Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, é publicada a reportagem que fez a capa do número 1 da mítica Revista “Grande Reportagem”. Com texto de Rui Araújo e fotos de Luiz Carvalho.
«Há vinte e tal anos que estou aqui e nunca vi ninguém falar com tanta gente na prisão…»
A surpresa do Chefe dos guardas da Penitenciária é exemplar. Universo carceral significa mistério. E se as autoridades levantam hoje a cortina é porque a instituição está muito doente…
Prisões a abarrotar, insatisfação generalizada, medo quotidiano: o cocktail tornou-se explosivo…
«Se o número de presos continuar a aumentar, vai ser o que Deus quiser…» Um responsável da Administração prisional é categórico: «As cadeias portuguesas estão a rebentar pelas costuras. O clima de tensão é preocupante!»
Só por si, os números são assustadores. Em menos de um ano a colónia penal aumentou 27%, ainda mais do que a inflação. Há hoje em Portugal 8.400 presos quando a capacidade das prisões é de 6.800.
Como tudo está apinhado de gente, dorme-se onde se pode: nas casas-de-banho, em Monsanto; nos corredores, em Faro; no chão, em Viana do Castelo.
Vão ser reabertas as antigas prisões comarcãs de Braga, Covilhã, Monção, Odemira, Portimão e até um pavilhão especial para presos preventivos na cadeia de mulheres, em Tires. O próprio ministro da Justiça, Rui Machete, não hesita em pedir aos militares alguns quartéis emprestados.
Vão-se tapando os buracos. Adia-se a resolução do problema. O mesmo responsável descreve-nos assim a realidade: «Os tribunais estão desorganizados, os juízes são irresponsáveis, a lei prisional não é exequível e o novo Código estende demasiado a noção de criminalidade.»
As prisões «3 estrelas» de ontem — se as houve — tornaram-se definitivamente as pensões da amargura de hoje. E se não há boas prisões, como tendem a demonstrar os estudos sobre a reclusão prisional, também não pode haver bons guardas.
«Vigiados por uma Administração hierarquizada, executores dóceis de decisões que muitas vezes lhes escapam, correias de transmissão de interesses dominantes, os guardas prisionais só dispõem de uma ínfima margem de manobra para dar à sua tarefa um toque pessoal», dizem os sociólogos.
Os guardas são a prisão. Bem entendido, os presos fazem a distinção entre os guardas «beras» e os «porreiros». Guardas que também são reprimidos por uma Administração, obrigados a participar no «esquema», no uniforme e no quotidiano do refugo da sociedade. Tornou-se trivial sublinhar, com um pouco de miserabilismo condescendente, que o guarda passa, em regra geral, mais tempo na cadeia que o preso médio. É muito provável. Contudo o que faz também do guarda um recluso não são os ferrolhos, as grades ou os muros. É o desdém, é a rotina e é, sobretudo, o medo: o facto de haver um guarda para cada 20 presos é uma explicação plausível… , mas não será de forma alguma a única.
Face às enormes carências de efectivos — um guarda chega a trabalhar mais de 62 horas por semana — a Administração pública improvisa soluções. Recentemente foi criado pelo Governo um quadro especial de «vigilantes tarefeiros», medida que o próprio ministro Rui Machete reconhece ser ilegal. «Até agora era preciso morrer um guarda para entrarem mais alguns…», desabafava um quadro dos Serviços Prisionais ao ministro da Justiça, na cadeia de Paços de Ferreira.
Augusto José Mendes Rodrigues Ramos, 32 anos, 4.º ano da escola industrial, já foi sucessivamente empregado de escritório, fiel de armazém, comerciante por conta própria e desempregado. Depois de um estágio de três semanas, ele é hoje um dos 17 tarefeiros que trabalham no Estabelecimento Prisional de Lisboa, a Penitenciária.
O seu sonho era ser polícia de choque, mas quando quis matricular-se já não tinha idade. Virou-se para a prisão porque assim estaria ao «serviço do Estado» e poderia aplicar os princípios do «Antigamente».
Ramos tem consciência de que há duas partes distintas nesta «selva»: «de um lado, estão os guardas; do outro, estão eles…» E conclui: «o vigilante prisional, mesmo tarefeiro, tem de ser um indivíduo humano, 100% humano. Temos uma profissão como qualquer outra!»
