Autarquia de Oeiras cria um (despesista) 'braço informal' de promoção ao investimento

Isaltino dá de uma penada 350 mil euros a uma associação privada criada por um ex-ministro do PSD e um ex-dirigente do Chega

por Pedro Almeida Vieira // Junho 7, 2024


Categoria: Exame

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A autarquia de Oeiras é accionista de referência da Taguspark e possui um departamento municipal de promoção ao investimento, mas achou por bem ‘apadrinhar’ uma associação privada criada por Martins da Cruz – ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e colega de Isaltino Morais no Governo de Durão Barroso – e por Tiago Sousa Dias, que era, à data da escritura, secretário-geral do Chega. Apadrinhar é uma força de expressão, porque em cerca de um ano, a Oeiras Valley Investment Agency (OVIA) – que até usa um logótipo similar ao da autarquia – já recebeu sede, computadores, material de escritório e agora um ‘presente’ de 350 mil euros, aprovado em tempo recorde esta quarta-feira, para satisfazer sobretudo os salários dos administradores. Mas o mais impressionante, na breve história desta associação privada, são as pessoas que se encontram neste (pequeno) meio: uma das administradoras da OVIA é filha do arquitecto Tomás Taveira, que, por sua vez, é avençado da autarquia desde 2018; e o presidente da assembleia geral é o histórico socialista José Lamego.


Não foi com uma mão à frente e outra atrás, mas com as duas mãos bem à frente – ou melhor, com quatro mãos – que um ex-ministro do PSD e um ex-secretário-geral do Chega conseguiram esta quarta-feira, através de uma associação por eles criada oficialmente em Março de 2022, arrecadar 350 mil euros da autarquia de Oeiras, por obra e graça dos empenho de Isaltino Morais, o presidente da edilidade. O montante, que servirá até cobrir despesas de funcionamento, incluindo pagamentos aos dirigentes da associação, terá efeitos retroactivos, ou seja, aplica-se já ao início do ano. E antevê que o financiamento seja para continuar, tanto mais que até a sede e computadores já foram cedidos pela Câmara Municipal.

Mesmo no cenário de Oeiras, onde tudo aparenta ser possível sob a capa de uma maioria mais do que absoluta – o movimento independente de Isaltino tem oito em 11 vereadores –, sem que a ética seja ouvida, a forma como a denominada Oeiras Valley Investiment Agency (OVIA) foi contemplada com um ‘bolo’ de 350 mil euros é um ‘case study’ sobre as ligações promíscuas com base em relacionamentos pessoais sempre com dinheiros públicos à mistura.

Isaltino Morais, presidente da autarquia de Oeiras.

Tudo começou, na verdade, na Rua dos Sapateiros, na Baixa lisboeta, em 20 de Outubro de 2021, quando António Martins da Cruz e Tiago Sousa Dias se dirigiram ao notário para registarem, somente eles, uma associação pomposamente denominada Oeiras Valley Investment Agency, que recebeu o acrónimo OVIA. Os signatários não tinham ainda sede, mas na constituição da associação garantiam que seria no rés-do-chão do Edifício Novartis, no Taguspark, tendo por fim “contribuir para o desenvolvimento e inovação de Oeiras nos domínios da internacionalização, da inovação tecnológica e do investimento”. Na verdade, nunca tiveram sede nesse edifício da sucursal portuguesa da farmacêutica suíça.

Ambições todas as associações e empresas possuem à nascença, mas a OVIA mostra apenas ter relações pessoais. Durante um ano, entre 2002 e 2003, Martins da Cruz, embaixador de carreira e ocupando a pasta dos Negócios Estrangeiros, foi colega no Conselho de Ministros, no ‘consulado’ de Durão Barroso, de Isaltino Morais, então na pasta do Ambiente. Nenhum dos dois aqueceu o lugar até ao fim desse Governo interrompido com a saída de Barroso para Bruxelas: Isaltino Morais demitiu-se na sequência da descoberta de uma conta bancária suspeita em Abril de 2003 – que espoletaria o processo judicial que o levaria à prisão por pouco mais de um ano em Abril de 2013. Já Martins da Cruz ‘sobreviveu’ como ministro mais sete meses, demitindo-se por uma polémica relacionada com a entrada da filha em Medicina na Universidade Nova de Lisboa.

