Título
Caruncho
Autora
LAYLA MARTÍNEZ (tradução: Guilherme Pires)
Editora (Edição)
Antígona (Março de 2024)
Cotação
18/20
Recensão
Carancho é, sobretudo, uma história de fantasmas enterrada num armário familiar carregado de esqueletos e pecados. As narradoras são uma avó e uma neta que se vão revezando capítulo, após capítulo. Mas há outras duas mulheres presentes na história, as mães de ambas que várias vezes são recordadas também por ambas. Mas a personagem principal é a casa. Uma casa assombrada. Uma casa que respira. Uma casa que contém corpos e segredos. Uma casa que é visitada por fantasmas, por anjos que revestem o telhado como insetos e por santos que queimam os lençóis com as suas auréolas. As quatro gerações de mulheres estão presas à casa, cercadas de fantasmas e de anjos insectóides.
A casa fica perto de uma aldeia presa pela pobreza, na aldeia muitas mulheres presas no purgatório da falta de poder e da violência contra os seus corpos e uma armadilha mortal: a raiva que se vai instalando nos seus corações, por vezes incontrolável, e que penetra nas entranhas e não deixa dormir nem as personagens, nem a nós, leitores que, de algum modo, nos sentimos presos na casa. Quando se começa a ler o livro também bate a porta atrás de nós prendendo-nos na narrativa claustrofóbica e perturbadora. “Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta retorce-lhe as entranhas até a deixar som fôlego. A minha mãe dizia que esta casa nos faz cair os dentes e nos seca as vísceras. “
Como diz Rachael Conrad, “este livro tem TUDO: traumas geracionais, maldições, assassinatos, bruxas, santos, anjos que parecem louva-a-deus, fantasmas, imagens profundamente perturbadoras que ficarão comigo por muito tempo e é, possivelmente, uma das casas mal-assombradas mais vingativas e furiosas, na literatura. Caruncho é profunda e maravilhosamente perturbador.”
A avó e a neta são movidas a ódio. Na aldeia chamam-lhes bruxas. A forma como se tratam uma à outra é de uma violência incomodativa. “A avó não estava lá. Também não estava debaixo da mesa da cozinha nem dentro da despensa. (…) Velha de merda. Arrastei dali a velha, sentei-a na cama e sacudi-a pelos ombros. Algumas vezes funciona, outras não, desta vez não funcionou. Arrastei-a para o corredor, abri a porta do quarto, empurrei-a lá para dentro e tranquei-a. Nesta casa todas as portas podem ser trancadas pelo lado de fora.”
É, pois neste tom que ambas as personagens nos vão fazendo uma novela de dimensão sobrenatural mas também nos fazem um retrato da guerra civil espanhola, e da posterior razia franquista “quando tudo se transformou em fome e poeira” e das recordações de ambas as protagonistas que são “coisas piores do que os mortos que surgem do nada”. Homens que vão para a guerra e não regressam, homens que não querem ir para a guerra e se escondem, uma família rica da aldeia, os Jarabos, que sofre com as maldições que a avó e os seus santos lançam sobre ela, e que espera, ainda que inconscientemente, a punição das mulheres da casa. O casamento da avó com o capataz dos Jarabos, Pedro, que termina com a sua misteriosa morte, e o emprego da neta como criada que tem um desfecho trágico com o desaparecimento de uma criança que apenas aprofunda a ruptura familiar, a má fama das mulheres e o drama de todos os que de algum modo são envolvidos na história e na maldição. Nós, leitores, somos alguns deles porque o livro cola-se-nos à pele e não o esquecemos facilmente.