Do "negacionismo" dos partidos da esquerda ao apelo ao "bom senso" do CDS-PP

Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

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por Elisabete Tavares // Abril 24, 2024


Categoria: Exame

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Os ânimos exaltaram-se, ontem, no Parlamento, durante um debate sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado pelos países no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). Acusações de “negacionismo” e discussões entre bancadas dos partidos, evitou um debate profundo sobre o Tratado. O tema chegou ao Parlamento por força de uma petição e também de um Projecto de Resolução do Chega, que defendia a não adesão de Portugal ao Tratado, mas que teve apenas o apoio da Iniciativa Liberal. Já os partidos da esquerda acusaram os peticionários de serem negacionistas – um dos insultos que foi muito usado durante a pandemia de covid-19. A autora da petição, a médica dentista Marta Gameiro, lamentou os insultos aos peticionários, mas disse estar “contente” porque a iniciativa “foi um sucesso”, já que forçou os partidos a debater o plano pandémico da OMS, que sofreu profundas alterações últimos dois meses. Afinal, os direitos humanos e as liberdades fundamentais já não vão ser ‘riscados’ do plano pandémico, o qual poderá ser adoptado pelos países já no final de Maio, se não houver um adiamento.


Muita parra e pouca uva. Ainda não foi desta que houve no Parlamento um debate profundo sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). O debate agendado para ontem descambou em insultos e altercações, com o presidente da Assembleia da República a ter de dar vários ‘puxões de orelhas’ aos deputados.

Os deputados foram ontem obrigados a debater o chamado Tratado Pandémico da OMS por força de uma petição, da autoria da médica dentista Marta Gameiro, que pedia um referendo para decidir a adesão de Portugal ao plano. Também foi debatido um Projecto de Resolução do partido Chega que recomendava ao Governo a não adesão ao Tratado e que só mereceu o apoio da Iniciativa Liberal.

Num clima aceso e intenso, geraram-se discussões cruzadas entre deputados de diferentes bancadas, mostrando que está hoje ainda bem viva a polarização observada na pandemia de covid-19, cuja gestão acabou por ser politizada, nem sempre com a imposição de medidas fundamentadas em pressupostos científicos. O ruído e desordem obrigaram à intervenção do presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, que teve de impor ‘ordem na casa’, chegando mesmo a levantar o tom de voz para conseguir acalmar os ânimos, que estavam exaltados.

O presidente da AR (ao centro), num dos momentos em que se viu forçado a intervir para impor ‘ordem’ no Parlamento. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

“Senhores deputados: apelo ao sentido de autodisciplina e de auto-responsabilidade para que não tenha de ser o presidente da Assembleia da República a ter que fazer o condicionamento do uso da palavra, que eu não desejo, não gosto e não sou assim”, afirmou Aguiar-Branco após uma das altercações entre bancadas.

“Mas, se vossas excelências me obrigarem a isso, eu tenho que ir para outro tipo de intervenção que é aquela que vai ao encontro sequer da minha personalidade para que nesta Assembleia possamos fazer um debate democrático e fazer um debate democrático tem como pressuposto ouvir os outros”, salientou.

Mas, afinal, para quê tanta celeuma em torno do chamado Tratado Pandémico? Em causa está um plano da OMS que tem vindo a ser negociado pelos diversos países e envolve duas partes – alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e a criação de um Tratado para pandemias. As últimas versões do plano já excluem as propostas mais extremistas e polémicas, como a eliminação do conceito de direitos humanos e das liberdades fundamentais do Regulamento, tal como o PÁGINA UM noticiou na segunda-feira.

A petição de Marta Gameiro, que foi assinada por cerca de 7.500 pessoas e já tinha sido debatida em sede de comissão da Saúde, foi criada antes das alterações recentes ao plano da OMS.

Os apoiantes da petição que pedia um referendo sobre a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico preencheram simbolicamente de ‘branco’ as galerias da Assembleia da República durante o debate. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

O debate começou com a deputada Rita Matias do Chega a apresentar a proposta do seu partido. A deputada aproveitou para criticar a gestão da pandemia de covid-19 em Portugal, dizendo, nomeadamente, que “falta fiscalizar, falta apurar, falta escrutinar a má gestão da pandemia, o excesso de mortalidade”. “Acima de tudo, falta julgar a passadeira vermelha para a corrupção e para o tráfego de influências que foi estendida durante a pandemia”, disse na sua intervenção.

