Crónica de um infiltrado

Juba de luz a cruzar os céus

lion lying on brown grass field during sunset

por Carlos Enes // Maio 19, 2024


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


Uma juba ciclópica incandescente atravessou o céu e pintou de branco e verde a foz do rio Douro, campanários, talhas e pomares do Minho ao Algarve, peixes, dunas e amantes nas praias de Portugal.  Cigarras, humanos e ovelhas entoaram em coro:

– Tão resplandecente, não foi pássaro, super-homem ou avião. Assim brilhante, claro que foi o Sporting campeão!

Antes do jogo começar, ao meu lado na bancada central, o telemóvel mais frenético do estádio é o do senhor director do PÁGINA UM. Ele aponta para todo o lado, compondo vídeos e fotografias aos ziguezagues, imolando as fintas rápidas e súbitas paragens do Trincão. Ao ver Pedro Almeida Vieira neste torpor místico e alucinado, compreendo como se sentiram Eduardo Gageiro, na manhã do 25 de Abril, e o astronauta Neil Armstrong de câmara na mão e pés na lua.

Durante a semana, deu ao Inácio para ocupar o tempo a desafiar o Pote:

– Aposto um jantar no Solar dos Presuntos em como não és capaz de um centro de jeito de fora da área para eu marcar de cabeça.

E o orgulhoso transmontano, ainda antes de se fintar a si próprio tão bem fintado que não pôde guardar-se de pé e se esparramou no relvado a festejar ao comprido, respondeu crente e arrogante uma torga venenosa:

Não só te acerto na testa com tanta força que até te ponho a risca ao meio, como ainda te pago umas férias nas termas de Vidago se desta vez imitares o Senhor Capitão Coates para golo, em lugar de cabeceares para o ar com esse bestunto de vento, esbanjando a minha arte para a bancada.

Aos quatro minutos, os dois armaram a maravilhosa e profética jogada, mas a bola depois de fazer a risca no Gonçalo estremeceu o poste com a força insuportável de um aerólito. O homónimo guarda-redes do Chaves agradeceu o ansiolítico receitado pelo médico da equipa para ele se aguentar à estreia, na última jornada, contra o melhor ataque do campeonato.  Os dois atletas leoninos, que não estavam medicados para tão insólito desfecho, amuaram para o resto do jogo. Já o falso defesa e superlativo extremo Nuno Santos ficou a gozar como um perdido do outro lado do campo, sem nunca se aproximar demais para não cair em fora de jogo.

– Nem todos nasceram para ser lindos e loiros, nem para assombrar guarda-redes com jogadas à Puskás por dá lá aquela palha.

Vaidoso por trajar de azul celeste numa procissão de craques, excitado pela romaria de cachecóis, foguetes e marchas de “Viva o Sporting!”, o árbitro Manuel Oliveira agarrou-se ao microfone e deixou dito e luzido quem era o Tony Carreira da festa.

O jogador número 13 não comete qualquer falta, por isso o penalty fica para daqui a bocado. Peço aos atletas do Desportivo de Chaves para entrarem na festa alçando braços em pose não natural. Prometo visionar tais gestos em conformidade com as leis da FIFA e da gravidade, e apitar resignado.

Estes enervantes acontecimentos agravaram o torpor alucinado e místico que se apoderou do Pedro quando saiu do metro do Campo Grande e deu de caras com o estádio a cintilar de alegria. Sem sequer disfarçar um sorriso de retaliação e felicidade, desatou a apagar os ficheiros laboriosamente amealhados nas 17 jornadas desperdiçadas na Varanda da Luz, abrindo espaço para cada segundo, bandeira e foguete da festa do Sporting Clube de Portugal.

Levou tão a peito a comparação com a barba, o penteado e as fintas do Trincão da minha primeira crónica no seu jornal, que hoje se vestiu de preto tal e qual o seu modelo apareceu na entrevista ao jornal A Bola, periódico centenário que neste campeonato descobriu, à custa de muitas piadas e memes, quem é o rei agora, da selva, dos céus e dos relvados.

O jogador número 4 cometeu falta no início da jogada.

O Tony dos árbitros persiste em desafinar aos nossos ouvidos, sem se atrever a pronunciar o nome do Senhor Capitão Coates.Que desfeita! Antes fechar os olhos e suspender as regras do que anular um golo limpinho e pleno de força, bola corrida e tão bem rematada.

Felizmente, ao intervalo, o dr. Varandas mandou entregar ao artista uma camisola do Gyökeres autografada por Inês, a bela dele namorada. Esse precioso brinde regulamentar, simbólico da luminar união nórdico-lusitana, ofereceu a adeptos e jogadores uma segunda parte sem cantigas de Oliveira da Serra, ou Monte da Arrábida, e ao Pedro Almeida Vieira ocasião para expressar um inesperado desejo estatístico.

– Já só faltam cinco golos para o Sporting chegar aos 100 no campeonato.

Em plena bancada, o meu fiel amigo e ainda sócio do Benfica, descobre maravilhado que o Sporting é o detentor, desde 1947, do recorde de golos marcados num só campeonato: um, dois, três, 123, cento-e-vinte-e-três, 43 dos quais da autoria de Fernando Baptista de Seixas de Vasconcelos Peyroteo, provavelmente o maior avançado português de todos os tempos.

Tanto invocámos Peyroteo e os outros violinos, Yazalde, Manuel Fernandes, Jordão e Beto Acosta, que se materializou mesmo à nossa frente uma jogada que só se descreve com o movimento das estrelas. O melhor jogador em campo, Luís Carlos Novo Neto, arrancou um passe de parábola supersónica, a abrir caminho ao cometa nocturno, Nuno Santos entrou em órbita sobre a linha de fundo, e Paulinho respondeu com a precisão e a simetria de um satélite. De pé esquerdo para pé esquerdo se faz golo à velocidade da luz.

 – Se o Paulinho mostra os dentes, eles até caem, até caem…

O director do PÁGINA UM, confesso benfiquista, claramente ‘sequestrado’ pelo famigerado ‘Núcleo da Garagem’ no final do jogo entre Sporting e Desportivo de Chaves.

Não caiu nenhum defesa, nem teve tempo para isso, mas caiu o estádio todo a celebrar o mais admirável resultado da época. Contra todas as previsões parvas e catastrofistas, Midas Gyökeres fez explodir o talento imenso do antes solitário e sacrificado ponta-de-lança da equipa.

Manuel Oliveira acabou o jogo mais cedo para ir com a camisola autografada meter inveja aos amigos da Cervejaria Europa, de Gondomar. A taça atraiu ao relvado bandos de crianças e retratistas. E nós fomos comemorar para a garagem do estádio, onde assámos uma cacholeira de Alpalhão e duas alheiras de Chaves com fogo de pirotecnia.


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