RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Pescueza: Esta terra é para velhos

por Rui Araújo // Junho 13, 2024


Categoria: Exame

minuto/s restantes


Nesta reportagem, Rui Araújo dá a conhecer os habitantes e as memórias de Pescueza, uma vila espanhola sem lares de idosos.

A vila tem 152 habitantes. E praticamente metade tem mais de 65 anos de idade.


Península Ibérica: o perigo é o despovoamento.
(Foto: Rui Araújo)

“VERSIÓN EN ESPAÑOL:

“Pescueza, esta tierra es para viejos. Soledades en la frontera lusoespañola”

A meio da manhã orvalhada, dou com dois velhos janotas sentados num banco do pátio do Centro de Dia de Pescueza. Meto conversa com o do panamá alvo. Dá ares de ser um homem bonachão. O outro parece ser de poucas falas.

—  Seja bem aparecido, cavalheiro!

Ángel Martín Sánchez, por alcunha Tío Ángel, é poeta. Sorri-me. Tem 96 anos cumpridos. Diz-me de ímpeto que sabe de cor e salteado dezenas de poemas do seu conterrâneo José María Gabriel y Galán (1870 – 1905).

O poema dele de que eu mais gosto é “El Embargo”. Quer ouvir? — indaga, com boa disposição.

O ancião mede-me de alto a baixo e, sem esperar pela resposta, põe-se a declamar o poema em castúo, um dialecto da Estremadura espanhola.

— Señol jues, pasi usté más alanti… (Senhor juiz, passe mais adiante)

Saboreio a recitação com deleite, que remédio. Dou comigo a pensar nos meus amigos poetas: o moçambicano Virgílio de Lemos (1929 – 2013) e o galego Alfonso Armada (Vigo, 1958).

— Tenho uma memória fantástica. Sei uma data de poesias. Não tenho é aqui a carteira comigo. Dava-lhe os títulos todos…

— É tudo de José María Gabriel y Galán?

— É quase tudo dele. É pois…

— Antonio Machado, Federico García Lorca, Rafael Alberti, Rosalía de Castro…

— Não. Não…

Encontro com Tío Ángel, o poeta (à esquerda na foto), e Tío Isidoro, o irmão ex-Guardia Civil.
(Foto: Rui Araújo)

Por descargo de consciência, opto por cumprir o papel de jornalista. E inicio a singular entrevista. O meu parceiro, Rui Pereira, profere um lacónico “Estou a gravar”, os olhos postos no viewfinder da SXS. Ele sabe, bem entendido, que não podemos perder tempo.

— Nascido e criado em Pescueza. Éramos agricultores humildes. Lavradores. O amanho da terra. As árvores, a apanha das bolotas e essas coisas todas quando deixámos de ir à escola. Também gostávamos do gado. Tínhamos porcos para as matanças, para essas coisas, e ainda uma junta de vacas e isso.

Em Pescueza, “todos encarreiravam para a lavoura e a pastorícia” (diria Aquilino Ribeiro depois de “El hombre que mató al diablo” na Novela Semanal, em Madrid. O romance “O homem que matou o diabo” só foi publicado em português alguns anos depois.).

Uns anos depois, Aquilino Ribeiro publica em Portugal “O homem que matou o Diabo”
(Foto: Captura de ecrã)

Tío Ángel era um aldeão mais igual aos outros. O seu mundo era lavoura e o gado. E a leitura. A poesia, sobretudo. Ele devorava poesia.

A sua casa não era das mais ricas do lugar. Era apenas uma família remediada e honrada que não aspirava a mais nada do que a ser isso mesmo…

— Era feliz aqui?

— Pois era. E continuo a ser feliz na minha casita… — diz a sorrir.

Um velho feliz… — exclamo ou pergunto, pouco importa.

— Sim…

A reposta, decididamente, não me convence. Experimento de novo.

—  Um velho feliz…

Ele não se ofusca com a minha insistência.