A Iniciativa Liberal indicou que votaria favoravelmente a proposta do Chega, mas foi o único partido a fazê-lo.

Dos partidos que formam o actual Governo, do lado PSD, o deputado Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, evitou o tema em concreto do debate, preferindo promover o plano “One Health” da União Europeia, que visa uma abordagem mais abrangente do que é a saúde humana.

O deputado do CDS-PP foi a voz da moderação. João Pinho de Almeida defendeu que “temos que estar preparados” para uma pandemia e que “a discussão sobre isso deve ser feita com um princípio fundamental que é o princípio do bom senso, não extremarmos posições, não negarmos evidências e não enfiarmos a cabeça na areia para não assumirmos responsabilidades”.

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A gestão da pandemia na maioria dos países – com excepção da Suécia – causou graves danos na população, incluindo um enorme excesso de mortalidade, e também na economia e muitas das políticas não tinham fundamentação na evidência científica. Além disso, foi censurada informação verdadeira, nomeadamente em torno de temas como imunidade natural, máscaras e vacinas contra a covid-19.

Lembrou que na covid-19 “vivemos limitações à liberdade que nunca imaginámos viver e mal é que não questionemos sobre a pertinência e a adequação das mesmas”, salientando que “ninguém no seu perfeito bom senso pode dizer que todas as limitações foram perfeitamente justificadas e que não temos que debater nada sobre isso”.

Recordou que “houve muita gente prejudicada, houve muitas empresas prejudicadas, houve muitas famílias desfeitas, houve pessoas que não se puderam despedir dos seus familiares que morreram nesse período” e questionou: “nós não nos questionamos sobre essas limitações à liberdade? Claro que temos de questionar”. Defendeu que “quando discutirmos soluções para eventualmente lidarmos com estas situações no futuro nós temos que estar preparados para saber o que é mais ou menos adequado”, tendo sempre “o princípio da liberdade” presente.

Na conclusão da sua intervenção, o deputado centrista lembrou que o Tratado Pandémico não está aprovado na OMS mas, “se disser aquilo que é dito na petição e se disser aquilo que vem no projecto do Chega, vai muito para além daquilo que á aceitável do ponto de vista da soberania nacional”. Disse que “o que temos de fazer é manter o bom senso e pronunciarmo-nos no momento próprio e, sobretudo, não entrarmos em limitações de liberdade nem limitação do escrutínio, sem ter a responsabilidade e sem se ser avaliado”.

Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o plano pandémico seja assinado pelos países mas as dúvidas têm vindo a crescer e nos últimos dois meses as propostas mais polémicas acabaram por cair, incluindo a tentativa de eliminação dos direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento Sanitário Internacional. (Foto: D.R.)

A postura moderada do deputado do CDS-PP contrastou com a de outros partidos e o clima tenso. Os partidos da esquerda foram unânimes no uso do ‘chavão’ habitual na pandemia de covid-19, acusando de “negacionismo” os peticionários. Sentada na galeria, Marta Gameiro teve ainda de ouvir a deputada Isabel Pires do Bloco de Esquerda a tentar ‘colar’ os peticionários a movimentos ‘anti-vacinas’. A deputada bloquista dedicou boa parte do seu discurso a enumerar a evolução da aplicação de vacinas em Portugal, sem, contudo, endereçar os aspectos concretos em causa na negociação do plano pandémico da OMS.

A deputada do Bloco acabou por lançar ‘farpas’ ao Chega, dizendo tratar-se de um debate de “mentiras e hipocrisia” e acusou o partido de André Ventura de ter ficado do lado das farmacêuticas na covid-19, por ter chumbado uma iniciativa do Bloco que propunha ‘levantar’ as patentes das vacinas. Isabel Pires defendeu que “as vacinas não deviam ser um negócio milionário”, que a “saúde não devia ser um negócio milionário” e que a “Pfizer não devia ter lucros de 22 mil milhões de euros à custa da vacina”.

