Título
Uma Florença Para Caravaggio
Autor
DIOMIRA MARIA
Editora
Libertinagem - Brasil (Agosto de 2023)
Cotação
17/20
Recensão
Uma Florença Para Caravaggio é o primeiro romance de Diomira Maria. Doutora em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é Mestre em Turismo pela Universidad de Alicante, e Professora associada do Departamento de Geografia da UFMG, no Curso de Turismo, onde exerceu o cargo de Diretora Científico-Cultural do Espaço do Conhecimento UFMG, entre 2018 e 2022.
Apaixonada pela criação inovadora e pela estética renascentista, principalmente no que à pintura concerne, Diomira Maria brinda-nos com um romance que se desenrola no século XVI, tendo como epicentro Florença. São protagonistas da trama narrativa o pintor Michelangelo de Caravaggio – denominado Miguel - e Maria de Médici, e o narrador vai exibindo cenários que reenviam para a arte, em geral, e a pintura, em particular, numa Itália pregnante de talentosos artistas que representaram e exaltaram de forma única a conceção do Homem, da vida e da natureza. A excitação da cultura, da genialidade, do amor ao belo – ou Kalos preceito herdado dos gregos antigos –, e o cultivo dos studia humanitatis constituem algumas das temáticas ou dos estereótipos correspondentes à época evocada, como fazem notar Enrique Montero Cartelle e Maria Cruz Ingelmo, numa obra dedicada ao romance histórico contemporâneo intitulada De Virgilio a Umberto Eco (1994). O movimento renascentista ganha, assim, uma profunda expressão com as personagens que Diomira Maria põe em cena e que sustentam uma dimensão cultural e artística impressionantes, quer através dos diálogos, quer pela descrição da arte produzida.
Contrariamente ao propugnado pelos teóricos literários e os romancistas do século XIX, que se evadem para tempos remotos, o romance histórico coevo privilegia a dimensão espacial. De entre as teorias advogadas, destacamos as defendidas por uma das mais conceituadas estudiosas do romance contemporâneo, Linda Hutcheon (1989). Os preceitos por si defendidos acautelam o leitor da pretensa legitimidade da História, sublinhando que o romance histórico atual, que designa metaficção historiográfica, não aspira a contar a verdade, nem a estabelecer um caminho para aí chegar. Porque a verdade se mostra plurívoca e, não raro, heterodoxa.
Linda Hutcheon expõe estratégias narrativas que, pela ficção, desconstroem ou subvertem a verdade, pelos mecanismos da ironia e da paródia. Ao refletir sobre o conhecimento histórico, questiona-se sobre a forma e a possibilidade de conhecimento efetivo do passado, que sempre nos chega textualizado, sob um determinado prisma ou uma específica visão. Na senda da crítica referida, Diane Elam (1992) equaciona a receção epistemológica, problematizando a forma como o leitor coevo apreende o conhecimento histórico, tendo como base o romance hodierno.
Estão realizados os prolegómenos à narrativa ficcional de cunho histórico. Vamos, então, debruçar-nos sobre o romance de Diomira Maria. Surpreendentemente, a obra suscita uma dupla abordagem ao leitor mais atento: por um lado, a conexão que mescla Literatura e História, ou os factos vulgarmente tidos e encarados como históricos; por outro, a relação paradigmática atualmente evidenciada pela ligação Turismo e Literatura. Especialistas nesta área, Sílvia Quinteiro e Rita Baleiro (2014) aludem ao facto de, durante o Renascimento, muitos aristocratas europeus visitarem países culturalmente reconhecidos, como a Itália, para conhecer in loco os espaços íntimos ou sociais outrora frequentados pelos seus autores de eleição: lugares de nascimento, habitações ou sepulturas que os albergam. A curiosidade humana revela-se uma particularidade intemporal. Não será, por conseguinte, estranho que os leitores hodiernos realizem os mesmos percursos. Disso são exemplo as Rotas Literárias, verdadeiras romarias aos espaços frequentados pelos autores ou, inclusive, pelas personagens. Aludimos, obviamente, à rota quixotesca, o espantoso itinerário edificado tendo como base os espaços percorridos pelo Cavaleiro Andante e por seu fiel escudeiro, Sancho Pança.
A abertura do texto em análise reenvia para o ano de 1600, em Lyon, evidenciando o momento que precede a união concertada entre os Médici e o Rei Henrique de França. –A narração expõe, minuciosamente, os mais ínfimos detalhes de preparação da nubente – como a escolha das jóias – o que se afigura como reflexo de uma qualquer noiva, sendo futura rainha ou não. Mas a jovem Maria é uma noiva invulgar. Renascentista. E, mais espantosamente, enamorada.
