ARQUITECTURA DOS SENTIDOS

Colecção

brown and blue wallpaper

por Mariana Santos Martins // Maio 1, 2024


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

O primeiro Deus apoiou o queixo numa mão, enquanto a outra tamborilava os dedos no balcão de madeira. Soltou um suspiro mudo.

Era o dia sétimo, infinitos sete dias de cansaço, e 99 milhões de afogados eram apontados como seguros e eficazes para uma travessia do Canal da Mancha. Os deuses menores apressaram-se a alinhar todos estes corpos, flutuantes, enquanto berravam que avançassemos, caminhassemos sobre as águas que limitassem as bóias humanas. Deuses menores, todos bem enxutos, que não aproximavam um pé das águas, pois seria demasiado arriscado. Mais a mais, até abotoavam o colete salva-vidas naquele enterrado capítulo… Declaration of competing interest.

white clouds and blue sky

Mas isso são detalhes, bainhas (não tirem a espada), mangas, debruns, corte em viés, colarinho. Agora são todos contra as bóias humanas. É esperar que não se repita de novo. E seguir limpando.

O primeiro Deus ouviu a minha zanga e, continuamente mudo, agarrou o copo de mel fervido em frente. Bebericou, gargarejou, desinflamou a garganta por milénios de silêncio.

Por momentos, julguei ir falar, mas continuou apenas o tamborilar de dedos, suave, em unhas bem cortadas.

Olhei o dia, pela janela, do obscuro bar, que transformava a luz lá de fora em noite cá dentro, e vi içado, numa bicicleta, um homem já todo ele ampliado. O pescoço desapareceu e a cabeça e os ombros fundiram-se, como se fosse todo ele uma bigorna, a pedalar, a custo, rua acima na direcção do bar. Tive medo, desviei o olhar, pensei – que te aconteceu homem bigorna? – conseguem ver o que lêem? Conseguem imaginar que somos, afinal, todos assim, invólucros que, de repente, deformam, incham, quase estouram, e a alma, cá dentro, a pedalar, pedalando em contínuo, rua acima na direcção do bar, mel fervido, a desinflamar a garganta por milénios de silêncio.

Rodas envoltas em ferro amarelo, visitas roubadas e um bocadinho que fique em cada canto. Cada canto que nos deixe um bocadinho.

Explico, ao primeiro Deus: sabes que sou uma colecção deles todos? Não há paz nisto.

Ele sorri.

O pascácio.

a dark room with a shelf filled with bottles and glasses

Claramente, detém um sentido de humor a roçar o cruel.

Uma colecção deles todos, dos deformados aos polidos – e, que raio, melhor que nos sobrem as árvores e animais simples. Esta experiência genética já produziu demasiada anomalia para se suportar, mas tudo continua, mesmo sabendo-se, desde os alquimistas, que corríamos o risco da ciência perder o respeito pela vida – pois, se não tem pela morte, saberá ter sequer tal conceito?

Pigarreou “talvez o melhor seja ficares no teu cantinho”.

Verdade. Controlar pelo menos três lados de cada vez, apontar a janela para onde é seguro.

Detalhes.

Mariana Santos Martins é arquitecta


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