RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Dois portugueses nas prisões tailandesas

a black and white photo of barbed wire

minuto/s restantes


No passado mês de Março, dois portugueses foram detidos na Indonésia por tráfico de droga.

Mas, em 1982, dois outros jovens lusos foram condenados a uma pesada pena de prisão na Tailândia, um dos piores lugares do mundo para se ficar detido.

Nesta reportagem publicada em 1983 na Revista ABC, o jornalista Rui Araújo segue os passos de “Márcia” e “Luís” e relata como o destino dos dois jovens se revelou sombrio e sem esperança, entre os muros de duras prisões.


Nesta edição assume particular relevo a reportagem realizada por Rui Araújo, em que se conta a história dramática de dois portugueses, presos desde Maio do ano passado em prisões tailandesas, por tráfico de heroína.

Um trabalho em que, mais do que os nomes, pretendemos levantar a questão da falta de um acordo de repatriação entre Portugal e a Tailândia — e assinalar o destino a que estão votados dois elos de uma cadeia mais vasta.

António Mega Ferreira – Director da revista ABC

Fevereiro de 1983


Márcia, portuguesa, 24 anos: mais 24 anos à vista numa prisão tailandesa

Em 7 de Maio de 1982, dois jovens portugueses eram detidos no aeroporto internacional de Banguecoque. Na bagagem, um quilo de heroína. 

ABC conta como vive, na prisão de Bangkhen, Márcia, nome suposto de uma portuguesa identificada pela nossa reportagem.

Capa da Revista ABC de Fevereiro de 1983 com destaque da reportagem sobre os dois portugueses detidos nas prisões tailandesas. (Foto: D.R.)

É curioso. Nunca pensara poder suar tanto. Do outro lado,  eles sabiam. Mas davam-lhe mais uns minutos. Estavam só à espera que ele escrevesse o nome na ficha de embarque. Mas é claro que sabiam. Um policiamento paranoico, absurdo. A liberdade estava a escassas centenas de metros. Depois da inspecção das bagagens. Mas aqui, no hall, começara o pesadelo. Porque eles sabiam. «A viagem até ao fim do inferno». A morte, talvez…

Os dedos tremiam. Olhou em redor. E acabou por quebrar a regra: dirigiu-se a ela. Pediu-lhe uma caneta. Em português. Não valia a pena esconder. Eles sabiam. Gritou o nome dela. E transpirava cada vez mais. E no momento seguinte já não havia nada a fazer: um «speak english?» anasalado fê-lo sobressaltar. «Hey, you too, stay here, understand?» Nesse instante, os potentes altifalantes transmitiram a última chamada para o voo Banguecoque – Bruxelas. Dia: 7 de Maio de 1982.

As malas —  dele e dela — foram abertas. Cada um transportava meio quilo de heroína pura dentro de dois livros. A ideia não era má. Excepto que ninguém vai a Banguecoque para comprar literatura. A Tailândia é mais o país de sonho para quem pretende assistir a um «banana show», a um «fucking show», a um «lookie-lookie», passar uns momentos com um travesti ou uma criança. É isso «enjoy Thailand», para a grande maioria. Com uma massagem especial porque «we offer our heart». Mas a Tailândia é também símbolo de droga dura…

No gabinete da polícia, ao lado do retrato oficial da família real tailandesa, um poster visivelmente ultrapassado ainda preconiza 100 anos de prisão para os exportadores de estupefacientes. Hoje, o crime é punido com a pena de morte.

Luís e Márcia, correios de droga, portugueses, pouco mais de 20 anos de idade, caíram na armadilha. E sem dinheiro não há sequer hipótese de suborno. Os poucos dólares de que ainda dispunham para os cigarros da free shop não chegam para comprar a polícia. Os dois jovens tornam-se um número de processo. Um extenso dossier é enviado à Drug Enforcement Agency (DEA), um outro à INTERPOL. A Polícia Judiciária portuguesa fica para outra altura. Os detidos, depois de longas horas de espera, acabam por ser enviados para o Centro de Detenção de Banguecoque. «Uma pocilga nojenta», diz um familiar de Márcia.

