A contratação de uma empresa de consultoria, a IQVIA Solutions Portugal, integrada numa multinacional holandesa para auxiliar o Ministério da Saúde a elaborar o seu plano de emergência ‘apimentou’ a campanha para o Parlamento Europeu, com a cabeça-de-lista socialista, Marta Temido, a tecer críticas subilinas ao Governo Montenegro. A antiga ministra disse não ter “memória nenhuma” de contratos com esta consultora nos Governos Costa, e a actual ministra prometeu revelar, no início desta semana, “todos os contratos e respetivos projectos e valores dos últimos oito anos”. Já não precisa: o PÁGINA UM apresenta-os agora, numa análise criteriosa aos negócios de todas as empresas do grupo holandês, que estão agora, em Portugal, num processo de fusão. Destaca-se, em oito anos de Governo Costa, um total de 55 contratos públicos com entidades do sector da Saúde, quase todos por ajuste directo, envolvendo 2,1 milhões de euros por serviços de consultoria e plataformas de gestão hospitalar. Não se sabe que tipo de informação acaba nas mãos desta multinacional holandesa que opera em 81 países.
Durante os Governos de António Costa – que integrou Pedro Nuno Santos e Marta Temido – foram estabelecidos 55 contratos públicos entre entidades da Administração Central na área da saúde, incluindo hospitais, e as diversas empresas do grupo IQVIA Solutions, através das sucursais portuguesas desta consultora de saúde sedeada na Holanda. No total, considerando o período entre Novembro de 2015 e finais de Abril passado, estes contratos totalizaram quase 2,1 milhões de euros, sendo que cerca de 82% deste montantes foi por ajustes directos. Nestes contratos estão excluídos aqueles os celebrados com a Direcção Regional de Saúde dos Açores e a sociedade gestora de equipamentos de saúde Saudaçor.
Este levantamento do PÁGINA UM contrasta, de forma chocante, com as declarações de ontem da cabeça-de-lista do Partido Socialista e antiga ministra da Saúde de 2018 a 2022. No decurso da ‘revelação’ de Pedro Nuno Santos de que o Governo Montenegro contratou uma empresa privada – a IQVIA Solutions Portugal– para colaborar na elaboração do Plano de Emergência da Saúde, Marta Temido disse, durante a campanha para as Europeias, “não ter memória nenhuma” de contratações com esta consultora nos governos que integrou, dando apenas o exemplo de uma auditoria à capacidade de formação de médicos “contratada ao exterior”. E acrescentou ainda que os Governos Costa nunca contrataram serviços externos para desenhar planos estratégicos para o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
A realidade, contudo, demonstra o contrário, porque durante os Governos Costa, e no período de Marta Temido como goverante, mais de duas dezenas de entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde ‘fartaram-se’ de ter relações comerciais com a consultora do momento, que veio ‘apimentar’ a campanha para o Parlamento Europeu durante este fim-de-semana.
Apesar de o foco estar, por agora, nos contratos da IQVIA Solutions Portugal – que assinou um contrato com o Ministério da Saúde para colaborar na elaboração do Plano de Emergência da Saúde por 9.250 euros – , na verdade esta é apenas uma das empresas integradas na holding neerlandesa que foram operando no nosso país. A IQVIA Holding está sedeada em Amsterdão e cotada na bolsa de Nova Iorque, sendo uma das principais empresas mundiais de consultoria e tecnologia clínica e com escritórios em 81 países,
Embora a empresa-mãe na Holanda tenha actualmente em curso em Portugal uma operação de fusão, por integração na IQVIA de três outras das suas empresas portuguesas, a esmagadora maioria dos 55 contratos durante o Governo Costa foram realizados com a IASIST Portugal, uma empresa-irmã da IQVIA. A partir deste ano, a IASIST será incorporada – em conjunto com a IQVIA II Technology Solutions Portugal e a Evigrade Helath Care Research and Consulting – na IQVIA Solutions Portugal, que assumirá todos os contratos. Essa fusão é, no entanto, uma mera operação de gestão, tanto mais que, por exemplos, os gerentes da IQVIA Solutions Portugal e da IASIST Portugal são os mesmos: Sérgio Tavares Galvão e Mário Miguel Santos Martins.
Ora, apesar da falta de memória de Marta Temido, as empresas portuguesas desta multinacional de consultoria em saúde com sede na Holanda, e sobretudo a IASIST, são ‘velhas conhecidas’ tanto das diversas unidades hospitalares como também da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e até da Direcção-Geral da Saúde (DGS). Recorde-se que Marta Temido chegou a ser presidente da ACSS e também da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares alguns anos antes de assumir funções governamentais.
