Eis o resultado de uma investigação do PÁGINA UM que foi ‘até ao osso’, para servir de exemplo, sobre um caso que não será único no pouco escrutinado mundo autárquico. Perante a recusa da Câmara Municipal de Cascais em dar esclarecimentos sobre um estranho contrato de fornecimento de refeições a refugiados ucranianos – quando os seus centros de acolhimento já estariam ‘às moscas’ –, o PÁGINA UM recorreu ao Tribunal Administrativo, que acabou por obrigar a autarquia liderada pelo social-demicrata Carlos Carreiras a libertar as provas do cumprimento de um contrato de quase 233 mil euros. E as provas são.. uma ‘planilha de Excel’ (ou folha de cálculo) e um conjunto de supostas requisições manuscrias pela mesma ignota pessoa, sem qualquer timbre nem assinatura de um qualquer responsável autárquico, cheias de discrepâncias de números e sinais de manipulação. Estas ‘provas’ não são válidas, garante Paulo de Morais, líder da Frente Cívica e antigo vice-presidente da autarquia do Porto, que compara esta forma de contabilidade da Câmara de Cascais à de “uma tasca no meio do monte”.
Adensam-se as suspeitas sobre o efectivo fornecimento de refeições destinadas aos centros de refugiados ucranianos através de um contrato celebrado pela Câmara de Cascais e a empresa ICA – Indústria e Comércio Alimentar, que acabou por custar 232.799,69 euros ao erário público.
Depois de uma sentença da juíza Mafalda Andrade, do Tribunal Fiscal e Administrativo de Sintra, determinar a obrigatoriedade do município liderado pelo social-democrata Carlos Carreira – que sempre recusara ao PÁGINA UM o acesso aos documentos -, o município acabou por enviar uma simples impressão de uma ‘planilha de Excel‘ – com os cálculos dos itens pagos no decurso dos dias de contrato – e um rol de papéis manuscritas pela mesma pessoa, mas sem qualquer assinatura nem timbre de qualquer serviço ou departamento municipal.
Em causa, recorde-se, estão os moldes de execução de um contrato por ajuste directo no valor de 250 mil euros – o terceiro em dois anos para o mesmo fim – que a autarquia de Cascais assinou com a ICA, uma empresa de refeições, em 26 de Setembro do ano passado, para fornecimento de refeições aos refugiados ucranianos durante um prazo previsto de 91 dias, ou seja, até final de 2023. Ou então “até se esgotar o valor contratual máximo”, de acordo com o contrato, que com IVA seria de 307.500 euros.
A necessidade do fornecimento de refeições para cidadãos ucranianos nessa altura era já mais do que duvidosa. Numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado, Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”.
O PÁGINA UM também teve conhecimento de que, no último trimestre de 2023 – ou seja, mais de ano e meio após a chegada de refugiados provenientes da Ucrânia por causa da invasão russa à região do Donbass -, era diminuto o número de utentes dos dois centros de acolhimento do município de Cascais.
Para adensar a estranheza neste processo, acresceu a celeridade com que foi passada a factura pela ICA pelos alegados serviços de fornecimento de alimentação e também o rápido pagamento pelos serviços da Câmara Municipal de Cascais, ainda no decurso do prazo inicialmente previsto da execução do contrato. Com efeito. apenas dois dias depois da assinatura do contrato, ou seja, no passado dia 28 de Setembro, a ICA passou uma factura no valor total de 232.799,69 euros, desconhecendo-se, porque não foram apresentados quaisquer documentos oficiais, as razões para este novo valor. Nem tão-pouco se sabe a razão para o contrato ter decorrido durante 41 dias – e não 91 dias -, pois o contrato estabelecia um ‘tecto máximo’ de 307.500 euros. Além disso, no caderno de encargos nem sequer eram definidos os preços por unidade de refeição, ou seja, não se sabia sequer a quantidade total de pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares.
A factura da ICA, aceite pelos serviços municipais, possui também outras particularidades. Primeiro, porque indica apenas um unidade (1 UN) para “Serviço Refeição – Almoços Refugiados” – onde surge o tal valor de 232.799,69 euros com IVA, sendo que o valor antes deste imposto era de 189.268,75 euros -, quando foram servidos pequenos-almoços, almoços, lanches e jantares, em números distintos ao longo dos dias e em cada refeição. Segunda particularidade da factura: a ICA conseguiu adivinhar em 28 de Setembro do ano passado, com um ‘erro’ de apenas 0,71 cêntimos, o valor total das refeições que supostamente acabou por fornecer até ao dia 30 de Outubro, uma segunda-feira, dando assim por terminado ao fim de 41 dias um contrato que deveria durar mais 50 dias.
E não se diga que essa previsão – ou ‘adivinhação’ – era fácil de fazer, porque, de acordo com a tal planilha de Excel’, fornecida pela Câmara Municipal de Cascais após a intervenção do Tribunal Administrativo, constata-se que existem variações entre refeições ao longo do mesmo dia e variações ao longo dos dias. Por exemplo, foram fornecidos pequenos almoços entre 270 e 315 utentes ao longo do período. Já almoços tiveram ‘saídas’ entre os 285 e os 300 utentes, com a particularidade de, com excepção de dois dias, serem sempre em unidade redondas terminadas em zero. Quanto aos lanches e aos jantares, foram servidos, em cada caso, refeições a entre 270 e 320 utentes. Além disso, ainda se contabilizaram diariamente o formeciumento de mais de seis centenas de unidades de água, além de descartáveis e ainda despesas com pessoal de cozinha aos fins-de-semana.