Vergonha e culpabilidade. Dois sentimentos. Um drama para muitos guardas. Entre a missão de protecção da sociedade por 31.000$00 [escudos] mensais e o estatuto de «homens do lixo» mais ou menos contaminados pelo Mal que frequentam — é assim que os vê o imaginário popular — há uma grande diferença. «O guarda tem vergonha de si próprio. Sabe que o seu trabalho é guardar a ‘escória’ em vez de educar.» Esta opinião dos sociólogos é também partilhada pelo subchefe Carlos, guarda da Penitenciária há 21 anos: «As prisões portuguesas não são solução. Não há condições aqui para que um homem saia recuperado. Às vezes, vêm para cá e ainda aprendem mais do que trouxeram lá de fora. Não há dúvida que isto, para quem gosta de lidar com as pessoas e tenta tirá-las já recuperadas lá para fora, não é o sítio indicado. Além disso um guarda prisional é um escravo!»
As tarefas «nobres» foram atribuídas a outros. Aos psicólogos, que não há. Aos 13 padres (em jargão oficial, Assistentes Religiosos), aos 10 técnicos de educação e aos 62 técnicos de orientação escolar. A lógica da repartição destas tarefas teve como resultado, até há pouco tempo, que o recrutamento dos guardas e a sua formação fossem insuficientes. Se as coisas se processam de forma diferente, hoje, é essencialmente porque há mais desempregados. E crise, neste caso, representa um nível escolar mais elevado. Contudo, ser guarda prisional ainda não é uma vocação.
Evoluímos. Os carcereiros já não «espremem» o preso, vendendo-lhe caro as «graças da prisão» como acontecia frequentemente no século passado. Antigamente, os guardas «agravavam a mísera condição dos infelizes, lançando as mulheres arrebatadas às famílias para o seio das enxovias atulhadas de meretrizes e ladras (…), os homens eram amontoados, empurrados a pau para a sociedade dos assassinos, nessas salas imundas, habitação de misérias infernais», como escrevia Oliveira Martins. Agora, as coisas são diferentes mas violência e corrupção ainda andam de mãos dadas. A instituição prisional continua a ser o organismo de Estado com maior número de inquéritos por ano. Mas como de costume, grande parte dos resultados das investigações acaba por ir parar à gaveta dos ‘Arquivados’, a aguardar produção de melhor prova. Os raros processos conclusivos poucas repercussões têm de concreto.
Rosa Maria, 18 anos: «Uma guarda chamada Dona Prazeres bateu-me dentro da cadeia e depois tive 10 dias de castigo!»
Elizabete: «Eu sou uma boneca nas mãos das guardas, uma vítima. Rir pode ser considerado um delito. Criticar o leite em pó pode significar uma punição.»
Guardas e reclusos partilham alguns vícios. Uns, bebem. A taxa de alcoolismo é bastante elevada entre os guardas. Outros, drogam-se ou mergulham nos «amores proibidos». A homossexualidade entre reclusos é vulgar. Um recluso em cada três pratica a homossexualidade.
Ana Paula, 23 anos, conta que as colegas «fazem» mesmo à frente das guardas. «Da primeira vez que cá estive limpava as celas e aconteceu-me encontrar uma carta de uma colega para uma outra que eu, como mulher, não escrevia ao meu marido. Uma carta escandalosa…»
A cadeia tem as suas imposições. A opção não existe. E a partir daí tudo é possível. A miséria moral ou física. Ou talvez as duas juntas. Com ou sem puritanismo.
Prisão de Tires.
Às seis e meia da manhã, logo a seguir ao despertar cadenciado da sineta, nasce um burburinho que se repercute de andar em andar, se aproxima da cela e acaba por rebentar mesmo atrás da porta. Um, dois ferrolhos giram. A porta abre-se lentamente. A primeira coisa a fazer é respirar. A intimidade paga-se aqui com solidão. Então, fala-se. Fala-se de tudo e de nada. É falar por falar. É falar para esquecer. É tão somente falar para «ser-se gente». Aproveita-se cada segundo porque depois é outra vez tempo de esperar. É o inevitável reencontro com a solidão.
