O primeiro Deus atravessou o limiar daquele bar escuro e hesitou frente à Viela da Fonte da Caganita. Sabe Deus que caminhos com nomes de eventos, e não de pessoas, aportam uma carga demoníaca pesada. Ainda mais em entroncamentos. É sabido.
O escuro do bar espalhou-se, de dentro para fora, pelos céus e, sobre as nossas cabeças, trovejou implacavelmente. Encolhi-me e encostei-me à perna dele, não por medo, mas frio e desconforto. Aí viria a cheia para engolir bocados, quatro cavaleiros a cavalgar em cada nuvem, o dilúvio a limpar as serpentinas de percursos palmilhados, as paredes de farelo a esboroar, gritos histéricos de incautos, os chalupas de galochas no alto da Rua do Rixixi a ver as ondas apoiados em cajados, aguardando a ascenção, crentes que a sua consciência os salvaria antes de serem sorvidos.
Coitados.
Negacionistas a rebolar na lama, adolescentes dopados com ansiolíticos numa canoa a bater com os remos em afogados “A culpa é tua, a culpa é tua! Como te atreves?!”
Enfim, o caos. E o primeiro Deus manteve-se observador e não me enxotou. Havia uma serenidade no seu comprido casaco negro de fazenda que era boa de colher. O país de Viriato julgava-se por ele escolhido para escapar às águas, sabíeis vós, lusitanos, que não serviriam para mais do que bancada sobranceira ao apocalipse? É sabido que nada escapa, sabe Deus que limpar sem levantar o tapete é batota. Seus batoteiros.
Também nada há de agradável na margem dos rápidos, sabemos que a água pode galgar num ápice, o que me restava naquele cantinho era decidir-me por galochas, canoas ou lama, pouco mais, na verdade. Desta vez ninguém fez a arca, meteram-se todos os espertalhões debaixo de terra.
Energúmenos.
Por alguma razão os dilúvios são a melhor escolha para limpeza, escusam de se enfiar em tocas que só se vão escapar as bactérias na orla da exosfera, a enxurada infiltra-se em tudo.
E já que estamos no país das ruas, vielas e caminhos que falam dos momentos, olhei o primeiro Deus, sem lhe largar a perna, e perguntei “Afinal onde está a Irmã Lúcia? Aquela que dizia para uns senhores consagrarem a Rússia? É que os chalupas disseram que a senhora foi trocada! E, de facto, que a carinha laroca dela mudou muito, mudou! Não sei se será hábito cirurgia plástica em mosteiros, não me parece!
O primeiro Deus sorriu, pareceu até conter uma gargalhada, ignorando-me e mantendo a vigília. Amuei, carreguei o sobrolho como garota e bufei. Se fosse sensata largaria a fazenda negra e tinha antes montado refúgio, em tempos idos, na Rua Quebra Cus. Mas aquilo dos três meses de inferno e nove meses de inverno não me apaziguou, certo é que as pessoas fogem de quebrar as costas, ou os cus, ou as almas em rochas e ferro, e dentes também, além Douro, por uma razão, a salto até, pois num salto largo de lá fugiram todas as gentes.
O que não tem remédio, remediado está.
Ninguém quer na verdade falar sobre os retornados, insistem em amuos bufados em esquinas enquanto um dos reis que vai nu fala em reparações históricas. Como se a história fosse reparável. Como se fosse assim nau de mastro quebrado, que com os lacinhos das inaugurações bem atado até se põe de pé de novo, como se as nações de hoje devessem algo pelas nações de ontem. Porque se formos a secar o dilúvio de tristezas com as dívidas, sabe Deus onde é que isso vai parar. Qual o limite. Qual a nação (e o que é isso?)
Existem nações refúgio? Em 2020 quase achamos que sim, na Suécia não venderam novos normais com a mesma ganância. “Isto é como uma guerra” disse o rei nu.
Guerra, é o que estes reis de realejo inventam, na pausa da casa de banho, com as calças nos tornozelos. Patético.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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