Aeroporto Don Mueang. O antigo aeroporto internacional de Banguecoque serve hoje como aeroporto regional. (Foto: D.R.)

Oito meses depois de ter sido detida no Aeroporto de Banguecoque, Márcia está reduzida a um simples número: 519-25. Um número que corresponde a 24 anos de idade, completados na prisão; 24 anos e uma história que explica (talvez não completamente) quais as razões que a levaram ao aeroporto internacional de Banguecoque naquele dia 7 de Maio do ano passado.

Márcia nasceu algures em Lisboa de um terceiro casamento do pai, um homem de tradição aristocrática que se ligara à família de um banqueiro judeu, numa operação muito ao  gosto do tempo. «Foi para disfarçar a miséria franciscana», comenta um familiar.

Tal como o pai fizera na sua juventude, também Márcia foge de casa. Foi há oito anos e a jovem decidiu então ir viver para casa de um irmão, no Estoril. Acabara de fazer 16 anos e deixava atrás de si algumas más recordações. «Menina mimada, introvertida, sobretudo até ao fim do 1.º ciclo da adolescência», diz um familiar à ABC, «ela começa a chumbar anos. É expulsa do Liceu Charles Lepierre e começa uma vida de café».

Aos 18 anos, encontramo-la a viver em Paris com um namorado. Quando regressa a Portugal, em 1978, pouco depois da morte do pai, procura emprego. As dificuldades são grandes, mesmo para uma rapariga bonita e de boa família. Márcia envolve-se então progressivamente numa boémia lisboeta que desconhecia em parte.  Ataca as «ervas daninhas» (marijuana) e vai subindo. Faz uma pausa na cocaína e chega ao «cavalo» (heroína). Primeiro, «snifando», depois «shootando».

Se é verdade que ela se drogava, não é menos certo que não precisava de forma alguma ir a Banguecoque para obter «cavalo». Tinha algum dinheiro e podia contar com o seu fornecedor habitual, com o qual traficava de há seis anos para cá. A razão da sua deslocação é apenas mais uma peripécia. Mais um nó. «Digamos que genial — mas superficial», se é correcta a forma como Márcia é definida por um dos seus irmãos.

Márcia não teve consciência do risco que corria. «Quis recusar, mas…». Mas foi… Mas o que a levou a Banguecoque? Meia dúzia de dólares, nem mais. Porque é disso, de dólares, que se trata efectivamente…

Dealers e 6 dólares

Em 1983, os itinerários tradicionais utilizados pelas grandes redes de tráfico de droga, como a chinesa ou a turca, já não significam absolutamente nada. O esquema clássico Amesterdão-Copenhaga-Banguecoque, com um «stop» em Moscovo, tornou-se demasiado académico para o traficante. Para o «dealer». Para o aventureiro.

E, no entanto, foi esse o percurso dos dois portugueses agora detidos.

Márcia e Luís não pediram qualquer visto ao Consulado da Tailândia em Lisboa, garantiu-nos o próprio Cônsul honorário. Dr. Borges de Pinho. Não estavam sequer na «lista negra» que cada consulado tem na sua posse e que é uma relação dos indivíduos considerados «personæ non gratæ».

De facto, os dois portugueses transitaram por Amesterdão. Em seguida, foram de comboio até Bruxelas, de onde apanharam um avião para Banguecoque.

Vão ficar na capital tailandesa 10 dias, como simples turistas. Progressivamente, mergulham na vida da cidade. Vivem experiências sórdidas, nos bairros de lata, nos bairros de juncos. Neste «lupanar». Naquele salão de ópio. Nos templos. E acabam por ir dormir num hotel repleto de «babas», «junkies» e pequenos traficantes.