Sendo certo que os preços unitários das refeições eram bastante distintos – pequeno-almoço (1,95 por unidade sem IVA), lanche (2,25 euros por unidade), almoço e jantar (4,55 euros por unidade, em ambas as refeições), água (40 cêntimos por unidade), além dos descartáveis (55 cêntimos por unidade) -, e em função das quantidades fornecidas, certo é que se esgotou mintante da factura em 30 de Outubro. Ainda terá dado, miraculosamente para as refeições habituais, mas não deu sequer para o dia seguinte. Acabou ao 41º dia aquilo que se esperaria durar 91 dias.
Mas aí então coloca-se uma questão humanitária: se, com efeito, terá havido 300 pessoas a comer o pequeno almoço ainda fornecido pela ICA no dia 30 de Outubro do ano passado – e pago pela autarquia de Cascais – e ainda 290 pessoas a almoçarem nas mesmas circunatâncias, e mais 282 pessoas a lancharem, e mais 290 a jantarem, e mais 630 águas a serem fornecidas e 580 descartáveis a serem ‘consumidos’, que sucedeu no dia seguinte, no 31 de Outubro? E nos dias seguintes, tendo em conta que o contrato previa uma duração de 91 dias? As cerca de três centenas de ucranianos que supostamente existiam nos centros, e que foram alimentados entre 20 de Setembro e 30 de Outubro, passaram a nada comer? Havia mesmo cerca de três centenas de ucranianos nessa altura? Alguma prova fotográfica? Nada mais foi enviado pela autarquia em cumprimento da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Além disto, os documentos enviados pela autarquia de Cascais – repita-se, sem estarem sequerem papel timbrado nem terem assinaturas – sofrem de ‘desconformidades’ quando se confrontam os números de refeições que surgem na ‘planilha do Excel’ e os supostos registos das requisições. Por exemplo, logo no primeiro dia de fornecimento de refeições são indicados 300 almoços na ‘planilha’, mas na suposta requisição surgem 290.
Por ser análise fastidiosa, o PÁGINA UM somente analisou em detalhe os 10 primeiros dias de fornecimento, constando uma dezena de discrepâncias, que envolvem mais de uma centena de refeições, entre os números que constam na planilha e nas requisições. Mais do que o valor em causa, estas discrepâncias suscitam legístimas suspeitas de uma manipulação malfeita.
Para uma análise independente aos documentos do contratos entre a autarquia de Cascais e a ICA, o PÁGINA UM enviou-os a Paulo de Morais, docente universitário e presidente da Frente Cívica, que ocupou o cargo de vice-presidente da Câmara Municipal do Porto entre 2002 e 2006. Manifestando a sua estupefacção pela ausência de assinaturas e registos formais, Paulo de Morais diz ser “patético que os serviços jurídicos da autarquia de Cascais apresentem este tipo de provas sobre um contrato de valor tão elevado”.
O líder da Frente Cívica deefnde que, em circunstâncias especiais – que já não se aplicariam, no último trimestre do ano passado, a refugiados ucranianos que tinham chgado nos primeiros meses de 2022 – “até seria aceitável que houvesse registos mais informais em momentos de crise ou urgência, mas que fossem depois formalizados em documentos oficiais. A Câmara de Cascais não é uma tasca no meio do monte”, diz. Salientando que este caso suscita “legítimas suspeitas” por estar assente em documentos que não têm qualquer validade legal, Paulo de Morais defende que, atendendo ter este modus operandi sido detectado pelo PÁGINA UM apenas por intervenção do Tribunal Administrativo, as autarquias devem mostar disponibilidade para “serem escrutinadas”.
O PÁGINA UM vai remeter todos os elementos deste contrato entre a autarquia de Cascais e a ICA – possível com uma intimação no Tribunal Administrativo, bem sucedida através do FUNDO JURÍDICO apoiado pelos leitores – ao Tribunal de Contas, uma vez que, por norma, esta entidade não faz comentários sobre casos que não abordou formalmente. Ou seja, só se pronuncia em consequência de actos de fiscalização ordinária ou após tomar conhecimento de suspeitas de irregularidades ou ilegalidades.
Note-se que, no âmbito desta intimação, o PÁGINA UM também pedira elementos sobre um contrato entre a Câmara de Cascais e o Modelo Continente também para o fornecimento de alimentos e de bens de higiene para os centros de refugiados, cujos preços no caderno de encargos estavam hiperinflacionados, ou seja, o contrato previa a compra de produtos no valor de 180 mil euros mas que custavam, de facto, apenas 14 mil. Neste caso, e na sequência de uma notícia do PÁGINA UM em Outubro do ano passado, a autarquia admitiu no Tribunal Administrativo de Sintra que afinal nunca houve qualquer compra.
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