Mora cá em casa um espelho a que poderia chamar antigo, vintage, relíquia. Mas que, na verdade, é apenas um espelho velho, antiquado, com manchas cinzentas. Um espelho de casa de banho, ovalado, com um rebordo de vidro castanho. Em ambos os lados lâmpadas. A luz filtrada pelo mesmo vidro que desenha o contorno do objeto. Adquirido em finais dos anos 70, reflete o melhor design da época. Com luzes difusas a sofisticar o ambiente. A suavizar os contornos de quem nele se mirava. Uma lavadela de cara, um jeito ao cabelo e voilá, lindos. O nosso espelho nunca nos falhou. Nada tem a ver com os seus pares que, entalados entre medonhos armários branco-enfermaria, se vingavam lançando-nos uma luz gélida e cruel. O velho espelho foi sempre generoso. E, por isso, quando chegou a altura de mudar de casa, já a oxidação começava a fazer os seus estragos, não ficou para trás. Mudou-se também. Não se pode abandonar tamanha lealdade. Pendurámo-lo novamente. E ele, grato, retribuiu devolvendo-nos, como sempre, uma imagem suavizada de nós próprios. Até que as pessoas desapareceram. A luz apagou-se. A casa ficou desabitada. E ele ali. À espera. Sem rostos para acarinhar. Os anos foram passando, passando…
Um dia, porém, veio a decisão de regressar ao lar da adolescência. De o reorganizar. De o preparar para acolher uma nova geração. Obras aqui, móveis novos ali… e o espelho, no lugar de sempre. Retiro-o para pintar a parede, decidida a substituí-lo. Mas volto a colocá-lo no seu lugar. ⎼ É só até comprarmos outro. ⎼, vou repetindo, quase certa de que não o vou fazer. Tem cada vez mais manchas e, ainda assim, disfarça as minhas.
Adquiro um espelho novo. Moderno. Bonito. Adequado ao resto da decoração. Mas, no momento de retirar o antigo, vacilo. Acredito que me devolve o olhar. Aproximo-me um pouco. Depois um pouco mais. Olho fixamente e não sei de quem são as rugas que vejo. Os cabelos brancos. De quem é o sorriso complacente. Serão meus? Serão do meu pai? Da minha mãe? Terá o espelho guardado as nossas memórias? Afasto-me um pouco. Estico-me. Alongo o pescoço. Procuro a imagem de uma miúda escanzelada, loira, de cabelo escorrido. Em bicos de pés, como se estivesse de saltos altos. E o espelho não tarda em mostrá-la. A camisa de noite de algodão, comprada na Voga. Comprida, fundo branco, salpicado de pequenas flores em rosa claro, rosa vivo e rosa velho. Três a três. Uma mão atrás das costas a ajustá-la ao corpo. A outra a apanhar o cabelo. Sente-se crescida. Acha-se muito bonita. Quando tiver 30 anos vou ser assim, pensa. A memória desliza-me os dedos pelo cabelo, pelas faces sardentas, pelo algodão macio da camisa. Quando tiver 30 anos…
Decido não me desfazer do espelho. Quero preservar as imagens que guarda. Memórias que já só nós dois partilhamos. Só ele se lembra da menina que fazia as tranças à sua frente. Da adolescente a experimentar a maquilhagem da mãe. A ensaiar com um lápis os movimentos para fumar com estilo. A praticar olhares sedutores, de aparelho nos dentes. A testar visuais para as saídas de sábado à noite. E só nós os dois sabemos que se um dia a saudade for insuportável, bastará sussurrar-lhe os nomes dos que partiram e ele, sempre leal, trá-los-á em meu auxílio. Ficaremos os dois cá em casa. Cobertos pelos sinais da idade que alastram nos corpos de ambos. O pacto está feito: olharemos com benevolência as manchas um do outro. Espelho meu, espelho meu…
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.