Estiveram no Malaysia Hotel, reputado pelos anúncios «dramáticos» que inundam as paredes sujas e gastas. «Doente, triste, sozinha, sem um tostão, precisa de remédios e de uma injecção contra a cólera. São, pelo menos, x bahts, digamos 13 dólares. Helena. Estou no quarto 209.»; ou «vendo bilhete charter barato contra 10 cigarros de cavalo e 100 dólares.»

Ou foi talvez no Patpong. É indiferente. Banguecoque, para quem dispõe de meios reduzidos, é o «flash» permanente. Mesmo para o tipo mais «cool» do mundo.

Em cada esquina surgem propostas «aliciantes» para todos os gostos. Faz-se «deal» por toda a parte. Ora é uma dose de «cavalo» ou de «brown sugar» do melhor na loja de um ex-GI. Ora é o espectáculo mais «sexy» da cidade: imaginem para que serve uma garrafa de coca-cola, ou uma miúda de 11 anos disposta a tudo no único «waterbed» do bairro.

people sitting on chair near store during night time
Banguecoque. (Foto: D.R.)

Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros.

Márcia e Luís não são «junkies». Ou, pelo menos, não é nessa condição que vão para Banguecoque. A Tailândia representa para eles um punhado de dólares. Um quilo de heroína pura — ainda que comprada para outrem — corresponde a 10 quilos de produto comercializável em Lisboa. Vale, pelo menos, 45.000 contos. A «heroa» pura é misturada com sacarose e/ou estricnina. Rende o que rende e o que der a qualidade, mas no «mercado» português a proporção é de 10 para 1. Números redondos, quando foi presa em Banguecoque, Márcia «pesava» mais de 20.000 contos.

Só que comprar a mercadoria na capital tailandesa, para além de ser mais caro, é perigoso. A polícia revista os quartos de hotel e chega mesmo a levar consigo a droga que quer lá encontrar. A multa varia em função da nacionalidade e do sexo. Até os motoristas de táxi chegam a levar directamente o cliente à esquadra mais próxima. E é inconveniente não esquecer os encontros de passagem: uma prostituta é sempre um denunciante potencial, a troco de uma comissão de 50 bahts (1 baht = 3 escudos) por grama confiscado, dizem os conhecedores.

Por isso, Márcia e Luís partem para Chiang Mai. 24 horas após o regresso a Banguecoque é o choque da detenção. E a necessidade psicológica de se convencerem que a jogada ainda tinha uma hipotética solução. A menos grave. E, logo a seguir, o vazio completo. Salvo um cheiro tremendo a urina e duas tigelas diárias de arroz infecto. Com bichos, em forma de complemento, sofisticado. Um, dois, sete dias e nada…

(Foto: D.R.)

A ligação do triângulo

A última colheita de papoila branca foi excelente no Triângulo de Ouro, uma zona com 220.000 quilómetros quadrados, que cobre o norte da Tailândia, o norte do Laos e o norte da Birmânia. E isto, apesar da «guerra do ópio» desencadeada pelos homens da Border Patrol Police tailandesa contra o «Rei do Triângulo» e chefe da Shan United Army, o exército de libertação dos Shan, Mister Shan Khun Sa (que controla 75% do tráfico) e os seus 4.000 homens. A produção de ópio teria atingido em 1982 as 600 toneladas (em vez das 200 de 1980), que representam mais de 90 milhões de dólares no mercado americano.

Khun Sa, personagem digno dos melhores romances de aventuras, é um mistério. A sua idade ronda os 49 anos. O local do nascimento é uma incógnita. Ou quase. A tese da província de Yunnan, no Sul da China, que ele teria abandonado em 1949 depois da vitória comunista, é a mais plausível. O que é certo é que Khun Sa apareceu na zona do Triângulo de Ouro na década de 60. Era o chefe de um grupúsculo que reclamava a independência dos Estados Shan (no Nordeste da Birmânia) e lutava contra as forças birmanesas. Um rebelde político? Um visionário? Um defensor de uma causa?

