Aquilo que devemos ter em conta sobre viagens no tempo é se, de verdade, as queremos fazer.
Nadar contra a corrente, para além de esforço considerável, requer a capacidade de engolir golfadas de pirolitos. Os ribeiros trepam fragas e não sobram margens para abrir os braços, de verdade, pagas o preço dessa viagem?
Ah, e depois, podes sempre decompôr, se é mera viagem (ida e volta) ou se é regresso (retorno). Numa viagem, a tentação da nostalgia é tão imensa que quase admitimos o risco.
– Deixa-me só ir lá ver, de novo.
Num regresso há, pois então, perda. Perdemos a pescaria, fogem-nos as redes das mãos, a rebentação engole-nos e abafa-nos, choca o corpo contra pedras polidas.
Nunca arriscaria tal. Isso é para garotos e românticas que se atiram do barco em plena rebentação.
– Simão! Simão!
Viagens no tempo fazem-se com facilidade, fazem-se com música e água, sem precisarmos de regressar, para ir (e vir) só lá ver (de novo).
Somos todos antenas. Seja em que ponto do ribeiro (tempo) for. Estamos todos a ampliar o sinal uns dos outros, lembramo-nos mutuamente de pedras nos caminhos e saltamos riachos que alimentam lameiros (a lama) que alimentam aquele rebanho (a lã) que nos alimenta a nós, aos nossos filhos, enquanto o sangue se inflama com coisas vãs (a lama) e o lodo entra nos sapatos se nos falha um pé.
Todos nós antenas, que lá continuam pelo tempo corrido, corninhos no ar, flutuando ao de leve com as brisas e ventanias da sociedade do espectáculo, entre actores que memorizam bem as suas deixas – até com precisão matemática –, pontos, encenadores nas sombras, e os críticos – ah! Os críticos. Essa massa soberba – cheia de ar no recheio, fermento lento e pão que seca num dia até parecer cavaca amarga. Ranho que pinga do nariz (são as alergias, as alergias!), mas têm eles sempre uma opinião, homessa! Sempre um refrão na ponta da língua, para cantar em verso e fingir que não seguem a partitura. Os instrumentistas todos a levar com chimbalaus e a plateia só ais e uis, que espanto, que emoção! Ora são os turcos, os argelinos, os brasileiros, os portugueses de bem e os portugueses de mal, os aventais e os bordados! Ai! Ui! Pim! Pam! (Pum!)
Nada de novo. Qualquer viagem no tempo nos ensina isso. Mas precisamos de tempo para a fazer, pode parecer diferente, mas na verdade não há atalhos para ida e volta. Podemos ter ido até onde o primeiro Deus habita, a distância percorrida continua a mesma.
E mesmo que agora baixem todos os lancis, pintem os passeios de vermelho, para em seguida desovar mecos de ferro a cada cem centímetros (cem). Pim! Pam! (Pum!) Tomem lá estas acessibilidades mágicas, que a vida não foi feita para trepar ribeiros sem tropeçar nas fragas, dependendo da distância das rodas a um potencial volante tereis ou não privilégio de circular pelas ruas ocupadas pelas forças opressoras.
Entre rios, ribeiros e riachos, anda a água acima e abaixo, a alimentar mares e oceanos e, com música bastante, quantas viagens no tempo podemos fazer até ficarmos loucos?
– Sabes que, para os meus filhos, eu sou como a chuva e peço desculpa, e isso é razão bastante para que me gostem.
O primeiro Deus, ouvindo-me, soltou sonora gargalhada, sobressaltando-me. E, imediatamente, se enrolou como um bicho-de-conta.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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