COMPLEXO TITANIC

Castelo Branco, ou a incrível história de Zé Vieira

minuto/s restantes

Fargo é uma série televisiva com poucos anos, mas é também o título de um filme dos irmãos Coen, realizado em 1996.

Um grande objecto cinematográfico que tem, como protagonistas, as personagens mais estúpidas do cinema, pelo menos em filmes sérios, ainda que com humor negro entrelaçado lá pelo meio – marca dos realizadores.

Para mim, claro.

Não pretendo ser absoluto e muito menos totalitário nas ideias, como alguns que por aí andam na política, e, sobretudo, na horticultura, mas isso é sumo para outro copo… sustentável, claro.

Nesta fita, dois criminosos de terceira linha, e não muito credíveis, são contratados para raptar a mulher de um vendedor de automóveis.

Acontece que quem os contrata é o próprio vendedor de automóveis que anda com problemas financeiros, fruto de esquemas trafulhas não muito claros para o espectador, para assim receber, através de um resgate, o dinheiro que será pago pelo pai da vítima, o seu sogro e dono do stand onde o contratante trabalha.

O homem de 70 anos é relativamente rico, gosta muito da filha e, aparentemente, fará tudo por ela. Pelo menos, na cabeça do vendedor. A ideia seria, depois, o marido dividir o dinheiro com os criminosos contratados, e voltaria tudo ao normal.

Como se nos filmes dos irmãos houvesse normalidade.

Se até a própria realidade já não é normal quanto mais o cinema em Hollywood…

Mas corre tudo mal, claro.

O plano absurdo é sabotado pelo próprio cinema, como mandam as regras, e por isso entre malas de dinheiro, neve, sangue, sangue na neve, formas de falar características da região saloia onde se abusa do YA, mentiras e estupidezes relativamente evidentes, com mortes à mistura, a trama vai aparecendo, por sinal… Bastante tramada. 

A personagem principal é uma xerife, gravida de vários meses, a quem foi incumbida a tarefa de capturar os raptores e de resolver os três assassinatos que, entretanto, se deram na sua jurisdição por causa do rapto mal engendrado.

Como se sabe, os americanos não são conhecidos por serem muito espertos nem bons a raptar.

Não querendo ser spoiler, creio que este resumo, sobretudo para quem conhece os filmes dos irmãos Coen, e que por sinal são bastante populares, será claro – e perceberá o alcance da história, para assim nos aventurarmos nas metáforas e analogias com a realidade e as sinopses das comédias negras portuguesas, travestidas de crime real ou não.

Como se o Direito ainda tivesse os seus direitos. Quem não conhece o filme, que o veja. É uma ordem.

Alguma semelhança com a realidade?

Toda.

Podemos hoje questionar a realidade e as suas diferentes facetas. Mas isso é vaso para outras flores – ou para outros canteiros, como dizem os chauvinistas dos franceses.

Tudo isto a pretexto, na verdade, do que tenho assistido pela TV ao ‘caso de polícia do momento’, e por isso tirei  alguns apontamentos para um filme digno dos Coen. Não é uma sinopse, nem mesmo uma ideia. Acrescento, no entanto, alguns comentários e limito-me a reproduzir a trama de forma tão atabalhoada quanto a própria história.

Zé Vieira é conhecido por ser uma das, ou um dos, principais socialites da fauna portuguesa. Os media em geral deram-lhe sempre muita atenção, convidando-o muitas vezes para animar canais televisivos, pouco importando a credibilidade, destacando-se mais o palhaço para animar o circo onde os trapezistas de serviço até agora se têm aguentado.

Ao menos este não escondia o nariz.

Chegou mesmo a pulular por Quintas das Celebridades e programas do género. Nada contra.

É casado com uma senhora agora com 95 anos, de nacionalidade estadunidense, e tem um enteado de 77 anos que vive em Miami num prédio que tem como vizinho um dos filhos de Donald Trump. O enteado odeia-o e, numa fotografia que circula, estranhamente parece-se com o Cavaco Silva.

Qualquer semelhança com a realidade será, portanto, puro entretenimento.

Zé tem um amigo chamado Pedro, que também já andou por Big Brothers e coisas do estilo. Tem um ar pouco credível, mas simpático, não deixando de parecer um pouco tonto.