O único objectivo de Khun Sa era ser o «Padrinho» incontestado do Triângulo de Ouro. A região pertencia nesse momento a um general chinês, Wen Huan, cujas tropas, verdadeiros destroços das 4ª e 5.ª divisões do Kuomintang (exército nacionalista que se opôs a Mao), que se refugiaram no Norte da Tailândia, depois de serem derrotadas pelos comunistas chineses. Khun Sa desafia os «Senhores da Guerra»: ataca as caravanas de ópio protegidas pelo exército de Wen Huan.

Violência, detenções, acordos secretos com generais corruptos acabam por fazer a fortuna de Khun Sa. Em 1977, ele é incontestavelmente o Rei do Ópio. Controla 10 refinarias de heroína na fronteira entre a Tailândia e a Birmânia. O  seu mercado é enorme: Estados Unidos, Canadá, Austrália e, bem entendido, a Europa. O seu poder aumenta. As suas provocações também. Dá entrevistas, faz libertar um dos seus homens na prisão de Banguecoque…

drugs, addict, addiction
(Foto: D.R.)

Os americanos, que pretendem desorganizar as culturas, aconselham os tailandeses a porem a cabeça de Khun Sa a prémio: 25.000 dólares. O Rei responde «pondo a prémio a cabeça dos agentes americanos». Um deles é abatido. A DEA entra em pânico.

Em Outubro de 1981, o primeiro-ministro tailandês, General Prem, avista-se com Ronald Reagan em Washington D.C.. Nesse mesmo dia, as agências noticiosas anunciam que as autoridades tailandesas tinham atacado uma caravana com 200 mulas carregadas de ópio escoltadas por 700 homens de Khun Sa.

Os Estados Unidos, inquietos com as proporções da vaga mundial de droga, acentuam as pressões sobre os tailandeses. Tentam utilizar no Triângulo de Ouro a mesma estratégia que adoptaram na América Latina em relação à cocaína. Fornecem dinheiro, helicópteros, armas e apoio humano. E assim inicia-se mais uma fase da guerra contra a droga, que abrange todos os continentes. Tanto o pequeno dealer como o grande traficante são procurados. E nem sempre na rede vêm os «tubarões».

Hoje, o Rei do Ópio está de novo em fuga. As autoridades não conseguiram, contudo, apanhar um único grama de heroína no seu acampamento, com piscina, hospital e perto de uma dezena de laboratórios — que foram destruídos. Nove outros ainda estariam em actividade no sul do país. Neles trabalham antigos oficiais do exército chinês, reconvertidos no ópio e na luta anticomunista.

Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros. Sigamo-los.

O inferno tailandês

Ao fim de uma semana que durou séculos, Márcia e Luís foram enviados para o enorme complexo prisional de Banguecoque: Bangkhen. Aí, foram separados. Entretanto, as autoridades tailandesas contactaram a Embaixada de Portugal, em Banguecoque. O processo começa a correr. O diário «Bangkok Post» publica uma curta notícia sobre a prisão dos dois jovens. As famílias são avisadas do sucedido.

Os dois traficantes portugueses são julgados no tribunal de Banguecoque  em 20 de Setembro de 1982. Nada ou quase nada foi dito no decorrer da audiência. Neste tipo de processos a sentença já vem muitas vezes escrita antes do julgamento. Márcia e Luís viram as suas penas reduzidas. A condenação à morte inicialmente proferida transforma-se — por razões jurídicas diversas — em 50 anos de prisão maior. Pouco tempo depois, nova e última redução de pena: 25 anos, a pena mínima na nova legislação tailandesa. No código anterior teriam apanhado apenas 10 anos…

Mas, 15 dias após o julgamento, em princípios de Outubro, Márcia é chamada à Procuradoria da República. As autoridades desejam aumentar a pena. Esta acção é sistemática desde que iniciaram as negociações sobre os tratados de repatriação. Quatro anos de permanência nas cadeias tailandesas é o tempo mínimo para que um estrangeiro possa ser repatriado. Estrangeiro, sim, mas só se for francês ou americano. Os italianos e os nossos vizinhos espanhóis estão em negociações com vista à adesão à proposta que foi adoptada (a francesa). O Canadá também estaria a negociar a assinatura de um tratado semelhante. Portugal, por estranho que pareça, ainda não tomou qualquer iniciativa concreta.