Depois, numa analepse que remonta ao ano de 1597, evocando memórias, o narrador exibe o envolvimento amoroso de Maria de Médici e o pintor milanês Michelangelo Caravaggio. O romance em foco evidencia o espaço frequentado e experienciado por estas personagens – porque as emoções se associam aos lugares – e debruça-se, de forma particular, sobre a figuração artística, numa relação inter-artes. Este impressionante diálogo é apreendido e (a)percebido, quer pelas personagens, quer pelo leitor e acrescenta valor turístico aos lugares mencionados, podendo originar uma qualquer prática turística. Nessa perspetiva, não será despiciendo referir que as artes representadas na ficção em estudo – pintura, arquitetura, doçaria ou literatura – surgem como elemento provedor e gerador de conexões diversas com diferentes códigos semióticos e elementos da narrativa (Ibáñez de Ehrlich, 1998).
Florença surge, também, como personagem deste romance e reenvia o leitor para o seu próprio destino: o seu passado e a sua identidade. O que outrora existiu e o que pode ser visitado, não apenas pela leitura, num sucinto mapeamento da sua escrita ficcional, mas, também, em percursos turísticos, que intersecionam a ficção e vida de Michelangelo Caravaggio. Florença, a cidade dos Médici, corresponde a um determinado espaço, requintado e singular, onde desfilam as mais altas esferas culturais e os artistas da renascença italiana. Fazendo jus ao mecenato, prática muito frequente à época, a obra retrata o período em que o pintor Caravaggio, exilado por um breve período, é protegido do Cardeal del Monte, colecionador de arte, e recebido pela família Médici, no Palazzo Pitti.
No universo (re)criado por Diomira Maria, as artes desnudam-se numa dupla instância: por um lado, deparamos com a bordagem das artes realizada no interior da própria arte literária (sistema semiótico literário), no diálogo efetuado pelas personagens; por outro, nas artes que aos olhos do leitor se apresentam, no resultado materialmente/ objetivamente concretizado pelos artistas, passível de ser visitado ou observado, nos dias que correm. Num périplo realizado por Maria de Médici e Caravaggio – o par enamorado que ocupa grande parte da tessitura narrativa –, o espaço vai-se mostrando paulatinamente ao leitor, revelando uma dupla paisagem: a humana e a natural. E é, sobretudo, apresentado sob a égide da visão, ainda que todas as outras referências sensoriais sobressaiam, não raro mescladas, em sinestesias.
Na esteira do idealismo conceptual renascentista (italiano) propugnado por Jacob Burckhardt na obra Die Kultur der Renaissance in Italien (1941 [1860]), é possível realizar um trajeto dos espaços focalizados na obra, que podem traduzir uma literatura de turismo: a famosa e singular ponte di Vechio; o campanário de Giotto; a imponente e belíssima catedral de Florença; o baptistério; as ruas; os palácios mais imponentes da cidade; os conventos; as igrejas; as galerias onde a arte se refugia: “Do outro lado do rio, uma torre solitária, alta e esbelta como corpo de mulher, chama a sua atenção. À sua frente, reconhece a cúpula, símbolo da cidade, acompanhada do campanário.” (2013: 20).
Ainda que aborde um universo onde os homens se destacam, esta obra ilumina a cultura do ser feminino. Não será anódino referir que, entre outras abordagens reflexivas, como a grande erudição de Maria, o romance em foco se debruça, ainda, sobre a problemática da arte no feminino – ou a relevância da educação no feminino – e faz embrenhar o leitor numa arte duplamente arquitetada: a tecida por palavras e a (re)criada nos quadros dos artistas. Giovanna, a bela artista – e freira – de olhos verdes, enfeitiçou António de Médici, irmão de Maria. Irmã Nelli, filha de comerciantes de Florença, foi deixada pela família aos cuidados das freiras num convento, 14 anos. Desde cedo demonstrara habilidade para a pintura: “Era observadora, gostava de pintar imagens, fazia réplicas, cópias de pinturas de outros artistas. “ (2023: 82). As palavras proferidas pelo narrador esclarecem-nos sobre a vida particular das artistas: “[A]s mulheres das famílias importantes de Florença pintavam como parte de sua educação, mas, se quisessem ser comissionadas pelas obras, a alternativa era ir para um convento.” (87).
Muito haveria para falar sobre o romance. Mas a História e as histórias apenas ganham sentido e relevância quando lidas. Quando apreendidas pelo leitor. O que mais poderemos dizer? Uma Florença para Caravaggio é um livro que gira em torno da arte. Melhor: apropriando-me das palavras de Annabela Rita, na obra Do Que Não Existe (2018), o romance de Diomira Maria é um livro que insiste numa relação inter-artes, colocando-as em fervoroso diálogo: a literatura, a arquitetura e a pintura: Maria “[S]ente novamente o aroma dos pigmentos, das telas recém-pintadas, do ateliê improvisado em um dos quartos de sua casa.” (2023: 14).
Não obstante tudo o que foi dito, este romance é – sobretudo – um livro sobre emoções. Sobre afetos. Aqueles recônditos afetos que nos obrigam a (re)pensar a vida. E também sobre os caminhos que alteram significativamente o nosso percurso. Mas que nem sempre logramos escolher. Porque o Destino, esse caprichoso Senhor, há muito inscreveu nos cartapácios da existência humana a sua própria vontade.