— A verdade é que a solidão me mata! Morreu-me a mulher há quatro anos. Estávamos casados há 65…

Escuto, calado. Não tenho outra saída. O ancião segura uma bengala, que mais parece um cajado.

Casados, eh! E fomos muito felizes! Foi a única rapariga de quem gostei. Éramos os dois daqui. E já está… — conclui.

Palavras do jornalista Raul Brandão (1867 – 1930) a propósito de outro amor da mesma casta: “Um dia destes temos de nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir… Antes, porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida.”

Daniela Goméz Martín, a mulher de Tío Ángel, partiu primeiro. Faleceu em 2017.

 — O que é a morte para o senhor?

 — O que é a morte para mim? Eu não devia dizer isto, mas há aqui pessoas… Prefiro a morte. Sim. Porque aquilo não é viver. Viver assim não é viver. Terem de dar-te a comida, terem de lavar-te, terem de…

Ángel é homem de carácter. Respondo-lhe com um silêncio amargo. A velhice deforma-nos. Pior: a dependência. Tal como a solidão imposta ou, por outras palavras, a morte social.

Isidoro, o seu irmão mais novo, nem sequer pestaneja. Há separações dolorosas. E há a morte, que dá plenamente sentido à vida e não devia deixar ninguém indiferente.

— Vidas assim, não lhes dou nenhum valor. Isso não é viver. Quando chegar a esse estado, não vou suicidar-me, mas…

— E qual é a maior alegria, hoje, para si?

Tento cumprir o papel de jornalista, mas é caso para dizer “Aqui-d’el rei”. A pergunta é incómoda. Ignoro qual será a reacção. Feitas as contas, o velho engoia-se como pode no banco, pensativo.

— A maior alegria para mim seria uma companheira, pelo menos, durante a noite…

Em quartos separados… — pergunto ou insinuo com um sorriso sardónico nos lábios.

Isso já não faz falta… — profere.

— Nunca se sabe… — retruco em tom de provocação.

O idoso espraia o olhar pelo pátio vazio e desata a rir à gargalhada. De facto, é poeta mas não tem cara de pinga-amor.

— Mas o que é que queres dizer com isso?

Há sempre coisas dignas de serem saudadas, creio.

— Ouve lá, vou dizer-te uma coisa…

— Diga lá.

Eu digo. Para o que é que eu quero uma mulher? É para companhia. É para falar. No que diz respeito ao sexo, nada.

E o amor?

Homem, o amor é o melhor que há se é um amor verdadeiro. É o melhor. Um amor bom. Fui muito feliz com a mulher. Muito feliz porque fizemos uma boa combinação. Eu é que mandava lá em casa. Ela fazia o que queria em matéria de gado. Havia momentos em que me zangava, mas… A solidão mata-me. Há quatro anos morreu-me a mulher. Estávamos casados há 65 anos. Casados! Pois é… — conta Ángel Martín Sánchez.

Ele arqueia os ombros e mete-se a rir. Deixo-o dar largas à alegria.

— Este português é danado para a brincadeira…

Os poetas têm sempre razão. Topo a frase anónima pintada em letra amarela no banco roxo do meu querido artista. “O prazer é a flor que floresce, a recordação o perfume que perdura”. Seja… Mas, nada é eterno e como escreveu Raul Brandão “o que aqui conserva um carácter eterno são as árvores, os montes e o trabalho no campo e nas eiras, que à força de ser transmitido — sempre os mesmos gestos — adquiriu uma beleza extraordinária, entranhada até ao âmago nos vivos e nos mortos.”

É assim. Tío Ángel, o poeta de Pescueza, partiu umas semanas depois de eu o entrevistar. Partiu porque as pessoas só morrem mesmo quando já ninguém se recorda delas.

ESTA TERRA É PARA VELHOS

Pescueza, uma vila espanhola sem lares de idosos.
(Foto: Rui Araújo)

 Pescueza, Província de Cáceres, Estremadura.

