Recensão: Rol de Cornudos

O gracioso inventário da cornadagem

por Paulo Moreiras // Abril 20, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Rol de cornudos

Autor

CAMILO JOSÉ CELA (tradução de Afonso Praça)

Editora

Quetzal (Março de 2024)

Cotação

17/20

Recensão

Há livros que, pela sua importância, curiosidade ou sátira, não devem nunca deixar de ter pouso garantido nos livrescos escaparates. Este é um deles. Publicado em Espanha no ano de 1976, dois anos depois, pela mão do tradutor José Martins Garcia, conheceu tradução em Portugal, numa edição de Fernando Ribeiro de Mello/Edições Afrodite, agitando as águas de um país que ainda se espraiava na apreciação dos novos aromas da liberdade, deixando para trás os olores bafientos da outra senhora, terrunho vincadamente católico e de arreigados costumes quanto à natureza e limpeza das frontes masculinas. Vinte e três anos corridos, e antes do novo milénio, eis que nova edição arriba às livrarias portuguesas, com diferente tradução, desta feita sob a responsabilidade de Afonso Praça (1939-2001) e edição da Editorial Notícias. Edição essa que agora a Quetzal, recupera, em boa hora, com ligeiras correcções ou pequenas alterações.

O certo é que, tanto em Portugal como em Espanha, existe uma forte tradição de cornudagem, daí que o nobelizado Camilo José Cela (1916-2002) tenha deitado o olho aos diversos espécimes a fim de recensear o fenómeno. Além disso, recordemos que na Espanha de 76 o divórcio ainda não era consentido, pelo que o número de cornudos deveria ser imenso.

Diz-se que o cornudo é o último a saber. Agora já não há razões para isso. Basta consultar este rol e enfiar a carapuça para não se denunciar diante dos outros. São 363 verbetes, de A a Z, incluindo o K e o W, para que nenhum espécime se sinta excluído ou marginalizado. Há cornudos que chegam para todos: "Não se trata de um livro, mas apenas de um conjunto de verbetes eruditos colecionados com o único propósito de facilitar uma ferramenta ao sábio que a queira utilizar", esclarece o autor. O inventário abre com o "Cornudo à aerossol" e encerra com o "Cornudo Ziehen-Oppenheim".

Que se saiba, e disso Camilo José Cela nos dá conta no texto de abertura Prooemium galeatum, já antes, ao longo dos séculos, outros autores haviam aflorado o tema da cornudagem, buscando as origens deste terrível achaque social, assim como a sua melhor compreensão, lançando cada um o seu alvitre, sempre de acordo com o ar do seu tempo, que esta coisa de cornos nunca foi sopa que se tragasse sem sobressaltos ou amofinações.

Todavia, apesar dos muitos chistes, pilhérias ou facécias que se alinhavaram, o primeiro a dedicar-lhe verdadeira atenção e análise científica foi o filósofo francês, Charles Fourier (1772-1837), ao que se sabe, o primeiro a sistematizar, à moda de Linneu, a ordem natural dos cornudos no mundo, com o seu trabalho intitulado Les Cocus ou Hiérarchie du Cocuage (1808), coligindo desta maneira uma vasta informação existente acerca dos diversos espécimes que andavam dispersos na natureza. Nem de propósito, neste Rol de Cornudos, Cela presta-lhe humilde homenagem In Memoriam, em página destacada.

De referir, aliás, para que não se perca o fio à meada, que esta eminente obra de Charles Fourier teve duas edições em Portugal: a primeira, Quadro analítico da corneação, tradução de Aníbal Fernandes, edição &Tc. (1980); e a segunda, Dos cornudos: suas espécies e tipos, tradução de Helder Guégués, edição Cavalo de Ferro (2004).

De entre os vários livros que Dom Camilo escreveu, este é sem dúvida o mais marginal, ousado e jocoso, demonstrando toda a verve, irónica e satírica, que o caracterizavam, não só como pessoa mas também como escritor.

Para que o leitor não fique ougado perante o desfilar destes acepipes, aqui seguem alguns exemplares, em jeito de amuse-bouche, uma vez que o banquete literário se anuncia assaz lauto e farta-brutos. Deliciem-se!

Cornudo caracol. O cornudo adepto da helioterapia, isto é, aquele que, pondo os corpinhos ao sol, fica todo satisfeito. É espécie dada à contemplação e que, além dos cornos, não tem mais nada na cabeça.

Cornudo cinegético. Aquele que enfeita os cornos compensa de perdiz. É espécie que, à sua escala, pertence à alta sociedade, mas faltam-lhe normas morais.

Cornudo clister. Aquele que supõe que os cornos admitem o enema de água de rosas. É espécie que confunde a sua situação com os signos do zodíaco mal delineados.

Cornudo pasmado. Cornudo que, ao abrir os olhos, fica mais espantado do que o necessário. É espécie flatulenta em séries ímpares.

Cornudo xenófobo. Cornófobo que revela ódio ou hostilidade ao cornófilo estrangeiro. Costuma ser espécie forreta (francesa ou de qualquer modo vinculada à sua cultura) que poupa apenas por poupar. Os seus confrades são, muitas vezes, os mortos mais ricos do cemitério.

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