nisso! Porque se eles não mudarem toda a assistência ao parto, aquela episiotomia, para eles, vai ser necessária, efetivamente, porque eles não conhecem estratégias. Se têm mulheres sempre a parir em posição sempre litotómica – ou seja, deitadas – é óbvio que eles vão achar que a episiotomia é necessária, porque não sabem que há uma alternativa – que é terem as mulheres em liberdade, a parir na posição em que elas escolhem, e darem informação a estas grávidas para elas saberem que podem escolher e que têm direitos.

Os jovens que estão agora a formar-se já se actualizam mais, procuram as evidências científicas, e já vivem num mundo também mais digital, onde podemos encontrar mais facilmente essas evidências. Para eles, é mais fácil alterarem as práticas; até porque já temos vários obstetras no Instagram, no YouTube e noutras plataformas, a informar sobre um parto respeitado – aquilo a que se chama o parto humanizado – e uma boa assistência ao parto baseada em evidências. Portanto, fazendo esses cursos e tendo acesso a essa informação, eles mais facilmente transpõem isso para a sua prática clínica. Pelo contrário, os profissionais mais antigos têm muito mais dificuldade, por um lado, em encontrar esta informação, e depois em aplicá-la, porque é muito difícil mudarmos os protocolos que aplicámos a vida toda e que achamos que têm sucesso porque as pessoas dizem que estão satisfeitas. Só que agora temos cada vez mais grávidas a conhecer os seus direitos, e que estão insatisfeitas e reivindicam e dizem que não querem assim. E esses médicos, depois, não ficam muito contentes com isto. E também por isso há tantas cesarianas.

Aliás, salienta que este é um problema sistémico e não individual, já que os profissionais de saúde não têm consciência de estarem a praticar violência obstétrica porque estão a fazer aquilo que acreditam ser o correcto. Também será assim com o consentimento informado, que crítica no livro, dizendo que não devia resumir-se a assinar um papel? Como é que acha que deveria funcionar o consentimento informado no parto?

Não sou eu que acho; isto consta em legislação nacional, internacional e em convenções – o consentimento informado é um direito humano. O consentimento informado parte da premissa de que temos direito a não ser sujeitos a tratamentos indesejados. E indesejados abrange tudo, independentemente de aquilo me salvar a vida ou não – se eu não quiser aquele tratamento, eu tenho direito a recusá-lo. O que acontece é que, para haver consentimento informado na área da saúde, a pessoa precisa de ter informação para tomar decisões, e, logicamente, uma pessoa não tem de saber tudo sobre aquela área de especialidade – neste caso, obstetrícia. E a questão aqui é: onde é que a pessoa vai buscar informação, se os profissionais de saúde se recusam a dar informação, como acontece, muitas vezes, ao longo da gravidez? Quando a grávida quer falar sobre o parto na consulta, os médicos dizem-lhe que ainda é muito cedo, que ainda faltam muitas semanas, e mais tarde falarão sobre isso. E depois, nunca querem falar. Isto acontece imenso. Portanto, não há informação. As grávidas muitas vezes vão até buscar informação à Internet, e não se sabe se as fontes são fidedignas, e se aquilo é aplicável àquele caso, porque as grávidas são todas diferentes. E às tantas, como os profissionais de saúde não querem dar informação isenta e cientificamente válida, há aqui uma colisão, porque as grávidas também não têm a certeza daquilo que leram. Muitas vezes, têm planos de parto em que não sabem muito bem o que aquilo significa, mas como têm medo, escrevem que não querem um determinado procedimento, e depois isto é um grande problema. Portanto, cabe aos profissionais de saúde dar informação às grávidas para elas poderem decidir se querem ou não aquelas intervenções.

Além disso, é necessário que haja espaço e tempo para que elas possam decidir o que querem, porque se chegarem ao pé de uma grávida no momento do parto e perguntarem-lhe se quer fazer um procedimento, a grávida não tem tempo para pensar e está a sentir-se pressionada.  O modelo ideal é que o médico lhe dê informação com tempo e espaço para ela decidir. E claro que a informação que tem a ver com o parto deve ser dada durante a gravidez, já que nós sabemos que o parto terá de acontecer; se não for um parto, será uma cesariana. E é preciso prestar esclarecimentos: se a grávida sentir que não dispõe de toda a informação para decidir, e precisa de saber mais, o profissional de saúde tem de esclarecer a grávida, e de respeitar, depois, a decisão dela. Se ela não quiser uma intervenção, ela não lhe pode ser feita. O que acontece nos hospitais em Portugal é que dão-nos um formulário de consentimento informado quando entramos na maternidade e dizem que é obrigatório assinarmos para nos poderem internar. E a grávida assina o papel, que às vezes até está em branco e só apontam depois o que é que fizeram, como ventosas, cesariana, ou seja o que for. Mas aí, a grávida já assinou, e muitas vezes nem sequer leu porque estava com contracções e assinou sem saber sequer o que está a assinar. Aquilo que lhe disseram é que é necessário para ela ficar internada. Ora, isto não é consentimento informado de forma alguma.