Por sua vez, Maya é uma senhora bastante duvidosa no que toca ao conhecimento de astrologia – e, já agora, no que toca a outras vertentes, como por exemplo ser apresentadora de programas cor-de-rosa na CMTV. Bom, também como se sabe, os portugueses não são conhecidos por serem grandes apresentadores de televisão, assim como os espanhóis não são por serem apreciadores de caracóis. Já os franceses matam-se por eles. Ah, e anda por aí, de igual modo, que os turcos… não!, desses não convém falar…

Voltemos a Maya. Uns tempos antes do episódio que levou a Lady B. para o hospital por supostamente ter sido empurrada pelo marido Zé, afectando o fémur, Maya fez grandes elogios no seu programa colorido ao ex-travesti por ser um grande cuidador e sobretudo um excelente marido.

E também não é verdade que a violência doméstica quase sempre se pratica na obscuridade? E não é um facto que a descoberta da identidade dos grandes serial killers sempre se mostra uma surpresa para os vizinhos e até para a família, quando estes são apanhados?

Nunca se vê em documentários os conhecidos do criminoso a dizer que se via logo que era ele, ou sempre desconfiei, aqueles blazers não me enganavam, ou ainda que o carrasco tinha mesmo cara de serial killer.

Nesta história parece haver também bastante testosterona tóxica por parte dos protagonistas – Zé e Pedro – que até são vistos num vídeo caseiro a darem estaladas e murros um ao outro. Ou coisa parecida.

Mas também não deixa de ser verdade que noutro vídeo filmado pelos próprios, estão numa cama aos beijos e abraços ainda que sem erotismo. Parece…

Numa das noites da Maya, até chegámos a ver ao mesmo tempo, no ecrã, os dois vídeos caseiros, um de cada lado, com os comentadores cor-de-rosa ao meio. Na esquerda dão estalos, na direita, beijos.

Genial! O paradoxo da condição humana.

Zé garante que nasceu homem e morrerá homem, e que é heterossexual. Um paradoxo interessante para explorar. Ou não. Pode sempre haver dias em que ele se sentirá o que quiser sentir-se. Afinal, no + do LGBTQIA+ cabe + do que o L, o G, o B, o T, o Q, o I, o A e o próprio +. Um looping infinito que nos proporcionam estes interessantes tempos do wokismo.

Nestes programas são sempre usados muitos superlativos e há transgressão politicamente incorrecta.

No meio de tanto confetti e lantejoula, também há verdade, e isso faz-nos mergulhar num mundo que se esforça para se afastar de clichés, os grandes inimigos da complexidade. Mas quase sempre não o conseguem.

Não é fácil. E exige arte. 

A marca para a qual Zé estava a trabalhar, chamada Feira dos Sofás, lançou entretanto um comunicado a anuncia o fim da parceria com o socialite.

Num dos vídeos feitos para a marca, Zé, apontando para um sofá no qual se irá sentar, diz para o “empregado” que o móvel é pindérico, mas depois senta-se e fica tremendamente confortável, mandando de seguida o “empregado” comprar o sofá.

Tudo filmado na vertical e com muita chunguice. Eu não compraria um sofá daqueles. Horrível, é – mas confortável, segundo o reclame.

Nisto, Maya será importante porque é através do seu programa nocturno que vamos conhecendo os melhores ingredientes desta historieta.

Estes ingredientes, com aparentes contradições e muito suspense, poderão apimentar o filme, caso seja esse o objectivo. E sobretudo caso ainda haja espaço para a continuidade do Cinema com c grande também, já que, com tanta história tridimensional e tanta auto-representação que anda por aí, uma pessoa já nem sabe. 

Se a vida é um filme, como dizem, com o Zé são dois.

Mas, a ser feito, será um meta-filme, de forma que o público se percepcione na realidade, mas dentro de uma sala de cinema.

Giro, giro, seria o Zé e o Pedro aparecerem de rompante num dos cinemas,  no meio de uma sessão, plateia adentro a fazer das suas. Ou estalos, ou beijos.

Ou não… Até poderiam ser hologramas.

Mas, seja como for, possivelmente o público já não se surpreenderia.

Público que, aliás, neste caso também faz parte do guião. As pessoas, porque não vamos meter aqui o homónimo jornal para não tornar isto ainda mais degradante.

(ah!, e caso o filme seja realizado, e se um dia passar num cinema em Budapeste, não se admirem se os húngaros não o entenderem, pois, os húngaros são conhecidos por não perceberem nada de cinema).

Mas isto ainda não terminou, até porque é preciso acrescentar ao guião que o Pedro arrendou a casa à Betty para depois a poder subarrendar ao Zé para aí fazer os seus “espectáculos” de cabaret.