À primeira vista este povoado rústico do século XV parece igual a tantos outros da planura envelhecida e olvidada, mas não é: aqui, não há lares de idosos. Os velhos vivem nas casas onde ergueram telhado…

Mais uma vila que parecia estar condenada a desaparecer como tantas outras dos dois lados da raia…

Hoje, Pescueza já só tem 152 habitantes. E praticamente metade tem mais de 65 anos de idade.

Louvado seja o programa “Quédate con nosotros” (Fica Connosco) que foi criado para impedir a morte (absurda da vila) e, do mesmo modo, dar uma vida melhor  porventura mais digna  e mais autónoma  aos seus velhos.

 “Quédate con Nosotros” é um projecto que, ao fim de 10 anos de trabalho, evidenciou simplesmente o interesse que tem aquilo a que chamamos agora a Espanha esvaziada as zonas despovoadas, o mundo rural… de… de se criar uma nova organização dos serviços de proximidade. — explica Constancio Rodríguez Martín, Presidente da Associação Amigos de Pescueza.

A ideia (inovadora!) é não mandar os velhos para os lares. Não os há, aliás, aqui. E não são precisos!

Por aqui dizem com orgulho que o Festivalino é o festival mais pequeno do mundo. Foi criado em 2008. Desde então, passaram por Pescueza grandes artistas de Espanha como La Oreja de Van Gogh, Amaral, Manuel Carrasco ou Revolver.

A prioridade era dar vida à povoação e, por outro lado, fomentar a  interacção com os idosos.

Há três anos apareceram no Festivalino mais de 10 mil pessoas.

A Associação dos Amigos de Pescueza começou, entretanto, em 2011 a implementar com o apoio da Junta da Extremadura, a União Democrática de Pensionistas (UDP) e o município, o modelo de uma terra sem lares. Nem mais!

— A gente… A gente da nossa vila precisa de continuar a viver onde viveu toda a vida. Criarem à sua volta o lugar mais decente para continuar a desfrutar não só da casa, não só da localidade, da loja, dos vizinhos, dos amigos e da horta. — acrescenta Constancio Rodríguez Martín.

Pescueza permitiu a muitos idosos permanecerem nas suas casas, o lugar onde sempre viveram.

Facilita-lhes a vida. E de que maneira…

Aqui, um corrimão nas paredes das casas.

Ali, um passeio azul para os andarilhos com anti-derrapante.

Tudo isto nos itinerários mais frequentados: igreja, consultório e centro de dia.

Pescueza – mais uma povoação confrontada com o despovoamento…
(Foto: Rui Araújo)

Pescueza é  segundo o Banco de Espanha  um dos 158 municípios da região que podem desaparecer a longo prazo se não for invertida a dinâmica populacional.

Há 3 mil e quatrocentas localidades espanholas confrontadas, hoje, com o mesmo problema.

 Dizem que o primeiro sintoma da morte de uma localidade é o encerramento da escola. Quando se fecha a escola começa a haver falta de quê? De crianças! Não há crianças. O sintoma seguinte é quando os comércios desaparecem. O lugar tem cada vez menos gente que recorre aos comércios, que, por sua vez, deixam de dar lucro. E depois, definitivamente, o derradeiro sintoma, o mais grave, aqui, na nossa região, é o encerramento dos cafés porque são o centro social e o ponto de encontro das pessoas. São uma necessidade nas povoações. Quando já não há pessoas deixa de haver serviços públicos como a escola, os centros de saúde, o banco e os Correios. Os sintomas da morte definitiva, quando deixa de haver serviços públicos ou município, serão esses. — afirma José Vicente Granado Granado, Director do SEPAD (Servicio Extremeño de Promoción de la Autonomía y Atención a la Dependencia).

Centro de Dia de Pescueza.

Meia manhã de mais um dia como os outros.

Só aparece, aqui, quem quer ou quem precisa de algo.

