Tinta de Bisturi

A Matrix aqui à nossa frente

medical professionals working

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Um jovem contou no programa da Antena 1 “Portugueses no Mundo”, como é a sua vida na China, dependente de um telemóvel. Na China, diz ele, é impossível viver sem telemóvel: ” se a bateria do telemóvel acaba, não dá para apanhar o metro para ir para casa, não dá para chamar um táxi, não dá para pagar a comida, não dá para fazer nada”.

O dinheiro como objecto praticamente desapareceu e se queremos um bilhete de metropolitano, temos uma aplicação; para um restaurante, outra aplicação; para o táxi, nova aplicação; para entrar no prédio há dependência de outra aplicação, ou de um registo biométrico. Somos controlados no tempo gasto, na presença nos espaços e na actividade de compras ou de ócio.

person carrying umbrellas

O telemóvel é agora um porta-moedas, um bilhete de identidade e uma chave. Na China passaram do dinheiro para as aplicações. Por acaso também regista fotos, permite filmes e jogos e também acesso à Internet e a telefonar. Tendo localizadores e mecanismos de orientação, o telefone é agora o que garante a nossa cidadania vigiada. Estamos protegidos pois indica quem se aproxima, e escolhe os encontros que desejamos ter. O telemóvel é uma rede de encontros, uma forma de negociar e sobretudo uma fonte de informação.

O jovem gostava, e achava que as aplicações, que só são disponibilizadas em chinês, são amigas do utilizador, fáceis de perceber, e de interiorizar, mesmo não conhecendo a língua. Nos restaurantes, por exemplo, nem sequer precisa de interagir com os empregados. Tudo se faz por um aplicativo.

Do ponto de vista conceptual estamos perante um telemóvel que nos ajuda a orientar, que nos garante não esquecer a medicação, que nos relaciona com sistemas de segurança, que nos identifica na relação institucional. Associado às pulseiras, que hoje parecem relógios, o telemóvel é um analista de saúde registando pulsações, glicemias, pO2. Os telemóveis estão, portanto, para além da privacidade, e convertem-se em nós mesmos. Eles interligam-se com os carros, com a televisão, com a luz de casa, e permitem abrir os estores e persianas, mesmo quando vamos de férias. A tecnologia invade o nosso quotidiano e começa a ser uma limitação da cidadania info-excluída.

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Na China o poder lembrou-se de utilizar isto tudo para catalogar a cidadania e pontuar as pessoas em níveis de qualidade. Podemos ser multados, repreendidos, mudados de emprego se os pontos obtidos são inadequados. O protesto ou o desvio da norma paga-se em retirada de pontuação.

O Estado manda e tu obedeces. A sociedade caminha para uma mutação uniformizada, previsível, redutora de riscos, indutora de segurança, obsessiva de rotinas e normalização. 

Como sempre, há coisas boas e más. Se a esta vigilância corresponder uma distribuição igualitária de bens e riqueza, se com ela houver igualdade de acesso à Saúde e à Educação, se forem induzidas para estilos de vida saudáveis, com endorfinas sempre em alta, sentem-se felizes – e são autómatos a quem se pode dar a droga da felicidade permanente. A Matrix é, pois, uma escolha à nossa frente.  

Diogo Cabrita é médico


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

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