— O momento mais difícil de todos é a noite! A gente sente falta dos nossos. Eu olho para as fotografias das minhas filhas, lembro-me do meu marido e dá-me vontade de chorar. À noite, a solidão dói mais…
Ana Paula puxa do cigarrro e segue com o olhar a nuvem de fumo.
Os dias vão passando, estéreis. Ela já passou várias vezes pelos «deslizes» cíclicos dos reclusos: a revolta, a melancolia, a resignação e… como não espera libertações precárias nem condicionais a curto prazo, apesar de ter pago «grande parte da dívida à sociedade», voltou ao princípio.
— Uma pessoa sai daqui ainda mais revoltada. É o regime da cadeia! Eu não penso voltar, mas isto não favorece ninguém.
Ana Paula, 23 anos menos dois ou três de prisão, aconchega o uniforme, leva lentamente a mão à face para repelir uma lágrima e conclui a sorrir que agora vai ter a ajuda dos pais.
— Eles ainda têm 10 filhos para criar mas estão a pensar comprar um táxi para eu andar durante o dia e o pai durante a noite…
Ao lado do leito, a mesinha de cabeceira improvisada que ela conseguiu arranjar e a fotografia da família. Numa das paredes, mesmo por cima do penico, meia dúzia de recortes amarelecidos pelo tempo. A decoração possível. Publicidade para soutiens. Abraços principescos de Carlos e Diana. Travolta de jeans apertadas. Imagens. Fracos estimulantes de sonho. Míseros sucedâneos de Amor e Sucesso, como manda a lei. É a nivelação da personalidade pela despersonalização total.
As actividades culturais são escassas. As acções de formação escolar ou profissional estão em fase embrionária. Dados oficiais garantem que 70% dos condenados trabalham. Os ordenados são baixos, entre 15 e 160$00 por dia. Trabalhar na prisão é mais uma forma de ganhar uns tostões e de ocupar o tempo do que um meio de obter uma formação profissional válida para a vida livre.
Segundo um técnico do recém-criado Instituto de Reinserção Social, a prisão isola momentaneamente o indivíduo «sem lhe propor qualquer projecto social ou educativo ; depois liberta-o tal como chegou à cadeia, ou ainda em pior estado. Não se tem minimamente consciência do potencial de ódio e violência acumulados pelo preso, que só vai reforçar a sua rejeição pela sociedade.»
Mas como não há estatísticas sobre a reincidência nem estruturas de acolhimento post-prisionais, não se sabe quantos voltam…
Apesar da autorização concedida pelo Director-Geral dos Serviços Prisionais, o chefe dos guardas da Penitenciária proíbe-nos de falar com os presos. Entrego o meu gravador a um deles e peço-lhes que ditem os seus depoimentos. A Verdade fica, provavelmente, entre o silêncio a que o chefe os queria condenar e os excessos do anonimato.
— Isto é a pior repressão que pode existir! É o regime nazista. As pessoas não aguentam isto.
Oiço um ruído metálico. Passos distantes e uma voz que balbucia palavras ininteligíveis: «… comida, médicos.» Pela gravação imagino o aparelho mudar de mãos. O homem tem uma voz grave. Diz chamar-se Carlos Oliveira e estar de passagem. «Sou de Vale de Judeus e aquela cadeia é um buraco. Nós ali não temos direito a nada. Há agressões. Houve reclusos em greve de fome. Temos necessidades a nível da alimentação, da educação e sobretudo de comunicar com lá fora.»
Comunicar com o exterior. A grande maioria, sem dinheiro, relações e a noção exacta dos seus direitos, pouco contacta com quem está lá fora. Os advogados vêm quando é preciso, os familiares quando podem e os amigos quando calha. A correspondência é toda aberta.
O pai de Célia, 22 anos, morreu num desastre. A mãe da rapariga ficou cega. A Direcção da cadeia não a deixou ir ao funeral.
Elizabete, 19 anos: «A minha mãe morreu. Deram-me conhecimento, mas não me deixaram ir ao funeral.»
Isabel Madalena, 26 anos, talvez o caso mais dramático: «Tenho um filho com sete meses internado no Hospital de São José. Só me deixam ir ver o menino quando faço «barulho». Sujeito-me a ir de «castigo». A Directora responde que não dispõe de automóveis suficientes.
