A nuvem que envolve a baía pinta a cidade de uma cor parda que não engana. Izmir cheira a poluição, a borracha queimada e a tubo de escape. Mas, no grande caos que acontece dentro desta cúpula, somos interpelados por outros odores que se nos colam à roupa, ao corpo, ao cabelo. Que nos entram pelas narinas e se fundem no nosso cérebro, criando uma paisagem única. Izmir cheira a tabaco, a dejetos de gato, a miséria e a dinheiro da emigração. Cheira a café acabado de moer, a kebab, a especiarias, a chá e a perfume. Mas cheira, sobretudo, a orgulho, a amor à pátria e a hesitação entre a tradição e a mudança. Seis milhões de pessoas. Uma cidade. Muitas almas. Muitos corpos a viver concomitantemente no mesmo espaço e em universos distantes. Como se cada um destes seres fosse ele próprio apenas um aroma. Suficientemente forte para se impor e suficientemente difuso para que nada o possa impedir de fluir, de ser como é, independentemente do que o rodeia.
Izmir cheira a tradição islâmica. A incontáveis mesquitas. E, a apenas alguns metros destas, cheira a prostíbulos. Abertos em pleno dia. Tocas escuras. Imundas. Música insinuante. Espelhos. Muitos espelhos. Couro negro e encarnado. Mulheres apáticas. Cigarro na mão. Perna cruzada. Vestidos ridiculamente pequenos. Olham em busca de clientes. Na rua, mulheres de hijab recolhem plástico e cartão. Formigas que arrastam atrás de si sacos gigantescos que são simultaneamente coletores, berço, creche. Corpos mirrados que arrastam a vida. Vergados. Olhos de fome.
Os vencidos da cidade. As prostitutas. Os cães abandonados. Os mendigos. Os que vendem roupa cheia de nódoas, puída, mas briosamente passada a ferro. Os que a compram. Gente que escorre dos bairros miseráveis que se erguem nas colinas em torno do centro.
Nas avenidas, centenas de lojas de noivas. Vários pisos. Modelos de contos de fadas. À porta, uma mesa de plástico, três homens. Chá e amostras de tecido. Faz-se negócio. Ao fundo, a transação é outra. “Night clubs”, onde noivas felizes de outrora vendem um sonho perdido. A esperança, a crença numa vida feliz a dois, tão valorizada, tão presente nas montras sumptuosas. Imagens radiantes de mulheres princesas. Corpos dormentes de mulheres tristes.
Desloco-me para os arredores. Ao passar por um centro comercial, o motorista que me conduz enumera os nomes das lojas. Sem surpresa, as mesmas que encontramos em qualquer cidade europeia. Os olhos dele brilham. A voz, porém, muda:
– Muito barato para vocês. A Turquia é um paraíso para os europeus. É um inferno para os turcos.
É um homem simpático, de meia-idade. Tem boa aparência. Se tivesse de adivinhar, diria que vive bem. Mas a conversa continua e explica-me exatamente o que é o inferno de se ser turco na Turquia. A conversa fará eco na minha mente durante o resto da viagem. Faz ainda. Percebo agora a abundância de malas de viagem de contrafação que se vendem por todo o lado: nas boutiques, nos supermercados de esquina, nos bazares, nas sapatarias, nas farmácias. Percebo o enorme desejo de partir. A necessidade de ter as malas sempre à mão. De não perder a oportunidade.
Trânsito louco. Travagens ruidosas. Carros a cair aos pedaços. Viaturas de luxo. Motas. Carrinhas modernas, em que bancos de jardim garantem que cabe sempre mais um. Jovens de minissaia, tatuadas, cabelos coloridos, caminham com amigas que mostram apenas o rosto. Anúncios a clínicas. Estrangeiros e emigrantes com botox até à alma. Cabeças rapadas a exibir implantes capilares recentes.
E, no meio disto tudo, uma gente prestável. Afável. Que nos momentos mais inesperados saca de um frasco de perfume e se borrifa até onde os braços chegam. Enquanto nos atendem na receção de um hotel ou ao balcão de uma loja. Enquanto nos abrem a porta do táxi. A meio de uma conversa na rua. Os frascos aparecem e desaparecem num passe de mágica. Perfumam o corpo, a casa, o carro, os escritórios, as esplanadas… Sim, Izmir cheira a sobrevivência. Mas também cheira a perfume. A perfume, a gente boa… e a gatos.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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