Inexplicavelmente — e ao contrário do que sucede com as outras representações diplomáticas de países europeus em Banguecoque — Portugal não tem sequer um serviço de acompanhamento dos cidadãos nacionais detidos nas cadeias tailandesas. Márcia só tem apoio médico, apesar da gravidade do seu estado físico e psicológico, porque o médico da Embaixada de França está na disposição de a assistir a título humanitário sem qualquer retribuição.

O mesmo já não se pode dizer dos advogados. Para defender a prisioneira portuguesa, a família de Márcia teve de recorrer aos serviços da Embaixada da Grã-Bretanha, que indicaram o advogado responsável pela defesa da jovem portuguesa. Com a diferença de que, aqui, os serviços não foram gratuitos.

As prisões da Tailândia, sabe-se, são terríveis. Os depoimentos da rapariga a um familiar que a visitou no Verão passado, confirmam-no.

Na cela de Márcia encontram-se exactamente 25 mulheres. Duas delas são estrangeiras, as outras são tailandesas, acusadas de homicídio, roubo, crimes políticos, delito comum. Na prisão, vivem 36 estrangeiras. Os maiores contingentes são de americanas, francesas, italianas, espanholas e até uma austríaca.

Em virtude das péssimas condições de vida e da corrupção existente, a heroína nunca falta na prisão. Muitas vezes é o próprio chefe da secção, o Building Chief, que traz a droga para vendê-la a bom preço às prisioneiras que ainda possuem algumas notas. As outras viram-se para o Romilar — um medicamento preventivo contra a tuberculose — em doses industriais: 20 comprimidos para uma curta evasão daquele espaço asfixiante, sob todos os pontos de vista. Tensão psicológica elevada. Forte disciplina. Distanciação cultural e  idiomática. Temperatura que chega a atingir, no Verão, os 45º, com uma taxa de humidade de 98%.

No «negócio» participa toda a gente. Os guardas são naturalmente vendedores. De heroína, em primeiro lugar, já que uma onça de pó dá para 20 doses engarrafadas, coisa para durar 10 dias a quem tivesse dinheiro para tanto. Só que o dinheiro é coisa que não abunda, enquanto não chega o vale de correio enviado pela família. Sobrevive-se com empréstimos a juros que chegam a ser de 300%; e aos maus pagadores, esquecidos ou ignorados pela família, resta a hipótese dos trabalhos menores — a limpeza das retretes, por exemplo.

A família de Márcia envia-lhe regularmente dinheiro e encomendas com géneros alimentícios. Segundo os regulamentos de disciplina da prisão de Banguecoque, nenhuma detida pode receber mais de duas remessas por mês.

Nestas condições, corrupção é a vida. Não ter dinheiro significa basicamente confrontação com a realidade, descida ao inferno. Muitas vezes, ao fim da viagem está a morte, ou pior: a loucura.

Uma carta escrita na prisão em francês, para que a censura compreenda. (Foto: D.R.)

Excerto de uma carta de Márcia

“Não é sempre que há uma pessoa condenada à morte e quando penso que era EU!!!!”

“Vai fazer 6 meses que estou aqui. A minha saúde está boa, mas tenho febre todos os dias desde que estou aqui. Este clima põe-me inconfortável. É muito pesado o tempo todo! E os meus nervos, há dias em que gostaria de desaparecer e porque não deixar-me levar para o país onde reina a loucura. É possível que os malucos sejam mais felizes se não derem conta daquilo que os rodeia…”

Reza a história que um «dealer» alemão ficou mudo. Agredia os colegas e comia os próprios excrementos. Os guardas, fartos das extravagâncias do ocidental, levaram-no de rastos para a enfermaria. Partiram-lhe os dentes com os casse-têtes. Injectaram-lhe uma boa dose de Valium e deixaram-no morrer. São casos idênticos que amaldiçoam os sonhos dos presos. Com ou sem «trip»…