Quando um recluso não acata as ordens restam a repreensão verbal e a «tarimba», a cela de castigo. Um cubículo de três metros por dois, escuro como breu, um balde para o que der e vier e uma cama de tábuas. O tempo de castigo varia muito: entre uma hora e um mês.
O preso pode sempre recorrer ao juiz do Tribunal de Execução das Penas, mas muitas vezes prefere apelar para «instâncias superiores». Manda uma cartinha ao senhor Ministro da Justiça ou dá um telefonema à Dona Manuela Eanes. «A Dona Manuela Eanes é que me vai ajudar! Só acredito nela e em mais ninguém…», palavras de Dolores Sequeira, 30 anos, que diz não ver os filhos há dois anos.
Em Outubro, 50% dos julgamentos dos presos preventivos «residentes» na cadeia de Monsanto foram adiados. A percentagem foi ainda maior em relação à Penitenciária. É por esta e muitas outras razões que a população prisional bate cada mês novos recordes. É a crise económica, é o aumento da delinquência, é o novo Código que abrange mais crimes e é ainda a desorganização dos tribunais e o conservadorismo de alguns juízes que hesitam em aplicar penas alternativas.
Com efeito, a aplicação de algumas penas de substituição previstas na Lei poderia reduzir substancialmente o número de presos: o trabalho a favor da comunidade, a prisão por dias livres (ou de fim-de-semana) e a multa.
Entretanto, aplicam-se sentenças inéditas de legalidade duvidosa: um juiz do Porto condenou há semanas dois jovens assaltantes de uma mercearia a trabalhar gratuitamente para o comerciante lesado durante 10 dias — ou irem parar à prisão.
A ruptura é iminente. Monsanto já está fechada aos jornalistas por razões de segurança interna. Paços de Ferreira está à beira da revolta — na opinião de uma educadora do Instituto de Reinserção Social. Faro, Custóias, Coimbra e as demais cadeias não escapam à regra.
Por toda a parte o aumento do número de presos só veio acentuar a degradação da instituição prisional. A degradação da sociedade. Para solucionar os problemas do imediato o Governo vai precisar mais do que de boa vontade. Vontade e mais nada.
CONTAR OS DIAS
06H30 Toca a sineta – Alvorada.
06H45 Abertura das celas e saída para o banho.
07H15 «Conto» (contagem, em calão carceral) das reclusas.
07H30 Sineta.
07H45 «Conto» das reclusas.
08H00 Regresso para as celas ou saída para o trabalho
11H45 Sineta.
12H00 «Conto das reclusas e sineta.
12H15 Almoço.
12H45 Recreio.
14H20 Sineta.
14H30 Regresso para as celas ou saída para o trabalho.
17H00 Regresso do trabalho.
17H30 Abertura das celas.
18H30 Sineta e «conto» das reclusas.
18H45 Jantar.
19H15 Convívio.
20H30 Sineta e regresso para as celas.
20H45 Sineta – Recolher.
TAXA DE HOMICÍDIOS POR CEM MIL HABITANTES
Toda a gente parece preocupar-se com o «aumento da criminalidade. À Direita, os adeptos da doutrina da segurança denunciam o aumento da delinquência e aproveitam para justificar a posteriori os seus apelos para uma justiça mais rija. À Esquerda, argumenta-se com o agravamento das desigualdades. «Cada qual tortura os factos até chamar os seus carrascos ao poder», afirma o jornalista francês François de Closets. «E o público, fascinado pela grande criminalidade, não parece comover-se com uma nova forma de violência aterradora: a violência automóvel. Cada um de nós tem 100 vezes mais probabilidades de morrer atropelado por um motorista domingueiro do que ser assassinado por um criminoso.» O que acontece, de facto, é que temos outra percepção da violência. Antigamente, tinha-se apenas conhecimento da violência mais próxima. Agora, predomina a violência do Mundo via televisor. Vive-se em contacto permanente com a delinquência económica e o receio de se ficar sem o carro transforma-se na angústia de se perder a vida.
UM NÓ NA GARGANTA
Ate meados do século passado havia poucas prisões. O castigo era essencialmente físico — a morte ou, mais brandamente, a mutilação, o desmembramento, o desterro…
Miserere! Miserere!