O local está aberto das 8:30 da manhã até às 9:00 ou 9:30 da noite. E adapta-se às necessidades de cada pessoa…

Montaña Llanos Llanos prepara o almoço do pessoal e o petisco de hoje promete: “patatas marineras” (batatas com gambas, mexilhões, ameijoas e peixe) e “de segundo”, como se diz em Espanha, bifinhos de porco.

— O maior desafio que temos, aqui, neste centro é que as pessoas permaneçam o maior tempo possível na sua casa. Para isso, prestamos-lhes uma série de serviços como, por exemplo, as refeições, os duches, podem vir cá tomar duche, o serviço de lavandaria, também os acompanhamos ao médico e às consultas, não só na vila como nas cidades que estão perto, e, para tal, dispomos de este projecto “Fica Connosco”, que consiste em que eles permaneçam, enquanto for possível, nas suas casas, porque aquilo que as pessoas de idade desejam é permanecer o maior tempo possível na suas próprias casas. Há muitas mulheres que perderam o companheiro e é ainda o sentimento de solidão. Nós, aqui, também as acompanhamos nesse processo de solidão que passa, por vezes, pelo luto, um pouco para… não ficarem, se calhar, sem ninguém, sem qualquer apoio… É gente que  não tem filhos e, para isso,  temos também uma psicóloga que vai ainda a casa das pessoas e as vai apoiando. — Sandra Díaz García, Directora do Centro de Dia.

Todos os dias há actividades : aulas de ginástica (como a de esta manhã), ateliers de nutrição ou de fabrico de sabão, sem falar nas sessões de emoção, que é como quem diz da memória.

A Associação Amigos de Pescueza presta agora auxílio a 30 e tal idosos.

O sol está a pino.

Daqui a bocado é a hora do almoço no Centro de Dia.

No entrementes Herminia Sansón Martín meteu de arrancada para o olival à saída da vila. A sós com os seus botões, claro… Tem 82 anos. Vive em casa sozinha. Perdeu o marido há 21.

Hoje é dia de cortar o “moito”, o pé-de-burro, os rebentos das oliveiras mais ramalhudas.

Tem o pé leve mas labutou uma vida inteira de sol a sol — ela… mais o marido, que era operário na Seat, em Barcelona.

Com o andar dos tempos Tía Herminia começou a dar mais valor a estes parcos instantes de paz. E às oliveiras. No ano passado produziu 79 litros de azeite. 

Madre, yo tengo un novio aceitunero,

que vareando tiene mucho salero.

Cuando me ve, me dice:

– Voy a morir por ti.

Madre, yo tengo un novio aceitunero.

¡Aceitunero me gusta a mí!

Dale a la vara,

dale bien, que las verdes

son las más caras

y las negras “pa” mí.

Tiri tiri tiriri.

(NOTA: Amália Rodrigues chegou a cantar “Los aceituneros” em espanhol. A música pode ser escutada aqui).

Pescueza é um povo que sempre viveu da lavra e da pastorícia.

E Portugal ali tão perto…
(Foto: Rui Araújo)

No Centro aberto – que acaba por ser uma autêntica plataforma de serviços – há mais uma actividade: a preparação da azeitona, que tem muito que se lhe diga.

O almoço só é servido à uma da tarde.

Ficamos a observá-los como quem não quer a coisa.

Tía Antonia, de olhos a luzir, tira da memória uma cantiga de amor com um azeitoneiro.

A melopeia sentimental prossegue.

¡ Ay! Me estoy muriendo por ti.

¡ Ay ! Desde que te conocí.

Estando en la aceitunera él me decía

con palabritas dulces que me quería,

se acabó la aceitunera y no lo he vuelto a ver.

Madre, yo tengo novio aceitunero.

¡Ay, que se muere por mi querer!

O segundo serviço é daqui a uma hora, às 14.

A sala de jantar está silenciosa. A euforia do viver não é para aqui chamada…

O Centro conta com 12 auxiliares, uma enfermeira, uma psicóloga, uma cozinheira, um administrativo, um monitor de desporto  e uma directora (que é terapeuta ocupacional) para cuidar dos seus anciãos.