Diferenças de interpretação

Márcia e Luís (este último está hoje numa prisão fora de Banguecoque) são acompanhados pelas respectivas famílias. Márcia, desde Lisboa. Luís, de Macau, para onde foi viver a sua mulher. Assim está menos longe dela. Mas ambos os presos são acompanhados também pelo Cônsul português em Banguecoque, um goês, que está há 18 anos na Tailândia. «Por razões humanitárias», disse à ABC o representante consular José de Sousa, não por uma questão de funções. Mas a sua margem de manobra é demasiado limitada. E como nos disse um familiar de Márcia, «há visita quando há». O Embaixador de Portugal em Banguecoque, Dr. Melo Gouveia, é de opinião diferente: «Márcia é visitada  periodicamente pelos funcionários. No último Natal, foram lá vê-la».

As diferenças de interpretação entre o Embaixador e a família não são as únicas que existem relativamente a este caso. A nível do Estado português também haveria algumas divergências de pontos de vista, designadamente  no que respeita ao famoso acordo de repatriação. Se não, vejamos: no princípio de Novembro de 1982, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Paulo Marques, deslocou-se à Tailândia para negociações comerciais, aproveitando a oportunidade para informar as autoridades Tai do interesse que Portugal teria em assinar o acordo. «Paralelamente, o responsável da pasta dos Negócios Estrangeiros, Futscher Pereira, manifestou grande interesse pela questão dos portugueses detidos», confidenciou à ABC uma fonte diplomática. Foram, então, dadas instruções nesse sentido ao Embaixador, mas até ao momento não se tem notícia de qualquer «démarche» do representante português em Banguecoque. «Não é o momento oportuno», declarou-nos, sem explicar as razões desta afirmação. Uma falta de iniciativa que pode ser explicada por uma «extraordinária» confiança no perdão real. Mas até hoje o perdão só foi exercido três vezes…

Márcia está numa «situação dramática», diz em Lisboa a família. A jovem portuguesa sofre de anemia crónica e de febres; o corpo inchou-lhe desmesuradamente; a inactividade é praticamente absoluta; a sobrevivência pode ser uma questão de tempo: «É provável que não morra, pelo menos, este ano…», disse a ABC o irmão que a visitou em Bangkok.

No entanto, em conversa telefónica com o jornalista, o Embaixador Melo Gouveia manifestou opinião contrária: o estado de Márcia é «saudável» e a prisão de Banguecoque «aceitável». Mas, se os presos resistem «bem», como diz o embaixador português, como explicar a morte, em 1979, de um rapaz português na Penitenciária de Banguecoque, antes mesmo de ser julgado? Aos 28 anos, José Cid foi apanhado, encarcerado, provavelmente torturado. Sabe-se apenas que morreu, que foi enterrado num pequeno cemitério da capital tailandesa, porque não apareceu ninguém a reivindicar os seus restos mortais.

Se o anonimato de José Cid permitiu que até hoje a sua morte tivesse sido ignorada, a situação de Márcia, portuguesa, de 24 anos de idade, e de Luís, 23 anos, é diferente: para já, porque há coisas pouco claras em todo este caso. E depois, porque, qualquer que seja a culpabilidade dos dois portugueses, é difícil admitir que, com esta idade, o horizonte de dois jovens esteja reduzido à expiação de uma pena de 25 anos, algures, numa cadeia sórdida, no país onde a heroína faz, de há muito tempo a estar parte, o papel do vilão. E nem sempre os vilões são chamados à cena. Lá, como cá.

NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Márcia, depois de ser libertada, foi viver para o Canadá. Luís terá falecido. Estará enterrado no Algarve. O advogado português que lhes encomendou o “serviço”, nunca foi incomodado…


Reportagem originalmente publicada na Revista ABC, Número 3, em Fevereiro de 1983.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.