Recensão: Caminhar, uma filosofia

Da monotonia à liberdade

por Ana Luísa Pereira // Maio 23, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Caminhar, uma filosofia

Autor

FRÉDÉRIC GROS (tradução: Inês Fraga)

Editora (Edição)

Antígona (Janeiro de 2024)

Cotação

17/20

Recensão

Nascido em 1965, Frédéric Gros é professor de Filosofia na Universidade de Paris-XII e no Instituto de Estudos Políticos (Sciences-Po) de Paris, sendo também conhecido por ser editor das últimas palestras que Foucault proferiu no Collège de France. Trabalhou extensivamente sobre a História da Psiquiatria (Création et folie, PUF, 1998), a filosofia da punição (Et ce sera justice, Odile Jacob, 2001), o pensamento ocidental sobre a guerra (États de violence. Essai sur la fin de la guerre, Gallimard, 2006) e a noção de segurança (Le principe sécurité, Gallimard, 2012).

Caminhar, uma filosofia é um seu original de 2009, tendo sido recentemente traduzido para português e publicado pela Antígona. Frédéric Gros começa logo com uma provocação ao afirmar que “Caminhar não é um desporto (…) não há resultados, não há números”, por mais que se queira associar o acto de caminhar ao consumo, caminhar é, tão-somente, “pôr um pé diante do outro”, “uma brincadeira de crianças”, “um só desempenho conta: a intensidade do céu, a magnificência das paisagens” (pp. 7-8).

Portanto, o leitor fica, de imediato, esclarecido quanto ao que o livro não é. Não é um manual de caminhada, não é um livro de auto-ajuda sobre os benefícios da caminhada, não é um roteiro com os melhores locais para empreender caminhadas, ainda que seja instrutivo em relação à origem do sucesso dos Caminhos de Santiago, num dos cerca de 30 capítulos, “Peregrinação”.

É, sim, um convite à contemplação e à lentidão, numa espécie de transgressão aos ditames do quotidiano citadino. Por um lado, por se realizar “lá fora, ao ‘ar livre’”; por outro, somente “a aproximação lenta das paisagens” as torna familiares. “Quando caminhamos, a presença instala-se (…), o mundo persiste no corpo” (pp. 9-15).

Nesta presença, que quase implica uma ausência de nós, há espaço para reflectir, para escutar, para escrever, para ser, para a liberdade, para fugir, para viver e morrer, também. Ou, tão-só, para nos cansarmos – para sentir o cansaço que liberta, tanto mais que a caminhada é, provavelmente, a mais monótona das actividades humanas.

Em oposição à apologia da velocidade e da pressa contemporâneas, só a repetição monótona, numa cadência constante de uma longa caminhada, permite que experienciemos de forma vívida e intensa cada passo, cada instante, cada metro do caminho.

Entre este convite à lentidão e à procura do cansaço são muitas as histórias de escritores, filósofos, artistas e outras personalidades com que Frédéric Gros nos deleita.

Começa com “A paixão pela fuga” de Arthur Rimbaud, “um viandante, nada mais” que também caminhava para “fugir da ignóbil estupidez dos sentados”.

Vamos, a capa, o chapéu, as mãos nos bolsos, e partamos!

Para a frente é o caminho.

Vamos!” (p. 25).

Vamos, mas devagar, um pé depois do outro. Página a página para, lentamente, absorver o mundo que se impregna no caminhante, sozinho, de preferência. Como Nietzsche, Thoureau e Rousseau.

“Walden, ou a vida nos bosques” de Henry David Thoreau é uma das grandes referências deste Caminhar, cuja época é fortemente marcada pelo nascimento do capitalismo. O autor norte-americano pressentia que o, então, emergente capitalismo seria um perigo para a Natureza. Propunha, por isso, uma economia que se baseasse em dar um preço a uma coisa em função do tempo de vida pura implicado. A apologia de uma vida simples, tão simples quanto caminhar.

Para Nietzsche, caminhando oito horas por dia pelas montanhas, esta foi a condição da sua obra, defendendo que o pensamento “nasce de um movimento, de um impulso” (p. 105).

Com Gandhi, a caminhada fez-se luta política em desobediência à ocupação britânica. A “Marcha do sal” foi concebida como uma epopeia coletiva, contando com a disciplina e sacrifício de todos quantos a integraram. “Algo de orgulhoso permanece na caminhada: estamos de pé. A humildade manifesta a nossa dignidade” (p. 158). 

As caminhadas urbanas também são invocadas, por intermédio de Walter Benjamin que, socorrendo-se de Baudelaire, deslizou, qual fláneur, por entre a multidão, mostrando como a cidade se fez paisagem. Também Kant tinha a sua caminhada diária, numa disciplina que o libertava, numa repetição obstinada que lhe dava a oportunidade de estabelecer mais um raciocínio estético para a sua ética.

A caminhada pode, então, ser entendida como uma atitude filosófica, desde os peripatéticos na Antiguidade até à atualidade, como é o caso do autor, Frédéric Gros, que caminha para se encontrar, para se perder e para se cansar.

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