Ontem, em conversa com a filha de uma amiga, perguntei-lhe se já sabe o que quer ser quando for grande. Respondeu-me decidida que quer ser famosa. Voltei à questão: ⎼ Mas famosa como? Queres ser atriz? Cantora? Pianista? ⎼ Fiquei a saber que não tem preferência. Quer aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Não quer ter de trabalhar. Pareceu-me um excelente plano. Aos oito anos já percebeu que trabalhar é uma maçada sem glamour.
No regresso a casa, a conversa trouxe-me à memória um acontecimento do verão passado. Era agosto e, junto à estrada, um cartaz gigante anunciava: “Gloria Gaynor, em Albufeira”. Não prestei muita atenção. Assumi que se tratava de mais um “tributo a”, designação recentemente encontrada para as bandas de covers. Confesso que a minha primeira experiência com estes supostos tributos foi também a única. Como diria o meu avô, que era um homem muito diplomático: ⎼ Está muito bem, sim senhora, mas pra mim tem avonde!
Uns dias mais tarde, chamaram-me a atenção para o facto de ser mesmo um concerto da Gloria Gaynor. Custei a acreditar. Mas fiquei a saber que, aos 79 anos, Gaynor continuava a dar concertos um pouco por todo o mundo.
Entusiasmei-me. Não é todos os dias que vemos em carne e osso alguém cujas canções nos acompanham desde que nos lembramos de ser gente. A caminho da Praia do Pescadores, as ruas eram ribeiras de gente que escorria feliz em direção à diva. Lá em baixo, milhares de turistas esperavam pacientemente. Cantava-se. Conferiam-se conhecimentos ⎼ Lembras-te desta ….? E daquela …? – Para a maioria seria a primeira e a última oportunidade de ver a grande estrela da Disco ao vivo.
Por fim, os primeiros acordes. Gloria Gaynor subiu ao palco. O vulto branco soltou uma voz negra. Linda. Poderosa. Encheu a noite. Ficou bem clara a razão pela qual é uma superestrela. Mesmo os mais jovens estavam rendidos e acompanhavam. Reconheciam as letras de canções que foram sucessos ainda eu não era nascida. Por vezes, não na voz de Gaynor, mas em versões: – Esta é da Beyoncé! – … Enfim. São miúdos. Estão perdoados.
Terminado o espetáculo, dei uma volta pela zona dos bares. Circulava-se como se podia naquele mar de gente em que não se ouvia uma palavra em português. Avancei até ficar presa entre um carro e uma jovem que descia a rua, trazida por uma corrente contrária à que me empurrava. Olhámos uma para a outra. Defeito de profissão, assumi de imediato que se tratava de uma aluna ou ex-aluna. Olhámos uns segundos uma para outra, sem decidir se sorríamos ou não, até que a corrente voltou a empurrar-nos. Dois passos mais adiante, lembrei-me de quem era. Ainda olhei para trás. Seguia tranquilamente, de mão dada com um rapaz. Comentei com os meus acompanhantes. Também a tinham visto e ficado com a sensação de a conhecerem de algum lado. Percebiam agora quem era. Na verdade, ela não teria passado despercebida em qualquer outra rua de Portugal. No nosso país, esta miúda gira e pequenina enche estádios. Noutra rua qualquer, os fãs atropelar-se-iam por um autógrafo e uma selfie com a sua heroína. Não aqui. Não em Albufeira.
Penso no que é afinal ser famoso. No contraste entre ser-se uma estrela mundial e uma estrela portuguesa. Recordo como há alguns anos, no auge da sua carreira, um grande comediante nacional dizia que para acalmar o ego bastava ir a Aiamonte. Passada a fronteira, ninguém fazia a mínima ideia de quem ele era.
Lembrando o semblante da cantora, acredito ter visto no olhar dela o desejo de não ser reconhecida. Imagino-a aos 8 anos a sonhar aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Penso no contraste entre esse desejo de fama e uma expressão facial cansada que me diz “Por favor não me reconheças. Por favor deixa-me estar. Eu só vim ver a Gloria Gaynor.”
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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