 A atenção é essencial para os idosos porque para além dos cuidados de enfermagem eles precisam de cuidados humanos. Necessitam de ser bem tratados. Com carinho. Com humanidade…

 E a solidão dos anciãos?

— A solidão dos anciãos é uma questão muito delicada que requer muito carinho da nossa parte, muita atenção, muito apoio, para que eles se sintam queridos e saibam que estamos sempre aí para os atender. Nós, aqui, tratamo-los como se fossem da nossa família. Cuidamos das suas necessidades tanto dentro como fora do centro e ainda nas suas casas. Tentamos assumir um papel mais de família e não só de mera assistência. — declara Raquel García Borrero, Enfermeira.

Daqui a bocado é o momento da ocupação útil e, sabe-se lá, espiritual: “la siesta”. Os camponeses madrugam e há hábitos que nunca se perdem…

Tío Isidoro.

Está quase na casa dos 90. Foi militar da Guardia Civil. Meto conversa com o ancião.

O senhor não tem cara de Guardia Civil…

—  Não tenho cara? Mas corpo, sim. (RI-SE) Eu entrei para a Guardia Civil com dificuldade porque não tinha estatura suficiente… De maneira que tive problemas, mas só por ser pequeno. E, por fim, deram-me… Deram-me como apto. Já somos história porque em relação à alegria tenho muito menos porque… a idade não perdoa. Os anos não perdoam. É o que te… Não se escapa ao tempo… E é cada vez, pior. Cada vez, pior. Bem…

—   O senhor pensa na morte?

—   O quê? Sim, penso na morte, mas o que é que eu posso fazer? Ela chegará quando chegar. Não tenho pressa. (RI-SE) Eu procuro viver a vida aqui e mais nada. E é assim!

O tempo é implacável. E de nada serve atamancar o passado.

A vida tem de ser encarada como aquilo que é (no presente!), independentemente do temperamento e das quimeras de cada um.

Muitas vezes o pior até nem é a regressão.

É a gente acabar no ermo.

Tío Pío – a solidariedade da raia é feita de gente assim…
(Foto: Rui Araújo)

Tío Pío.

78 anos. Solteiro. Nascido e criado em Pescueza.

Ajudou muitos portugueses há para aí 60 e muitos anos, quando era guardador de rebanhos.

 Quando tinha 15 anos… 15 anos, 14, 15… costumavam aparecer portugueses de noite por aí, pelo campo, levavam 20 ou 25 quilos de café às costas. A tremer de frio. Passavam frio. A água chegava-lhes até aqui acima. Molhavam-se bem molhados… Eu dormia com o gado no campo e os que passavam, “vem cá”, levantava-me, fazia uma fogueira, já tinha a lenha preparada para fazer uma boa fogueira, aqueciam-se…  recorda o velho pastor, Tío Pío Ramos Peréz. 

Nos anos da fome, “los años del hambre” (como ainda se diz cá), os contrabandistas portugueses corriam estas terras malfadadas e governavam-se. Traziam café e levavam açúcar, fazenda e bolachas para as suas aldeias.

Sem gente no interior, não somos nada…
(Foto: Rui Araújo)

Verdade verdadeira, da fraternidade de antigamente já só resta a memória dos velhos, que sabem o que custava a vida. Mas o pior para esta gente ainda é capaz de ser a solidão…

 A solidão é o pior que há. Metes-te em casa à noite, sozinho… Penso muito de noite… Pois, penso em tudo. Que pode acontecer-me qualquer coisa. Que pode acontecer qualquer coisa e coisas assim, mas isso depois passa…

— E tem um sonho? Uma quimera?

— Pois, não. É um dia de cada vez e mais nada. É um dia de cada vez e mais nada.

Tío Pío é um homem só.

A solidão imposta  ou a morte social  é sentida como um castigo.