woman wearing gold ring and pink dress

Também refere no livro um inquérito da The Lancet, de 2021, em que Portugal surge mal posicionado, entre 12 países europeus, na qualidade dos cuidados maternos e neonatais durante a pandemia. Este é, de facto, um problema maior em Portugal do que noutros países?

Sim; esse inquérito é o espelho daquilo que se passa em Portugal. Neste momento, estamos no pódio dos piores, embora a Ordem dos Médicos e os próprios médicos queiram continuar a dizer que somos dos melhores países em termos de competências a nível obstétrico. E somos, tecnicamente; temos profissionais muito bons, mas que estão a ser mal utilizados porque utilizam-nos em partos de grávidas de baixo risco. Em partos de alto risco é óptimo termos obstetras tão qualificados – porque os temos –, mas não precisamos deles nos partos em que não é necessário sequer ter obstetras. E o problema é que isto leva à medicalização e à instrumentalização do parto; e temos ainda uma taxa altíssima de partos instrumentados e de episiotomias. Nesse inquérito da Lancet, aparecemos como os piores também a nível do consentimento informado – as mulheres não são envolvidas nas escolhas, tudo lhes é imposto. Ou seja, apresentam-lhes as intervenções como obrigatórias, e normalmente é isso que fazem. Até porque as grávidas, quando apresentam um plano de parto, há sempre quem lhes diga que, se o querem dessa maneira, têm de procurar outro hospital, porque naquele não fazem assim; e que ali é obrigatório fazer isto ou aquilo. E não é assim. Em Saúde, nada é obrigatório; nós é que decidimos, o corpo é nosso. Mas em Portugal ainda temos muito esta ideia das intervenções obrigatórias. Só que as grávidas têm estado cada vez mais informadas e, portanto, a recusar cada vez mais procedimentos que sabem não serem necessários; ou que, pelo menos, à partida não são necessários. E isto tem criado algum backlash por parte dos profissionais de saúde, porque as grávidas estão a fazer exigências às quais eles não conseguem dar resposta nos hospitais que temos hoje. E está a ser difícil porque temos um desencontro de gerações. A geração que está agora a ter bebés é a geração dos millennials, e a geração que está a prestar apoio ao parto é muito mais velha, são os boomers. Portanto, nós temos informação e queremos fazer uso dela, mas depois quando chegamos aos hospitais, eles dizem que não vão fazer assim, porque não sabem sequer fazê-lo.

E esta iliteracia que ainda existe sobre estas matérias, não começa desde logo na pouca informação que existe sobre a saúde feminina e o ciclo menstrual? Porque o conhecimento sobre os ciclos, por exemplo, é importante até para datar a gravidez de forma rigorosa. Se for mal datada, pode criar ansiedade e a grávida e os profissionais de saúde podem achar, por exemplo, que já se ultrapassou as 41 semanas de gravidez, e querer induzir o parto, quando não é esse o caso, e não haveria realmente necessidade de intervir.