O deputado único do Livre, Rui Tavares, também mencionou o tema das vacinas e não fez referências específicas ao que está na mesa de negociações na OMS.

Marta Gameiro, médica dentista, defensora da medicina baseada na evidência científica e autora da petição, esteve na comissão de Saúde a defender a petição. A médica organizou já dois congressos internacionais, em 2022 e 2023, um sobre a gestão da pandemia e outro sobre saúde mental e propaganda durante a covid-19.
(Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

O deputado socialista João Paulo Correia elogiou a gestão da pandemia que foi feita pelo seu partido quando era governo e criticou a petição e a proposta do Chega.

Outros deputados recorreram ao termo pejorativo “negacionismo”, incluindo o deputado do PCP António Filipe e a deputada única do PAN, Inês Sousa Real. “De facto, o negacionismo e o populismo têm alguns aspectos curiosos, é que negam as evidências científicas”, disse Sousa Real no início da sua intervenção, sem, contudo endereçar o conteúdo concreto da petição ou as propostas que estão na mesa na elaboração do plano da OMS.

No final do debate, foi a vez de André Ventura, presidente do Chega, reagiu às críticas e insultos de alguns deputados. “Se fosse transparência, senhor deputado Rui Tavares, nós hoje sabíamos onde estão aquelas vacinas encomendadas e pagas pelo Estado português, (…) sabíamos onde foram parar os ventiladores que pagaram com o dinheiro dos contribuintes e nunca aqui puseram em Portugal, (…) sabíamos porque é que a presidente da Comissão Europeia não dá à polícia as mensagens sobre a compra de vacinas em toda a União Europeia, como lhe foi pedido”.

Dirigindo-se ao deputado socialista, Ventura afirmou que “não deixa de ser caricato que o PS termine a sua intervenção dizendo o mundo precisa “deste Tratado Pandémico”. “Senhor deputado, tenho uma grande novidade para si, olhos nos olhos: não é o mundo que precisa de um Tratado Pandémico, são os grandes grupos económicos que dominam o mundo, que querem encher as carteiras à custa da liberdade dos cidadãos”, concluiu.

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Marta Gameiro alertou que está a ser criada uma “indústria de pandemias” focada na venda de produtos e medicamentos a nível global. (Foto: D.R.)

O debate terminou com algumas manifestações por parte de pessoas presentes nas galerias, o que gerou mais um aviso de José Pedro Aguiar-Branco, que também acabou por ser um recado para os deputados: “as galerias não se podem manifestar e se nós, enquanto deputados, dermos o exemplo disso, seguramente não se manifestarão”.

Apesar de ter de assistir aos insultos contra os peticionários, Marta Gameiro mostrou-se satisfeita com o resultado alcançado. “Estou contente. A petição acabou por ser um sucesso porque teve de haver um debate”, afirmou ao PÁGINA UM, após o debate. Lamentou os insultos e que não se tivesse antes discutido em concreto o que está em causa no plano da OMS. Respondendo à deputada do Bloco, disse que o que fez foi “extrapolar” e usar referências a vacinas que constam da petição para “atacar injustamente o mensageiro” em vez de debater o plano pandémico.

Questionada sobre como vê os insultos e o uso da palavra “negacionismo”, Marta Gameiro disse que “de certa forma, já estava à espera”. Mas “esperava também ouvir dos deputados argumentos mais baseados em evidências”. Acusou alguns deputados de viveram “numa bolha” e não entenderem que hoje, a OMS “está focada em vender produtos, como testes, medicamentos, vacinas, apps de rastreio”. Disse ainda que não é “contra tratados internacionais”, mas criticou “a urgência” que está a haver para adopção do plano pandémico da OMS. “O que está a ser criada é uma indústria de pandemias”, afirmou.

Na sua ida ao Parlamento, Marta Gameiro foi acompanhada de apoiantes da petição, vestidos de branco, incluindo Joana Amaral Dias, psicóloga e candidata às eleições europeias pelo partido ADN, bem como Bruno Fialho, presidente deste partido que foi uma das surpresas das últimas legislativas.

Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos mais sólidos.


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