Como se sabe, em tempos foi Zé a Tatiana Romanova, e esteve perdidamente apaixonado por Pedro, segundo Pedro, que parece ter mau carácter – e, nisto, Zé sente-se vítima de uma cabala orquestrada pela Chanel. 

No meio disto, o cabeleireiro de Zé é dos poucos amigos que dão a cara nos media, enquanto lhe continua a arranjar o cabelo, não se sabendo, porém, se agora é uma borla, já que a imprensa afirma que a ex-drag queen está sem dinheiro.  

As TVs vão dando cobertura a todas estas informações oferecidas pelos próprios protagonistas, através de vídeos para as redes, e mesmo de telefonemas gravados pelos próprios.

As TVs deverão, aliás, funcionar como convém: promovendo primeiro para matando depois, e fazer isto como se não tivessem culpa nenhuma. Para dar força a esta ideia. dever-se-á dar relevo à história do dentista da TVI, que está a ser investigado por uma jornalista da CMTV que foi despedida da TVI. Talvez a jornalista o faça também por vingança pessoal, quem sabe…

Pensando bem, a ser feito um filme ao estilo dos Coen, se estes nos derem os direitos, deverá haver um capítulo dedicado a este dentista sádico.

Para quem estiver confuso por não ter visto as reportagens, este dentista terá chegado, dizem as supostas vítimas, a arrancar os dentes todos da boca sem anestesia de umas quantas pessoas que, entretanto, fizeram queixa às autoridades.

Isto surge aqui porque estas reportagens da CMTV têm potencial e estão a coincidir no tempo com a história do famoso socialite e do Pedro. Parece mais um daqueles casos de ‘o que interesssa é aparecer’. Nunca percebi o exibicionismo e a necessidade de que falem de nós, nem que seja para dizer bem…

Sou argumentista e não dentista – e por isso, junto histórias; não separo dentes de gengivas.

Portanto, chegados aqui, com a sociopatia aparente do Pedro, o narcisismo estético do Zé e o sadismo do dentista, sempre coadjuvados com os programas das Mayas, teremos um filme profícuo de neurose contemporânea dando cabo de vez da figura do Direito e da possibilidade desse estandarte da democracia existir. E sei qualquer ordem a pôr cobro na desordem.

Talvez, neste caso, por causa de tantos policias e ladrões a pulularem permanentemente pelos canais televisivos, em programas de manhã, à tarde e à noite.

Aliás, quem não se lembra também do ex-agente da Judiciária que veio a ser vice presidente do Sporting, mas que também depois tinha um gangue que assaltava casas de idosas em Cascais? Foi comentador muito tempo.

E eu próprio estou a ficar baralhado já.

E outros também. Os protagonistas desta história, por exemplo. O Zé e o Pedro viram certamente o Truman Show e baralharam-se.

Depois veio o Matrix, o 11 de setembro, o século XXI, e as grandes conspirações tipo Zeitgeist, mais tarde as extremas-direitas meteram a cereja no topo do bolo da discórdia. Agora, aqui estamos cheios de fulgor para ser os actores e os espectadores ao mesmo tempo nesta novela em tempo real. E baralhados.

Bom, mas entretanto, Lady B. pede o divórcio e deixa a entender que quer recomeçar a vida, dito por um dos comentadores que sempre que se refere a Zé e a Pedro, chama-lhes “os artistas”

(Aqui há um pequeno exagero de humor negro já que o comentador não disse que a senhora queria recomeçar a sua vida, mas fica a nota do autor com a sua liberdade para o sarcasmo).

Durante as primeiras semanas, uma nata de comentadores revisteiros do jet-set que aparentemente conheciam os confins do casal atípico, vão criticando a neurose do momento, como se eles fossem os médicos e psicólogos de serviço no ambiente asséptico dos estúdios em croma.

Não deixam de dizer o que pensam nesses estúdios-clínica.

Pelo menos, parece haver uma certa liberdade para isso.

Poderemos depreender que Pedro e Zé tinham uma espécie de plano para ficar com a casa em Sintra, um palacete, segundo Pedro.

Poderá ser este o clímax.

A verdade, no entanto, quanto a esta hipótese ainda está por apurar.

Saiu, entretanto, uma notícia que definitivamente sugere mesmo que Zé empurrou Lady B. pelas escadas do hotel.

Os médicos confirmam que poderá haver crime público e a queixa é apresentada.

Zé passa uma noite detido.

