O PÁGINA UM peregrina, desde há mais de dois anos, num pântano que envolve duas figuras gradas da actual política portuguesa: a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e o actual vice-presidente da bancada social-democrata na Assembleia da República, Miguel Guimarães. Há dois anos, como bastonários da Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente, decidiram ser bons samaritanos e apelaram à bondade dos portugueses para apoiarem na luta contra a pandemia e depois fartaram-se de dar a cara enquanto distribuíram equipamentos de protecção individual e materiais diversos a instituições de solidariedade social e mesmo a hospitais.
Uma investigação do PÁGINA UM quis ver as contas e descobriu, depois da obtenção da documentação por via do tribunal administrativo, que afinal, além de questões éticas – quase toda o financiamento veio de farmacêuticas, mais de 1,2 milhões de euros, não declarados no Portal da Transparência e Publicidade –, toda a campanha esteve assente em irregularidades e ilegalidades gritantes, a começar pelo facto de a conta receptora dos donativos ser titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, e a desembocar em fugas ao fisco (não pagamento de imposto de selo), em facturas falsas, em declarações falsas com repercussões fiscais e em condições propícias para a criação de um ‘saco azul’ de mais de 968 mil euros.
Desde o processo no Tribunal Administrativo de Lisboa para acesso aos documentos contabilísticos, iniciado em 2022, a Ordem dos Médicos garantia que todas as iniciativas da campanha solidária estavam a ser alvo de uma auditoria da consultora BDO, e que seria divulgada quando concluída. Mas nunca foi. E só agora, com uma nova intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa, já este ano, surgiu afinal a tal auditoria.
Não quero, desde já, revelar os pormenores desta auditoria da BDO, mas sempre poderei dizer que se fosse apresentada não por uma auditora registada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) mas por um aluno da cadeira de Auditoria, o ‘chumbo’ seria a única opção sensata. Por um simples ‘pecado original’: a auditoria ignora olimpicamente – com intenção ou negligência – que a conta bancária era de três pessoas (Guimarães, Martins e Alves) e não de nenhuma das Ordens profissionais, e por isso nem sequer revela (como deveria) que todos os fluxos financeiros se concentravam aí, apesar de a facturação seguir para a Ordem dos Médicos.
A intenção desta auditoria – que não se sabe sequer se foi paga, porquanto o contrato nunca foi publicitado no Portal Base –, plasmada naquele texto a que o PÁGINA UM teve acesso (apenas após nova intervenção junto do Tribunal Administrativo), parece mais do que óbvia. E daí termos pedido esclarecimentos e apontado factos à BDO para obter comentários. E perante a recusa desta sociedade de auditoria em comentar alegando “segredo profissional”, reagi, respondendo que o que estava em causa eram “evidentes erros primários de auditoria com influência numa avaliação independente e rigorosa”, acrescentando que enviaria “as grosseiras falhas à CMVM para os efeitos legais atendíveis”, concluindo, por fim, que “as auditorias não servem para ‘lavar’ ilegalidades”. Na verdade, estando a notícia ainda em preparação, a CMVM será obviamente contactada.
A BDO não apreciou esta argumentação legítima de um jornalista, em avaliar o seu trabalho (que tem repercussões públicas), e aparentemente instruiu – e diz-se aparentemente porque não me foi remetida procuração – o advogado Pedro Guerra Alves, detentor da cédula profissional 52266L, a escrever-me. Como ignorava que uma das funções de um advogado é ameaçar com processos judiciais um jornalista no exercício da sua actividade, e como o conteúdo da sua carta é claramente uma tentativa de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar – sendo uma obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos, conforme preconiza o Código Deontológico dos Jornalistas, no seu ponto 3 –, tomei a decisão de revelar o seu conteúdo.
E comunicarei formalmente esta ameaça do advogado Pedro Guerra Alves à Ordem dos Advogados, à Entidade Reguladora para a Comunicação Social e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (agora com uma nova composição), ponderando, se este tipo de pressões ilegítimas se mantiverem, informar as organizações internacionais que monitorizam a liberdade de imprensa nos diversos países.
O original pode ser lido AQUI.
Exmo. Senhor Pedro Almeida Vieira,
Encarregou-nos o nosso cliente BDO & Associados Sociedade de Revisores Oficial de Contas, Lda. de informar V. Exa, de que, em virtude do teor das suas comunicações anteriores, todos os contactos com a BDO ou seus colaboradores devem passar a ser efetuados através da nossa sociedade.
A atuação da BDO & Associados, SROC, pauta-se sempre pelo estrito cumprimento da lei, pelo que nos reservamos o direito de reagir em conformidade sempre que a conduta profissional da BDO & Associados, SROC, for posta em causa, nesse sentido não serão admitidas mais afirmações como as constante [sic] do ultimo mail de V. Exa. sob pena de termos de defender em sede próprio o ressarcimento de eventuais danos reputacionais que possam decorrer.
Por outro lado, recomendamos a V. Exa. que antes de emitir qualquer opinião, deve proceder ao estudo dos temas, uma vez que as questões colocadas por V. Exa. evidenciam graves falhas no que respeito ao conhecimento do regime legal ou regulatório aplicável a atividade da auditoria, desigualmente no que respeitas [sic] as regras da sua supervisão e de execução dos trabalhos.
Com os nossos melhores cumprimentos,
Best Regards,
Pedro Guerra Alves | Advogado
E-mail enviado às 17h27 de 18 de Junho de 2024
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