Correio Trivial

Os imigrantes e o discurso de ódio

black and white abstract painting

por Vítor Ilharco // Junho 8, 2024


Categoria: Opinião

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No fim da década de sessenta do século vinte iniciei a minha actividade profissional como jornalista do “Jornal do Fundão”.

Um Jornal “de província” que era um marco no jornalismo nacional.

Numa época de censura feroz era a voz dos resistentes enfrentando um Poder todo-poderoso e antidemocrático.

Nomes como José Saramago, Alçada Batista, Artur Portela Filho, Carlos Porto, José Carlos Vasconcelos, José Rabaça, Fernando Luso Soares, Armindo Mendes de Carvalho, Alexandre Babo, Isabel da Nóbrega, Luís Sttau Monteiro e tantos outros, com as suas Crónicas, faziam tremer o Regime Fascista que nos governava.

Acima de todos, António Paulouro como líder incontestado pela sua extraordinária coragem, verticalidade, cultura enciclopédica e respeito total pela democracia.

Com Sede num concelho de casas vazias e aldeias desertas, pelo fenómeno da emigração, uma elevada percentagem da edição do “Jornal do Fundão” seguia para os milhares de assinantes, emigrantes espalhados por todo o mundo.

O “Jornal do Fundão” dividia as suas páginas pela análise da política local, nacional e internacional com as informações da pequena notícia das pequenas aldeias do concelho.

Era por ele que os emigrantes recebiam as notícias dos seus familiares e conterrâneos e todos os portugueses sabiam muitas das notícias que a imprensa nacional calava, fosse por conveniência, fosse por medo.

Toda a Redacção tinha a missão de receber e rever as informações dos inúmeros “correspondentes” do Jornal que, a partir da sua terra, nos faziam chegar as notícias e, por vezes, dar-lhes um “cunho jornalístico”.

Sabíamos que era um trabalho importante porque eram essas as páginas que os leitores, no estrangeiro, liam em primeiro lugar.

As centenas de cartas que chegavam ao jornal, muitas publicadas na rubrica “Cartas ao Director”, eram a demonstração da sintonia entre a Redacção e estes leitores especiais.

Daí que eu tenha um apreço único, de mais de cinquenta anos, por esses homens (e mulheres) que deixaram as suas terras para irem “a salto” (sem documentos e passando ilegalmente as fronteiras) para países longínquos, sem dinheiro no bolso, sem trabalho garantido, sem conhecerem a língua falada nesses locais.

Maior prova de heroicidade (ou loucura) não conheço.

A alternativa era a fome na sua terra ou a obrigação de irem lutar numa guerra com a qual não concordavam.

Oriundo de família de “fracos rendimentos”, mas com refeições garantidas, e tendo optado por fazer a tropa, não emigrei, mas quando falo com um emigrante, e muitíssimos deles tornaram-se gente de sucesso, de muito sucesso, sinto sempre uma enorme admiração e respeito por eles.

Daí que uma raiva me cresça no peito quando ouço compatriotas meus, alguns deles descendentes desses emigrantes de que venho falando, a manifestarem-se contra os imigrantes que, hoje, nos batem à porta.

E a quererem pôr regras que, na prática, os impediriam de entrar no país.

As mesmas regras que criticávamos a franceses, alemães e ingleses.

green plants

Exigem Contratos de Trabalho, sabendo que, nos países de onde são oriundos, os Consulados Portugueses nem visto lhes dão para poderem entrar no nosso.

Querem saber se têm dinheiro para alguns meses de estadia em Portugal quando a realidade, de todos conhecida, é que a maioria não tem o suficiente para o dia-a-dia no seu país.

Numa palavra, têm como objectivo impedir a entrada de gente a quem tanto devemos.

Sentados nas cadeiras dos gabinetes de Lisboa não têm a possibilidade de visitar, por exemplo, a zona Oeste do nosso Portugal.

Caso contrário abririam a boca de espanto com as muitas centenas de hectares de terrenos que, há meia dúzia de anos, eram terrenos incultos e cheios de silvas e que, hoje, produzem toneladas de morango, batata-doce, alface, etc. graças ao esforço de milhares de imigrantes.

É passar por esses campos e ver centenas de homens (principalmente) num trabalho duro, a tornar rica uma terra improdutiva durante décadas.

Sem haver, ali, um único português!

À noite, estes trabalhadores ficam às dúzias em casas planeadas para quatro ou cinco pessoas.

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Não são os “bidonville” habitados pelos portugueses em meados do século passado, mas deveriam ser proibidos pelos mesmos políticos que condenam a sua entrada no nosso país.

Esta gente, com os seus descontos para a Segurança Social, acaba, ainda, por ajudar na garantia da reforma dos nossos idosos nas próximas décadas.

Tudo isso é sabido.

Mas, todos os dias, ouvimos os mesmos discursos, os mesmos insultos, as mesmas ameaças por parte de alguns políticos que têm como única regra o incentivo ao ódio, o racismo e a xenofobia.

Um nojo de gente!

Vítor Ilharco é assessor


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