Os últimos meses e dias, mais ainda do que a iminência das eleições para o Parlamento Europeu, obrigaram-nos a lembrar uma criatura quimérica concebida há um quarto de século, numa cimeira do Conselho Europeu: a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Proclamada solenemente logo em 2000, em Nice, veio, depois de adaptada, a ser tornada vinculativa, saberá Deus porquê, junto ao Atlântico, com as assinaturas de José Manuel Durão Barroso, então Presidente da Comissão Europeia, e José Sócrates, então Presidente do Conselho da União Europeia, no Tratado de Lisboa, em 12 de Dezembro de 2007.
Como tive ocasião de dizer pouco tempo depois, em Bragança, «de costas voltadas para as realidades e para os povos europeus, na última década, a Europa andou a brincar às Convenções, às Cartas dos Direitos Fundamentais e às Constituições»[1].
A verdade é que, passados 25 anos daquele dia 4 de Junho de 1999 em Colónia, a Europa dos 27 continuou a descurar o essencial, a começar pelo reforço do seu processo de democratização (prosseguindo como uma estrutura de poder político sem verdadeiros partidos políticos, sem um fórum público de formação da opinião, sem aperfeiçoamento dos mecanismos de prestação de contas ou da aproximação dos cidadãos aos decisores), a participar (através de alguns dos seus principais membros) em dois dos seis ou sete episódios mais trágicos do milénio até agora (a Guerra do Iraque e a destruição da Líbia) e a terminar no descaso relativamente às necessidades vitais em matéria de segurança e de defesa dos europeus, a ponto de se revelar incapaz de cumprir os compromissos assumidos com a Ucrânia em matéria de fornecimento de munições, após a invasão russa de Fevereiro de 2022.
1. Ora, na presente situação, embora esse pequeno pormenor seja geralmente omitido, tudo começou mais uma vez nos Estados Unidos (um pouco ao modo das Revoluções de há 250, 235 e 204 anos, respectivamente, nos Estados Unidos, na França e em Portugal, embora agora com inusitada aceleração do tempo de reacção): no dia 24 de Junho de 2022, uma sexta-feira, o Supremo Tribunal (no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization) decidiu reverter a jurisprudência que ele próprio firmara 50 anos antes, no célebre caso Roe v. Wade, que reconhecia à mulher (desde logo, contra o poder dos estados) o direito à interrupção voluntária da gravidez, com os três Juízes dissidentes a escreverem agora: «[d]iscordamos, com pesar – por este Tribunal, mas mais ainda, pelos muitos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma protecção constitucional fundamental»[2]. Havia efectivamente uma protecção constitucional da interrupção voluntária da gravidez desde 1973, mas ela não era dada por uma norma da Constituição, mas por uma sentença, que pretextava, no caso “mais difícil de todos”, interpretar a Constituição num sentido que nunca deixou de ser contestado e que não reunia as condições para ser considerada “fonte” de normatividade constitucional[3], estando por conseguinte sujeita ao inerente risco da reversibilidade, por uma decisão equivalente de sentido contrário, como veio a suceder[4].
2. Tendo sido este o detonador, foi com a habitual pompa que no Palácio de Versalhes, por proposta do Presidente da República, em 4 de Março deste ano, o Congresso francês fez inscrever no artigo 34.º da Constituição a seguinte disposição: La loi détermine les conditions dans lesquelles s’exerce la liberté garantie à la femme d’avoir recours à une interruption volontaire de grossesse. Deve, em justiça, dizer-se que a fórmula se adapta perfeitamente ao modelo francês das “liberdades administradas por lei” e que a nova garantia está sistematicamente bem colocada no Título V da Constituição de 1958, que se ocupa das Relações entre o Parlamento e o Governo. Tudo porque a Constituição francesa não dispõe de um catálogo, nem conhece sequer o conceito, de direitos fundamentais. E tudo isso numa Constituição que o actual Presidente francês se comprometeu a reformar logo no seu primeiro mandato, mas onde, tal como na generalidade das demais reformas, o insucesso foi total.
3. De Versalhes a Estrasburgo é um passo, pelo que o Parlamento Europeu fez questão de marcar igualmente a sua posição sobre o tema: no dia 11 de Abril, adoptou uma resolução (sem força vinculativa, pois tal decisão está nas mãos, não do Conselho, como foi noticiado, mas dos Povos europeus) propondo uma alteração ao artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que deveria explicitar: todas as pessoas têm o direito à autonomia sobre o seu corpo, o acesso gratuito, informado, pleno e universal à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, e a todos os serviços de saúde conexos, sem discriminação, incluindo no acesso ao aborto seguro e legal.
4. Ora, como da França a Lisboa o caminho sempre foi curto, sobretudo em matéria de importações, também a Assembleia da República se quis associar ao assunto, com um voto de saudação à decisão do Parlamento Europeu, apresentado pelo Bloco de Esquerda, logo no dia 15 de Abril[5].
Todavia, no caso português, quando menos (e de onde menos) se esperava, a esfinge voltou a dar um ar da sua graça, através do cabeça-de-lista da AD às eleições para o Parlamento Europeu, quando, na apresentação do respectivo programa, o candidato revelou o seguinte: «Simbolicamente, mas com vista a colocar em prática soluções que venham resolver esta crise, quero anunciar aqui que defenderemos a elevação do Direito à Habitação na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nós vamos mesmo universalizar este direito».