 A solidão é um dos grandes flagelos do século XXI. É agradável se a pessoa a escolhe, é uma opção. Mas pode ser tremendamente dura quando é uma obrigação. E, hoje em dia, há cada vez mais idosos… Há povoações com pouca população e a solidão é, muitas vezes, uma obrigação. Creio que recebo mais deles do que lhes posso dar, mas o mais difícil, quiçá, seria ter consciência dessa solidão, quando a pessoa não a quer… É bonito. É gratificante, mas o mais difícil seria talvez isto: sabermos que essa pessoa não quer essa solidão e tem de lidar com ela dia após dia…

— A parte humana é a prioridade?

— Sim, claro. Sim, sim, sim… É o motor do projecto, sem dúvida. — conclui Noelia Galán, Psicóloga.

Duas e meia.

É trigo limpo.

Tío Isidoro, que estava à espera de boleia para ir dormir uma soneca a casa, sai do Centro de Dia.

Trini, a auxiliar, faz de motorista do carro eléctrico da Associação Amigos de Pescueza. E de amiga ou confidente do velhote…

Centro de Dia. 

Mais uma história que é ao mesmo tempo a da Península Ibérica.

 Eu tinha uma loja e o meu marido era sapateiro. Ele trabalhava no piso de cima e eu tinha a loja em baixo. Os portugueses apareciam com o café de mochila às costas e nós comprávamos-lhes três ou quatro quilos porque não podíamos comprar muito… Eu é que o vendia. Moía o café e depois vendia-o  às pessoas por cinco ou 10 pesetas. E açúcar também 10 pesetas ou cinco porque havia falta de açúcar. E os portugueses vinham de noite. É isso que quero dizer-lhe. Avisavam logo em que semana vinham e… vamos lá a ver… tínhamos a porta fechada e a luz apagada… para a Guardia Civil… se aparecesse… não se dar conta que estávamos ali.  Iam para cima e fechava-se a porta. Eu ficava em baixo, cheia de medo, e o meu marido consertava o calçado. E uma vez encomendaram-lhe camisolas interiores de Inverno. E um deles vestiu cinco camisolas, umas em cima das outras. Porque se as levassem vestidas não ficavam sem elas…

— São os únicos portugueses que…

— … lá para os lados da raia.

— Mas são os únicos que a Senhora conheceu…

— Sim. Sei como se chamam e tudo…

— Como é que eles se chamavam?

— Um chamava-se João… E outro José Domingos e outro Felizário ou Feliz…

— Felizardo?

— Felizário e João era o irmão dele. Era o irmão dele… Tía Constantina Rodríguez Llanos, 94 anos, Comerciante aposentada.

Os contrabandistas não andavam em magotes, mas precisavam de ter sorte.

Seja como for, numa hora de aperto espanhóis e portugueses — nos dois lados da fronteira — eram solidários.

 Espanha é um país com inúmeros povoados pequenos, são localidades e comunidades, que respondem à mesma idiossincrasia que Pescueza. Pensamos, por outro lado, que Portugal, é um país que partilha connosco um monte de similitudes culturais, sociais e económicas muito importantes, mas também é possível fazer com que este projecto arranque e tenha um enraizamento profundo em Portugal. A partir de “Quédate con Nosotros” da Associação Amigos de Pescueza, fazemos uma proposta franca, sincera e comprometida para que qualquer iniciativa que consiga atrair o… …o interesse das comunidades de Portugal na implementação de um projecto semelhante na sua… …o seu quotidiano, em desenvolver um novo cenário do que falamos há tanto tempo… — propõe Constancio Rodríguez Martín, Presidente da Associação Amigos de Pescueza.

Ignoramos quase tudo do viver e morrer destas pessoas, dos seus sentimentos e costumes (como diria o mestre Aquilino Ribeiro).

Fim da viagem a Pescueza. Terra de velhos extraordinários…

Amanhã, chove a potes.


Reportagem originalmente publicada na CNN Portugal e emitida na TVI em 16 de Fevereiro de 2022.

O texto também foi publicado em Espanha no jornal FRONTERAd (Madrid).

Fotos de Rui Araújo


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.