A prisão não é desenhada por Santiago Calatrava.

Nos media, em geral, há sempre um talvez definitivo.

Nunca se sabe. É talvez essa a fórmula de ainda manterem alguma audiência. 

Ficamos a saber também que o idoso e enteado de Zé, também sofre de problemas de saúde, justificando-se assim a sua não vinda para acompanhar a mãe no hospital.

Esperem! Afinal, veio. Chegou a Lisboa, com os competentes jornalistas a cobrirem o acontecimento.

Entretanto saiu uma lista dada por Lady B. indicando quem a pode visitar no Hospital.

Gui, o filho de Zé e enteado de Lady B., não é um dos felizes contemplados dessa lista. Porém, mais tarde, num telefonema exibido pela CMTV, Pedro insta Zé a falar com o filho para ir ao hospital propor a compra da mansão por 700 mil euros, sendo que metade ficaria para o Zé.

Imaginamos que a mansão valha milhões.

Zé diz, contudo, que não tem direito a essa metade devido à separação de bens.

Pedro cai em si e responde:

-Pois é, caralho. (Longa pausa).  Mas dou-te 30 mil.

Corte.

Aqui morro a rir como se tivesse mesmo a ver um filme dos bro Coen.

A pausa matou-me.

Surge ainda a notícia que Zé deverá estar a mais de um quilómetro da mulher, ou futura ex-mulher, através do controlo de pulseira electrónica

Por meio de telefonemas dos protagonistas, vamos percebendo a estupidez dos planos, tipo Fargo.

Quem manda para lá as gravações aparentemente é o próprio Zé, queimando-se a toda a hora por falar e aparecer demais. Segundo os jornalistas, devia era estar calado.

Mas queimar-se em televisão não parece ser assim tão mau. Até é bom, digo eu.

Pelo menos para o programa.

Como se trata de violência doméstica, Pedro faz um apelo nas redes para comprarem algumas t-shirts originais desenhadas pelo próprio, embora  confesse não ser designer, e diz que o dinheiro irá para os cofres de várias instituições que acodem vítimas deste tipo de crime.

Ele próprio irá comprar uma a si mesmo.

Pouco tempo depois, as instituições negam o acordo.

Pelos vistos, o número da conta é a do próprio Pedro. A forma de pagamento seria através de PayPal.

Horas depois, é dito nas notícias que Pedro já foi agressor num caso que chegou a tribunal de violência doméstica e apanhou uma pena suspensa, por ameaçar de morte o seu então marido.

Ainda querem melhor do que isto?!

Um dia depois, o site das t-shirts sai de cena. Error 404.

Tchau t-shirts.

Indignados, os comentadores massacram Pedro, dando a entender que não está bem mentalmente.

As t-shirts têm a imagem de Zé, entre outras – e são horríveis. O mau gosto vem ao de cima. Mais uma vez.

Pedro ainda entrevista uma antiga empregada do casal que confessa que, depois de alguns jantares em Sintra, iam todos para o quarto do casal comprar jóias por baixo da mesa, sem recibos.

A empregada, porém, jura que as jóias eram junk

Entretanto, a CMTV passa imagens antigas de Zé no sentido de contextualizar o seu passado criminoso, mostrando-o no aeroporto, anos atrás, a filmar-se a si mesmo depois de roubar um perfume, negando o roubo, e afirmando que a rapariga-segurança que vai aparecendo em fundo, com o ar mais humilde do mundo, só quer é ter os seus 15 minutos de fama.  A rapariga parece assustadíssima. Só fez o seu trabalho.

Ficamos a saber que o roubo aconteceu mesmo, e Zé Vieira acabou a fazer trabalho comunitário e pagou um multa.

E nós que pensávamos que todo o trabalho do Zé já era comunitário!…

Depois de Pedro confessar novamente, e em directo, que havia um plano sinistro de Zé para ambos sacarem o palacete assim que Lady B. morresse, ficamos com a certeza de que qualquer semelhança com um filme dos Coen é puro cinema.

A minha proposta final, portanto: peguemos nestes apontamentos que compilei (haverá com o tempo muito mais, à velocidade que os protagonistas vão abrindo a boca), e tentemos isto bem vendidinho aos irmãos Coen, para que façam um brilharete em Cannes.

Mas já sei que não vai resultar. Os portugueses são conhecidos por não saberem vender guiões a Hollywood.

Quem é bom nisso são os turcos. Ou os indianos…

Ruy Otero é artista media

Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.