Por razões diversas, ambos se desfiliariam do PSD pouco depois, sendo que Martins da Cruz acompanhou Santana Lopes quando o efémero sucessor de Durão Barroso à frente do Governo PSD-CDS decidiu criar um novo partido em 2018, o Aliança. Foi aí que Martins da Cruz conheceu Tiago Sousa Dias, mas com o insucesso dos santanistas na Aliança, cada um foi para o seu lado. Tiago Dias – que até concorreu pelo Aliança no círculo Fora da Europa nas eleições de Outubro de 2019 – saltaria em Maio do ano seguinte para o ‘barco’ do Chega, e André Ventura acabaria por lhe entregar o cargo de secretário-geral em Setembro de 2020. Foi, portanto, como secretário-geral do Chega que Tiago Sousa Dias foi com Martins da Cruz constituir a associação OVIA na Rua dos Sapateiros em Outubro de 2021.

Martins da Cruz, como presidente do Conselho de Administração da associação ‘apadrinhada’ por Isaltino, que criou com um dirigente do Chega, tem sido particularmente activo em ligações ao mundo empresarial da China.

No Chega, Tiago Sousa Dias não teve grande sucesso – sairia do cargo no início de Fevereiro de 2022, agastado, e lançando mais tarde ataques ao partido de André Ventura, reputando-o de “taberna onde os grunhos se embebedam”. Mas na OVIA teve sucesso, e muito – arranjou um emprego.

Advogado de formação, Tiago Dias e Martins da Cruz dedicaram 2022 a preparar o lançamento oficial da OVIA – e foi a partir desse momento que se passou a sentir que a associação seria uma espécie de ‘braço informal’ de Isaltino Morais. Ao longo desse ano, por simples despacho, o presidente de Oeiras cedeu não apenas instalações para a OVIA, num edifício camarário na Fundição de Oeiras, como diverso material informático e de escritório. E a associação criada na Rua dos Sapateiros foi lançando ‘pontes’ de influência em todos os quadrantes ideológicos.

Assim, Martins da Cruz assumiu a liderança da associação, como presidente do Conselho de Administração, enquanto Tiago Dias ficou com a parte operacional, de secretário-geral. Para vice do antigo embaixador foi escolhida Sílvia Taveira de Almeida, professora de empreendedorismo da Universidade Católica.

O facto de esta economista, conhecida pelo seu site de health coach, ser filha do arquitecto Tomás Taveira seria apenas uma curiosidade irrelevante para a investigação do PÁGINA UM, se não fosse o caso de o arquitecto das Torres das Amoreiras, aos 85 anos, manter uma avença da autarquia de Oeiras, que dura ininterruptamente desde 2018. Os cinco contratos do pai da vice-presidente da OVIA – feitos por ajuste directo ou suposta consulta prévia (para contornar ilegalidades) com a autarquia – já somam mais de 205 mil euros (com IVA) nos últimos seis anos, e o mais recente foi celebrado no mês passado, garantindo a Taveira o recebimento de 2.000 euros de avença mensal até meados de Fevereiro do próximo ano.

Tiago Sousa Dias, em Março de 2021, como secretário-geral do Chega, em conversa com André Ventura. Zangou-se com o partido já com a OVIA criada com Martins da Cruz..

O outro vice-presidente da OVIA é Pedro Matias, presidente do Instituto de Soldadura e Qualidade, que esteve na direcção do IAPMEI, tendo diversas passagens por gabinetes governamentais. A última foi entre finais de 2015 e meados de 2017, no primeiro Governo Costa, como chefe de gabinete do secretário de Estado da Indústria João Vasconcelos (entretanto falecido, aos 43 anos), que se viria a demitir-se por causa do Galpgate, desencadeado pelo pagamento pela Galp Energia de viagens, refeições e bilhetes para o Euro 2016 a três governantes e adjuntos.

Porém, foi na Assembleia Geral da OVIA que o ‘namoro’ com o PS se mostrou mais evidente, porque para aí, como presidente, foi escolhido o histórico José Lamego, professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa, por diversas vezes deputado e antigo secretário de Estados dos Negócios Estrangeiros.