Sim, sobre o ciclo menstrual e tudo o resto. Agora, as coisas já estão a mudar um bocadinho, até porque a Patrícia Lemos, por exemplo, escreveu um livro infanto-juvenil sobre o período, e esta informação já tem chegado mais às camadas mais jovens… Mas, de facto, ainda vivemos numa sociedade extremamente católica, em que nos incutem este nojo do nosso próprio corpo. O nosso corpo acaba por ser para o desfrute alheio, para outras pessoas; primeiro, para servir de cabide, porque temos de ser bonitas e usar roupas bonitas, justinhas, mas também não demasiado, porque senão, enfim, vamos para o inferno e coisas assim do género. E, depois, incutem-nos muito esta coisa de não nos podermos tocar, não podermos olhar para o sangue menstrual, não podermos cozinhar quando estamos menstruadas… Enfim, é tanta coisa. E o que é facto é que quando eu comecei nesta área, há quase uma década, lembro-me de as grávidas dizerem, muitas vezes, que não queriam ter um parto vaginal, ou que tiveram um parto vaginal e sabiam que as coisas depois nunca mais voltam a ser iguais no sexo. Porque, supostamente, ficam com a vagina muito larga; diziam elas que é porque a vagina dilata até 10 centímetros. E eu explicava-lhes que não é assim, é o colo do útero que dilata, mas a vagina até pode dilatar mais, e não é por aí. Mas isto para dizer que as mulheres não sabem a distinção entre vagina, colo do útero, útero. Então, quando alguém diz que uma grávida está com uma dilatação de cinco ou seis centímetros, elas não sabem, na verdade, o que é que está a dilatar. Elas nunca tocaram, nunca viram o colo do útero nem sabem para que serve. Então, é sempre esta coisa de só os médicos é que veem e que tocam, e nós estamos completamente na ignorância.

baby covered with white blanket

Claro que se nós, desde miúdas, aprendemos que é nojento tocar no corpo, e que o sangue menstrual é nojento; e só podemos aprender as coisas que lemos naquele caderninho da marca de tampões que na altura era a mais utilizada, e que dizia que o ciclo menstrual é assim: ovulamos no dia 14 e depois vamos menstruar no dia 28… Isto não é conhecimento absolutamente nenhum. Eu cresci nos anos 90, e ainda me lembro de querer imenso saber como é que funcionava o ciclo menstrual, e de ir ver às revistas para tentar perceber, e dizerem sempre que ovulamos no dia 14. E eu pensava, como é que isto pode ser assim? Será que somos todas assim tão certinhas? E então, quando há um atraso, é uma coisa anormal, é um problema de saúde? Até que depois vim a descobrir que isto não é verdade, não é assim que funciona; o corpo não é propriamente um relógio que está todo cronometradinho, a ovular e a menstruar como se fossemos todas iguais. Mas sim, eu abordei a questão da data prevista de parto porque as pessoas ainda confiam muito nesta sabedoria de que nós ovulamos todas no 14º dia do ciclo. E eu tenho uma amiga que engravidou e ovulou por volta do 46º dia do ciclo, porque teve um ciclo muito mais longo devido a uma questão de saúde. E os profissionais de saúde olharam para ela com imenso desdém, disseram que era impossível. E ela sabia que estava certa, mas, por causa disto, toda a gravidez dela foi mal datada porque os médicos não acreditaram no que ela disse. Ela sabia exactamente quando é que tinha ovulado e engravidado, mas os médicos fizeram tábula rasa disso, fizeram as contas deles, depois acertaram pela ecografia, e mesmo pela ecografia aquilo não batia certo com as contas dela. E isto no final da gravidez é um problema, porque há um protocolo de indução – que não acontece só em Portugal – às 41 semanas e, portanto, quando chegou a essa altura – nas contas dos médicos –, na verdade ainda não eram 41 semanas.  E depois há muita pressão. Portanto, é importante sabermos também que não existe um deadline, e atingir as 41 semanas não significa que o bebé fique logo em maior risco. Até porque, de facto, eu diria que na maioria das vezes a gravidez não está bem datada.

Refere também que a violência obstétrica pode mesmo tornar o parto numa experiência traumática para as mulheres. Ao longo destes anos em que prestou apoio, viu muitos casos desses?

Sim, a maioria tem stress pós-traumático; sonha ou tem pesadelos com a situação, e revive muito estas situações também nos aniversários dos filhos, porque apesar de ser o dia do nascimento do filho, também é o aniversário de uma experiência absolutamente traumática. Eu tenho clientes em que os danos que têm são, muitas vezes, até mais psicológicos do que físicos. Porque os físicos, podem ser, por exemplo, questões relacionadas com a episiotomia, ou até neurológicas, mas há muitos mais casos de danos psicológicos. Temos mulheres que não conseguem conectar-se com os seus próprios filhos, nem criar uma ligação com eles; ou mulheres que desistem de amamentar porque sentem que aquele filho não é delas. Tenho até clientes que acham que o filho foi trocado na maternidade, que não pode ser delas, têm mesmo dúvidas e pedem o processo clínico porque querem ter a certeza de que é impossível ter havido trocas. Ou seja, há aqui um corte naquilo que é a fisiologia e a biologia tão natural no parto, no pós-parto e na amamentação. E quando isto é cortado, depois, tem efeitos nocivos não só para a saúde mental da mãe, mas também para os bebés. Porque são bebés que, depois, não têm uma mãe responsiva, não têm contacto de pele com pele 24 horas por dia, porque as mães não sentem que é o filho delas; ou têm uma mãe que não os amamenta porque simplesmente não consegue sentir essa ligação. E temos bebés que são desmamados precocemente ou que nunca mamaram sequer, e isto é um problema de saúde pública, porque sabemos que os bebés que não são amamentados terão, no futuro, um maior risco de obesidade, de diabetes, de doenças autoimunes, de asma, etc. E na primeira infância também, portanto, é efectivamente um problema de saúde pública. Por isso, devíamos proteger muito mais a gravidez, o parto, o puerpério e amamentação – e ainda não o fazemos em Portugal.