A ACSS é, aliás, a entidade da Administração Pública com os maiores contratos celebrados com a IASIST: os três contratos assinados durante o Governo Costa totalizaram 312.851 euros sendo que o contrato após concurso público teve o preço de quase 185 mil euros, que serviu para pagamento de um pacote de software para estratificação da população pelo risco. Este contrato foi assinado em Setembro de 2023, embora tenha sido publicado no Portal Base apenas em Janeiro deste ano.
Dos outros dois contratos com a ACSS destaca-se ainda um contrato assinado em Novembro de 2022 para serviços de consultoria incluindo a licença de uma ferramenta de gestão hospitalar. De acordo com a informação da própria IASIST, a plataforma em causa (ACG) inclui “um sofisticado modelo de previsão […] que foi apurado para identificar pacientes com elevado risco de consumo futuro de um grande volume de recursos de prestação de cuidados de saúde, assim como calcular esse mesmo custo potencial”. Nos documentos constantes do Portal Base não se fica a saber se a empresa tem acesso à informação recolhida nos hospitais públicos.
Um outro contrato de consultoria de montante relevante foi celebrado em Dezembro de 2022 entre a IQVIA e a Direcção-Geral da Saúde no valor de 134.900 euros, tendo visado a realização de um “estudo de avaliação do regime escolar (2017/2018 a 2022/2023), não sendo ainda conhecidos os resultados.
De resto, têm sido as unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde os principais clientes da IQVIA Solutions Portugal e suas empresas-irmãs, em especial a IASIST. Nos Governos Costa, foram celebrados com empresas da multinacional holandesa de tecnologia e consultoria no sector da saúde um total de 50 contratos, todos por ajuste directo, envolvendo 20 hospitais ou centros hospitalares. Em números absolutos, destacam-se 22 contratos por ajuste directo com unidades de saúde do Norte do país, sendo que seis foram celebrados pelo Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, cinco pelo Hospital da Senhora da Oliveira (Guimarães) e outros tantos pela Unidade de Saúde do Alto Minho.
Em termos de montantes globais, no período dos Governos Costa, foi a Unidade Local de Saúde do Alto Minho que mais pagou à consultora holandesa: 194.050 euros. Com valores globais dos contratos entre 160 mil e 170 mil encontram-se três unidades do SNS: os centros hospitalares de Lisboa Norte, de Tâmega e Sousa, e ainda de Coimbra. Acima dos 100 mil euros estão ainda o Hospital de Guimarães (143.500 euros), o Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga (117.500 euros) e o Hospital de Braga (110.000). Na análise destes contratos, a esmagadora maioria refere-se a serviços de consultoria de gestão clínica, designadamente ao nível do benchmarking.
A consultora holandesa, através da IASIST, desenvolveu uma ferramenta online, designada IAmetrics, com mais de 20 indicadores de gestão. Também neste caso se desconhece se a empresa regista, também para si, informação obtida neste processo. Em todo o caso, em princípios, todos estes sistemas trabalham, até por uma questão de facilidade e de operacionalidade, com dados clínicos anonimizados, ou seja, não há informação ou dados pessoais recolhidos, até porque os objectivos são meramente de gestão.
Em termos de despesa anual, 2022 e 2023 foram os de maior destaque, envolvendo contratos no valor de 402.147 e de 379.123 euros, respecticamente. Este ano, já em contratos abrangendo o Governo Montenegro, a factura vai, por agora, nos 71.000 euros. Não esta ainda incluído, no Portal Base, o contrato para o Plano de Emergência de Saúde, pois somente surgem dois ajustes directos relativos aos serviços da plataforma IAmetrics com o Centro Hospitalar de Coimbra (42.000 euros) e a Unidade Local de Saúde do Alto Ave (29.000 euros).
Ou seja, ao contrário daquilo que afirma Marta Temido – que também afirmou em campanha eleitoral que “quem conhece bem [o sector da Saúde] não compra a terceiros, quem não sabe bem o que fazer tende a comprar fora” –, os anteriores governos socialistas aceitaram com normalidade a aquisição de serviços de consultoria e de aplicativos de gestão hospitalar ao sector privado, e particularmente à empresa (IQVIA) que agora está na berlinda. E depois desta ‘rabanada de vento’, que nem sequer ‘tempestade’ será, quase certo será continuar a ‘compra a terceiros’ mesmo se houver quem diga que conhece bem o sector da Saúde.
N.D. O PÁGINA UM disponibiliza AQUI mais informação sobre os contratos entre as empresas do universo IQVIA e entidades públicas a partir de Novembro de 2015.
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