O coro da cidade atulhada nas janelas metia dó. A tropa, indiferente à algazarra, abria o préstito . Os padres, os frades, seguiam atrás, salmodeando latim fúnebre num cantochão rouco. O crucifixo erguido ia sempre voltado para os réus que se arrastavam de capuz caído sobre os ombros e de corda atada à cintura, questão de hábito.
Adeus, Márcia, eu vou morrer!
«De um lado», descreve Oliveira Martins em 1894 no seu Portugal Contemporâneo, «ficavam os meirinhos e escrivães, de capas e batinas negras, calção, meia e sapato afivelado, para pôr sua fé no peito» como diz a Ordenação. De outro, os clérigos, em coro, num tom de rufar de trovões distantes, salmeavam: De profundis clamavi ad te… De profundis… Os carrascos, nos degraus das escadas, esperavam; e em quadrado as tropas, enfileiradas, de armas ao ombro, formavam um cordão unido, monstro dentado de baionetas, de cujas escamas de aço o Sol, indiferente à loucura humana, tirava faíscas. Dizia-se um nome, e o carrasco apoderava-se de um homem, seguido por um frade rezando-lhe ao ouvido…
Este corpo que abraçaste
Que já foi o teu prazer,
Vai tornar-se em pó, em terra,
Adeus, Márcia, eu vou morrer!
Subiam as escadas; a meia altura, o carrasco tapava a cabeça ao desgraçado vestindo-lhe o capuz branco, pendente nas costas, atava-lhe os dois pés… Rápido! Breve! Passava-lhe o nó na garganta» e o condenado era em seguida queimado ou enterrado, conforme a decisão dos juízes.
Até 1867 — data da abolição da pena de morte em Portugal — o castigo era essencialmente físico. Muitas vezes a sentença era a morte. Mas também a mutilação, os desmembramentos e, acessoriamente, o desterro, o confisco ou a multa.
Como a prisão era quase sempre «por poucos dias» não se construíam estabelecimentos. Arrumavam-se os presos em qualquer sítio. Mas as penas corporais foram caindo em desuso, em grande parte por influência do Direito Canónico, e a pena principal passou a ser o encarceramento. Edificaram-se prisões e adaptaram-se castelos, palácios e conventos.
Associa-se a noção de pena à regeneração na prisão que «tão eficazmente tem contribuído em outro países para a extirpação de vícios, para a emenda de costumes, para o aumento da moral pública e para o progresso da civilização.» (Decreto de 16/1/1843)
Entre os decretos e a realidade há um fosso enorme. As cadeias são o tumor «purulento» do Governo. «Os carcereiros espremiam o preso, vendendo-lhe caro as graças da prisão. Para aumentar o valor do serviço, agravavam a mísera condição dos infelizes, lançando as mulheres arrebatadas às famílias para o seio das enxovias atulhadas de meretrizes e ladras: um monturo de impudicícia torpe, obscena. Os homens eram amontoados, empurrados a pau para a sociedade dos assassinos, nessas salas imundas, habitação de misérias infernais. Davam-lhes sovas de cacete (…) e por dia ¼ de pão e caldo, onde flutuava, raro, alguma erva. Sócios na cadeia, o assassino, o pedreiro-livre, sofriam a fome em comum. Viam-se de rastos, esfarrapados e nus, com a cinta apenas coberta por um farrapo sujo, com a pele áspera, escamosa, da imundície, da fome e da lepra, com a face esquálida, os cabelos pegados de suor e terra habitados de bichos; viam-se roendo ossos como cães, ou devorando as cascas podres das frutas. De noite dormiam em pilhas.» (1)
Em 1936, o país só dispõe ainda de duas cadeias (inauguradas em 1885), duas pequenas colónias penais para «vadios» e umas quantas velhas prisões «sem o mínimo de condições.» (2)
Partindo da ideia de «corrigibilidade» de todos os condenados efectua-se em 1979 uma nova Reforma que vai anteceder de três anos o actual Código Penal… e a crise da instituição prisional.
(1) In «Portugal Contemporâneo», Oliveira Martins, 1894.
(2) In «Aspectos Fundamentais do Sistema Penal e Prisional e da Organização Judiciária em Portugal«, Ministério da Justiça, 1965.
Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM, 7 a 13 de Dezembro de 1984 – Lisboa
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