photo of baby holding person's fingers

Durante a pandemia, inclusivamente, foram aplicadas medidas que incluíram a proibição de as grávidas poderem ter um acompanhante, a separação das mães dos seus bebés e o uso obrigatório de máscara durante o trabalho de parto. E estas orientações da Direção-Geral de Saúde não tiveram qualquer base científica. Foi um período em que os direitos das grávidas foram violados de forma mais intensa que o normal?

Eu não diria que foram violados de uma forma mais intensa. O que eu diria é que efectivamente estes direitos já não eram respeitados, mas com a pandemia houve maior visibilidade para estas situações. Se antes havia pessoas que não reclamavam porque tendiam a relativizar e a desvalorizar as situações, durante a pandemia, como tudo isto foi noticiado e as regras estavam em todo o lado, as pessoas começaram a questionar-se e a pensar que aquilo não fazia sentido nenhum – quer dizer, uma grávida não podia ter acompanhante durante o parto, mas assim que saísse, iria estar com ele, e tinha estado com ele também antes de entrar no hospital! Depois, o facto de não poderem amamentar o bebé e não poder estar com ele também não fazia sentido absolutamente nenhum. Até porque a evidência que tínhamos – e a Organização Mundial da Saúde [OMS] foi peremptória nisto –, desde o início, era que os benefícios da amamentação ultrapassavam aquilo que pudessem ser os riscos da covid-19. Aliás, já se tinha percebido que os bebés, à partida, nem sequer eram afectados, ou particularmente afectados; não eram um grupo de risco. Portanto, a amamentação prevalecia e seria sempre mais importante o contacto pele com pele com a mãe; e isto é uma questão de saúde pública, repito. E enquanto a OMS esteve muito bem nisto, e fez vídeos a promover a amamentação e o alojamento conjunto, a verdade é que a maioria das pessoas não tem acesso a esta informação. A informação a que tinham acesso era aquela que estava nos media, e os media passavam a informação dada pela DGS. Portanto, na pandemia, todo o país ficou a acreditar que as mães não podiam ver os seus bebés, nem amamentar – isto é problemático, é violência obstétrica, e também violência neonatal, feita pela DGS. Podem dizer que a DGS é composta por profissionais de saúde, e é, mas não exclusivamente.

Mas, acho que naquela altura, como houve mais mediatismo relativamente àquilo que estava a acontecer nos hospitais, os casais também começaram a revoltar-se mais e começaram a procurar saber se havia alguma lei que os protegesse e a questionar-se sobre quais eram os seus direitos. E começaram a fazer imensas reclamações. Foi, de facto, uma altura muito boa para as pessoas perceberem que têm direitos; também se fizeram algumas reportagens sobre isto. E foi bom porque as outras pessoas, que ainda não estavam grávidas, e que agora eventualmente estão a engravidar ou a pensar em ter bebé, já estão mais informadas e já sabem que têm direito a ter três acompanhantes, e têm uma série de direitos que efectivamente não foram cumpridos durante a pandemia, e continuam a não ser em muitos hospitais. Ou, quando são, é de uma forma muito difícil.

woman kissing baby

E todas essas regras sem nexo, e até prejudiciais para as mulheres e para os próprios bebés, acabam por ter uma impunidade; não houve, nem há ainda, consequências para as autoridades de saúde por essas práticas?