Sem pretender exagerar na apreciação jurídico-política da ideia, salvo no uso do advérbio inicial – que nestes contextos podemos perdoar –, vejo assomarem aí variadas dificuldades:
- A primeira é a de que o direito à habitação já está consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia;
- A segunda é a de que a formulação presente no artigo 34.º, n.º 3, da Carta (segundo o qual a União reconhece e respeita o direito a uma ajuda à habitação destinada a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito comunitário e as legislações e práticas nacionais) não só é contrária à ideia (do candidato) de universalização do direito, como é a mais condizente com a natureza do “princípio” nela enunciado, designadamente à luz das próprias “Anotações” anexas à Carta, mas também à luz da doutrina e da jurisprudência (constitucional, comunitária e internacional) mais consistentes;
- A terceira é a de que a realização do direito à habitação é uma competência dos Estados – como teve de ser lembrado ao anterior Governo português, há escassos meses, pela Comissão Europeia –, pouco sentido fazendo apostar, mesmo que simbolicamente, numa medida que não reentra nas atribuições da União Europeia;
- Como “princípio” que é, a referida garantia está sujeita a um regime muito distinto do regime aplicável aos “direitos e liberdades” previstos na Carta dos Direitos Fundamentais (artigo 52.º), não se podendo, no caso de um direito cujo conteúdo principal se traduz em prestações positivas, transformar a água em vinho; melhor seria o empenho no revigoramento da Carta Social Europeia, cujos direitos, quando comparados com os da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não passam de balões vazios, no conteúdo e na (ausência de) tutela;
- Por último, que o candidato não me leve a mal, mas é no mínimo ridículo que um país que, há 48 anos, inscreveu o direito à habitação como direito fundamental na sua Constituição e que (salvo quanto ao programa de erradicação das barracas) se esqueceu desse direito durante mais de 40 anos (bastando para o efeito consultar os sucessivos Orçamentos do Estado), sinta que tem alguma autoridade para reclamar o que não conseguiu realizar na Constituição da sua terra, com o seu “direito fundamental de papel”.
Em resumo: embora quanto à Grécia tenham sido povos, tradições, deuses e poetas a decidi-lo e uma vez que ela já nos legou Édipo, a Europa precisa menos da esfinge às suas portas do que Tebas dela precisava[6].
José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
[1] José Melo Alexandrino, Contexto e sentido da reforma do poder local, 2011 (disponível aqui, p. 6), agora in Uma década de reformas do Poder Local?, Lisboa, 2018, p. 21.
[2] Não é este o lugar para analisar ou discutir o caso. Certo é que as coisas não ficaram por aqui e, nestes dois anos, tudo já se passou nos Estados Unidos: a repristinação de leis do século XIX, que proibiam totalmente o aborto; a revogação dessa repristinação; a aprovação de leis restritivas da prática do aborto numa série de estados (para um conspecto, um ano depois, ver aqui), com e sem subsequentes referendos constitucionais a favor da introdução do direito ao aborto nas Constituições desses estados mais conservadores (assim tendo sido decidido, em pelo menos cinco deles); o efeito boomerang que a decisão do Supremo Tribunal veio a ter junto da campanha de Donald Trump (obrigando-o à moderação do discurso relativamente aos direitos da autodeterminação da mulher); além de toda a série de referendos, de discussões e de deliberações que prosseguem a sua marcha.
Por outro lado, ao contrário de uma ideia, por vezes, difundida em Portugal, segundo a qual “os direitos fundamentais não se referendam”, estes dois anos norte-americanos provam justamente o contrário, como já tinham de resto provado, entre muitos outros, os referendos ao aborto realizados em Portugal ou o referendo à eutanásia realizado na Nova Zelândia em 2020. Mais. Se, num regime democrático, a Constituição deve por regra ser referendada (o que ainda não sucedeu na Constituição de 1976) e se é na Constituição que estão consagrados os direitos fundamentais, a lógica só pode ser a inversa: tal como a Constituição, “os direitos fundamentais são e devem ser igualmente referendáveis”.
[3] Sobre estas condições, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, pp. 246-247.
[4] Curioso é igualmente que decisões semelhantes do mesmo Supremo Tribunal, entretanto tomadas, por motivos da mesma ordem, não tenham sido apreendidas (como demonstrativas da autonomia do jurídico sobre o político) deste lado do Atlântico, como sucedeu com a decisão unânime Trump v Anderson, que não reconheceu aos estados o poder de excluir um candidato à eleição presidencial, com base no disposto na secção 3.ª do 14.º Aditamento à Constituição.
[5] Um voto que acabaria rejeitado pelo PSD, Chega e CDS, já em Maio de 2024.
[6] Quanto à justificação desta tese, como já tive oportunidade de afirmar, nem os direitos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia são direitos fundamentais, nem eles perturbam os direitos fundamentais da Constituição e que, além disso, «se deveria ter atentado melhor na experiência de verdadeiras federações (como os Estados Unidos ou a Austrália), para verificar como uma vinculação prematura dos Estados membros a um catálogo uniforme de direitos fundamentais não faça sentido» (cfr. Elementos de Direito Público Lusófono, 2.ª ed., Lisboa, 2024, p. 121); para a demonstração da ideia à luz da comparação referida, José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, cit., vol. I, pp. 213 ss.
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