Este estreitamento das relações políticas e pessoais entre a autarquia de Oeiras e uma associação privada, criada por duas pessoas num cartório da lisboeta Rua dos Sapateiros, descambam mesmo em ambiguidades que aparentemente interessam a ambas as entidades. Quem não explora as origens da OVIA será induzido a pensar que integra o mundo autárquico, a começar pela sua denominação, que usa a expressão “Oeiras Valley”, uma marca oficial do município registada pela autarquia no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) em 2008. Mas, para além desta sinonímia, a OVIA passou a usar um logótipo igual ao da autarquia, com o V estilizado. Também aqui este logótipo está registado no INPI, desde 2020, em nome do município, pelo que se a OVIA tentasse registar um pedido expresso para o seu logótipo receberia um indeferimento. Mas ao usar este logótipo do município, a OVIA só teria problemas se a autarquia se queixasse. Também curioso é saber que Martins da Cruz foi um dos apresentadores em Fevereiro de 2020 da marca Oeiras Valley onde surgia o logótipo ‘copiado’ dois anos depois para a OVIA.

Não surpreende assim que, em 17 de Novembro do ano passado, tenha sido Isaltino Morais o cicerone do lançamento da OVIA. No próprio site do município, a associação privada recebe os maiores elogios, destacando-se ter sido fundada por 19 entidades, entre as quais “consta[va]m o Millenium BCP, a Altice, o Taguspark e o Laboratório Edol, entre outros”. O “entre outros” não inclui, estranhamente, a Câmara Municipal de Oeiras. Ou não: se fosse a autarquia fosse sócia, Isaltino estaria legalmente impedido de conceder apoios e subsídios à OVIA, para além do pagamento da quota.

A vantagem e a oportunidade da existência da OVIA para o município de Oeiras não aparenta ser nada evidente. A autarquia é um dos accionistas de referência do Taguspark, com 19,16% , a empresa que gere o parque tecnológico, com serviços de marketing e promoção ao investimento. Integra em si, aliás, o know how tecnológico e os contactos e parcerias decorrentes de ter, entre os accionistas, diversas instituições universitárias (IST, Universidade de Lisboa e INESC), entidades da Administração Pública (IAPMEI e FCT), bancos (BPI e BCP), empresas de comunicação (Altice e Meo) e diversas outras empresas, entre as quais a Emerica, da empresária chinesa Ming-Chu Hsu, para além da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e o Imamat Ismaili.

Por outro lado, a autarquia tem também um departamento próprio, o Gabinete de Assessoria Técnica e Promoção do Investimento (GATPI), cujas competências se sobrepõem às da OVIA. Com efeito, entre outras funções, a GATPI procura “assegurar a promoção interna e externa do Município, dos parques empresariais e de associações de empresários” e também “assegurar a ligação do tecido empresarial instalado, a instalar e de investidores junto das outras unidades orgânicas”, além de “promover as actividades inerentes ao Balcão do Investidor para dinamizar a economia local, qualquer que seja a área de investimento, com a missão de dar informação, orientação e aconselhamento a todos os que pretendam investir no concelho”.

À esquerda, logótipo do Oeiras Valley Unvestiment Agency (OVIA), uma associação privada, não está registado, mas é semelhante ao logótipo registado no INPI pelo município de Oeiras desde 2020 (à direita). Esta similaridade mostra-se desconcertante pela ambiguidade que provoca entre privado e público.

Para essa finalidade, o GATPI tem estabelecidos o Núcleo de Relações Internacionais e Institucionais (NRII) e o Núcleo de Apoio ao Investidor e ao Empreendedorismo (NAIE), estando dependente directamente de Isaltino Morais. Ler as funções do GAPTI fazem questionar as razões da existência da OVIA.

Claro que quem está na OVIA terá uma opinião contrária. Apesar da completa ausência de actividade visível em 2022, para além dos preparativos para o lançamento em Novembro, certo é que as contas da OVIA apresentam logo valores de vendas prestação de serviços de 121.951 euros, que não encontram explicação pelos montantes das quotas. Uma parte desta verba será proveniente da Reformosa, uma outra empresa também detida por Ming Chu Hsu, o que não deixa de ser estranho, tendo em consideração que esta empresária tem 12,53% da Taguspark. Conhecida por filantropa – doou dois milhões de euros à Nova SBE em Carcavelos e, no início da pandemia, cerca de 4,6 milhões de euros em equipamento médico –, a empresária chinesa não tem estado isenta de polemicas. Num perfil a esta empresária, o Expresso destacou, em Abril de 2020, que o seu nome está associado aos Panama Papers, um esquema de constituição de empresas em off shores para fuga aos impostos.

Seja como for, mesmo sem actividade relevante em 2022, a associação despachou 67.865 euros em gastos com o pessoal, sendo que mais de 47 mil euros líquidos foram parar os bolsos dos membros dos órgãos sociais, sobretudo aos três membros do Conselho de Administração. Neste ano, o número de trabalhadores da associação foi de dois… para três membros do Conselho de Administração.