Depende do que as pessoas fazem. Muitas vezes, as pessoas não reclamam; quando dizem que reclamam, é porque reclamaram na caixinha de comentários do Instagram de alguém que falou sobre o assunto. Para elas, isso já é reclamar porque já tiraram aquilo do peito, mas isso não é reclamar, efectivamente. Depois, há pessoas que só reclamam a alguém no hospital, mas isto também não é uma reclamação – a reclamação tem de ser formalizada. Eu até lancei um guia prático porque percebi que as pessoas não sabem como fazer reclamações, nem a quem dirigir as reclamações, nem o que devem dizer, ou como é que a reclamação deve estar estruturada. Então, lancei esse guia para as pessoas conseguirem orientar-se e poderem reclamar sozinhas, porque não é preciso advogados para fazer as reclamações todas. Mas, de facto, as pessoas ainda reclamam pouco. Quando me chegam, muitas vezes, é porque percebem que querem reclamar, e não querem fazê-lo sozinhas porque têm medo de eventuais represálias, e querem perceber qual é a melhor forma de o fazer, e também se judicialmente podem ter algum ganho ou vantagem; se é possível ganharem aquele caso. E, efectivamente, nem sempre é possível. Nem sempre temos casos assim tão fortes que seja possível levar para tribunal.

Ainda assim, é útil reclamar, porque tanto a Entidade Reguladora da Saúde [ERS] como a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde acabam por guardar registos. E depois, por exemplo, a ERS faz um relatório trimestral, se não estou em erro, em que colocam lá todas as reclamações que são feitas, ou as mais importantes; e também já temos lá reclamações por violência obstétrica, embora não seja a própria ERS a classificá-la dessa forma. São as pessoas que classificam como violência obstétrica; e isto é bom porque, por um lado, notifica-se os próprios serviços de bloco de partos e obstetrícia do que correu mal e do porquê de aquela grávida ter ficado insatisfeita, e do que podem melhorar na equipa – se eles quiserem ter essa discussão em equipa, porque podem não querer. Mas as administrações hospitalares também ficam a perceber o que se passa no bloco de partos, por exemplo; e a ERS tem uma noção de quantas queixas existem pelos mesmos motivos naquele hospital, ou em todos os hospitais do país.  Portanto, as queixas muitas vezes têm resultado – podem é não ter o resultado mais imediato. E, claro, depois, tudo o que seja judicial, que é a parte de receber indemnizações, e de fazer a queixa-crime, etc., aí já é tudo muito mais lento. Mas mesmo muito, muito mais lento.

Tendo em conta que vivemos numa altura em que se fala muito de feminismo e dos direitos das mulheres, parece-lhe que este tema é suficientemente falado ou, pelo contrário, ainda se discute pouco, nomeadamente em círculos feministas?

Penso que agora já começa a ser abordado, finalmente. Até 2021, nem por isso, principalmente em Portugal. E desde que temos o Observatório de Violência Obstétrica, que veio fazer imenso pelo movimento, temos cada vez mais associações feministas a referirem a violência obstétrica, e temos mais eventos sobre isso. Neste momento, penso que já não há nenhuma associação feminista em Portugal que não saiba o que é violência obstétrica, e que não a inclua também em todo o tipo de violência de género ou contra as mulheres. Penso que já está mais do que estabelecido que, efectivamente, isto é violência institucional de género, e os movimentos feministas falam cada vez mais sobre isto. Alguns, se calhar, não têm ainda tanta noção do que é, mas estão a começar a apalpar terreno e a tentar perceber; até porque isto veio dar nome àquilo que muitas mulheres já sentiam, e sabiam que tinham passado por isto, mas sem terem ainda um nome para o qualificar.  Eu lembro-me que quando se começou a falar mais sobre isto, e quando surgiu o Observatório de Violência Obstétrica, até nas primeiras manifestações que foram feitas, havia mulheres já com filhos da minha idade – na casa dos 30 – a dizer que passaram por tudo aquilo, mas que na altura não sabiam que tinha um nome. E que ainda hoje têm dores da episiotomia que foi feita, ou ainda têm pesadelos… Portanto, isto fica para sempre; não é por não falarmos nisto que as coisas desaparecem. Simplesmente, não tínhamos um nome para este tipo de violência, e ainda bem que agora temos, e temos pessoas que se identificam c om isto. E há até apoiantes do Observatório de Violência Obstétrica que são mulheres que já passaram pela menopausa, mas que sabem que foram vítimas, e só agora é que perceberam qual era o nome para aquele tipo de violência que sofreram já há 30 ou há 40 anos.

As fotografias de Mia Negrão são da autoria da fotógrafa Sónia Brito


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