Imagem retirada da transmissão da Câmara Municipal de Oeiras ao lançamento da Oeiras Valley Investment Agency (OVI) em Novembro de 2022.

Só em Março do ano passado, numa assembleia geral da associação, se anunciou, em concreto, “a primeira iniciativa da OVIA”, um roadshow a Londres nos dias 29, 30 e 31 desse mês, além de integrar uma missão empresarial da autarquia ao Brasil, Estados Unidos, China e Macau. Na acta a que o PÁGINA UM teve acesso diz-se que “a OVIA ir[ia] reunir com fundos de investimento interessados em investir em Portugal e em particular em Oeiras, procurando-se salientar a importância estratégica da localização de Oeiras, dos parques empresariais, do sector imobiliário e da dimensão internacional das empresas e projectos actualmente já sediados em Oeiras [sic]”. E também que a associação pretendia criar “uma incubadora de start-ups”, além de contribuir para um “Financial District e opara o aumento da oferta cultural e melhoria das condições sociais”.

Tudo boas intenções da OVIA, mas algo redundantes face às competências da Taguspark e do GAPTI.

Mas um dos pontos complementares em agenda foi a confirmação do pagamento de senhas de presença aos órgãos sociais, sendo que se definiu para os membros do Conselho de Administração um valor de 750 euros por cada reunião. Foi também nesta reunião que se consolidou a mudança da sede cedida por Isaltino Morais.

Ao longo de 2023, pela leitura do relatório de actividades, a OVIA destaca-se pela realização de visitas, encontro e conferências, com a China a deter um particular destaque, não havendo qualquer avaliação do desempenho, excepção aos ‘louros que auto-atribui por, “em estreita coordenação com a Câmara Municipal de Oeiras”, ter facilitado “o projecto de construção da Cidade do Padel”, um projecto desenvolvido por um consórcio do empresário Filipe de Botton e Cristiano Ronaldo, na zona do Jamor, que tem estado a ser contestado por causa do ruído.

As contas de 2023 mostram um perfil similar ao do ano anterior: as vendas e serviços prestados, sobretudo por via de quotas e do patrocínio da Reformosa até duplicaram, passando de quase 122 mil para perto de 250 mil euros, mas foram acompanhados por um incremento substancial de gastos com pessoal, que se cifrou nos 161 mil euros, quando fora de 68 mil no ano de 2022.

Mas a OVIA quis mais – o que, pelo seu historial, significará que quer mais para gastar em pessoal. E tratou de obter dinheiro fácil, dirigindo-se, obviamente, a Isaltino Morais. E com uma eficácia e rapidez assombrosa. No passado dia 20 de Maio, Martins da Cruz, em nome da OVIA, escreveu a Isaltino Morais, dizendo que “tendo em consideração o apoio institucional e o prévio compromisso por parte do Município para contribuir para os objectivos da associação” lhe pedia “349.000 euros para 2024”.

O antigo embaixador avisava o presidente da autarquia: “Permito-me recordar a desejada urgência na aprovação municipal do Pedido de Apoio do qual depende a prossecução da actividade da OVIA, desejada e fomentada aliás pela própria Câmara Municipal de Oeiras”  

A sintonia não podia ser mais perfeita. A carta só chegou à autarquia de Oeiras no dia 24 de Maio, sexta-feira, mas Isaltino Morais não perdeu tempo, e na quarta-feira seguinte feita uma informação com uma proposta de apoio com mais mil euros de acréscimo ao que Martins da Cruz pedira, ou seja, 350 mil euros. Na informação, a que o PÁGINA UM teve acesso, Isaltino Morais propôs ao Executivo Municipal que os pagamentos fossem de periodicidade trimestral, com efeitos retroactivos, isto é, desde Janeiro deste ano.

Isaltino Morais e Martins da Cruz: antigos colegas no Governo de Durão Barroso, continuam juntos, e agora unidos por um cheque de 350 mil euros de dinheiros públicos para, de forma redundante, atrair investimento.

O resto já é História: e anteontem, o apoio à OVIA foi aprovado em reunião de Câmara com 10 votos a favor e apenas um voto contra da coligação Evoluir Oeiras, constituída pelo Bloco de Esquerda, Livre e Volt Portugal. O cheque chegará dentro de momentos…

O PÁGINA UM colocou um conjunto de questões tanto a Isaltino Morais como a Martins da Cruz. Silêncio absoluto.


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