CARTAS DO VELHO DO RESTELO

O nome e a coisa

brown paper and black pen

minuto/s restantes


— Há aqui muitas coisas no teu texto que tens de substituir. Na página 4, referes «a atitude autista do Governo». Quando queres dizer que alguém não ouve ou se mostra insensível ou inflexível, não deves usar «autista» como insulto, porque estás a estigmatizar, a ofender, a perpetuar um estigma…

— Tens razão. Deixa-me apontar. Eu altero isso.

— Também recorres a outras doenças para insultar. Escreveste «bipolar nas suas opiniões» na página 83, e «a situação raia a esquizofrenia» na página 114. Não podes estar a…

— Sim. Estou a anotar tudo.

— Mas percebes?

— Percebo. Não era minha intenção ofender…

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— Não interessa! Isso ofende. Não sabes o que é…

— Ei! O meu irmão tem trissomia 21.

— Isso não te dá propriamente lugar de fala. Além disso, não quer dizer que não tenhas preconceitos inconscientemente.

— Inconscientemente? Tu é que sabes? Nem o meu psicanalista ao fim de seis anos me apresentou cabalmente ao meu inconsciente.  

— Sabias que um museu alemão criou um horário para pessoas não brancas? O museu Zeche Zollern, em Dortmund, reservou quatro horas aos sábados para criar um «espaço seguro» para pessoas racializadas, indígenas e outras que queiram visitar a exposição This Is Colonial [Isto É colonial]. Os responsáveis pelo museu defendem que o horário específico permitiria que essas pessoas pudessem explorar a exposição sem «ainda mais discriminação (mesmo que inconsciente)». Mesmo que inconsciente, ouviste bem?

— Se não é consciente, é inconsciente. Já se nasce com culpa, é o que é. Deixa-me lá ver o que assinalaste no texto.

— Vê tudo o que está em vermelho. Não assinalei nada de gramática ou de ortografia, só assinalei palavras e expressões ofensivas.

— Estava à espera de que assinalasses isso e conselhos estilísticos… Sinal dos tempos. Bem, isto é só vermelhos! Olha lá, não assinalaste «cegueira» e «surdez»?

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— Foram usadas metaforicamente.

— «Autista», «bipolar» e «esquizofrenia» também.

— Não é a mesma coisa, não se referem à saúde mental, mas deixa-me assinalar essas também.

— «Argumento deficiente» na página 127? Já sei, já sei. Altero também. É muito engraçado, pagas mal como o caraças, não tens nenhum negro ou trans na tua editora… mas siga. Bem, se virmos bem as coisas, até tens muitos negros e alguns trans… mas só nas fotografias das redes sociais. E se te preocupasses em contratar pessoas com essas características todas, em lugar de censurar palavras?

— Não estou a censurar, porque não estou a excluir ninguém. Estou a usar linguagem que inclua todos.

— «Todos» já não exclui?

— «Todes» é mais inclusivo, de facto, mas ainda não me habituei.

— Deves ter preconceitos… mesmo que inconscientes.

— Mas eu admito que os tenho, ao contrário de ti. Estou num processo de desconstrução…

— Para mim, é simples: «todos» abrange mesmo «todos». É a gramática.

— A gramática pode ser muito opressora.

— Tu és mais opressora do que a gramática. Escuta uma coisa: esta da página 139 não pode ficar?

— É mais prudente não ficar.

— Diz-me uma coisa: quem se sentirá melindrado com isto?

— Deixa ver… «Tratado abaixo de cão». Não pode ser, porque passa a ideia de que os cães podem ser maltratados.

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— Sou vegetariano, penso que tenho lugar de fala, ou se calhar não: só os cães é que terão lugar de fala. Vamos ter de decifrar como ladram perante essas expressões. Altero essas também. Já vi entretanto que assinalaste «maluco» e «palhaço»… também não posso usar «maluco» e «palhaço».

— Se te informasses, saberias que hoje se diz «neurodivergente».

— Mas isso é um grande saco em que cabe muita coisa, pelo que não saberemos do que estamos a falar…

— Quanto a «palhaço», não podemos usar profissões para ofender.

— Já te ouvi usar «azeiteiro» para desqualificar outras pessoas…  Nunca usaste «peixeira», «peixeirada»?

— Teria de pensar nisso. Isto é todo um longo processo de desconstrução…

— Não é longo, é infinito. Também marcaste que a «Europa é um anão militar»? É para não ofender os anões?

— Claro. Além disso, são pessoas com nanismo. «Verticalmente desafiados» na língua inglesa.

— Já reparaste que usaste «claro»? O Bloco de Esquerda tinha um cartaz com a frase «razões fortes, compromissos claros». A Joacine Katar Moreira escreveu: «A dicotomia claro/escuro no discurso político já mudava.» Lá está… deves ter preconceitos… mesmo que inconscientes.

— Isto é todo um processo de…

— … desconstrução, já sei. Mas porque tens de me desconstruir a mim também? A Branca de Neve e os Sete verticalmente Desafiados… Havia de ser bonito. Sabes que, para não ofender os anões, para não os estigmatizar, já propuseram a remoção dos anões do próximo filme da Disney? Curioso é que os actores anões, que têm lugar de fala, estão contra por uma estranhíssima razão: se isso for avante, perderão a oportunidade de representar. Parece que o ganha-pão é mais importante do que o putativo estigma.

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— Continua a ver os vermelhos, por favor.

— Assinalaste «prostituta» na página 240?

— É trabalhadora do sexo que se diz.

— Que verbo e substantivo usarás para exprimir a ideia de alguém se prostituiu. No sentido sexual ou não, «prostituir» e «prostituição» ficam como?

— Isto é toda uma longa estrada de…

— … desconstrução! Já sei, já sei. Se eu usar «comportamento nobre», estarei a ser classista? Quando dizes «oxalá», estás a promover o islamismo? Se eu disser que ele é um porco, um camelo, um urso, estou a pressupor que esses animais são usados para ofender, pelo que estarei a ser especista. Já nem digo «vaca» ou «cabra», porque são certamente expressões do patriarcado. Fu… Eu altero isto tudo, deixa. Continuemos.

— O que tu não percebes é que não tens lugar de falar em todos os aspectos de que reclamas.

— Se tivesse, poderia usar?

— Talvez, não sei.

— Eu pensava que tinha autoridade de usar as palavras que quero.

— Não tens.

— E quem te investiu dessa autoridade? O Espírito Santo? Já que falas em lugar de fala, ouço-te falar do que se deve fazer pelos pobres, desempregados, Negros, trans, mas tu não tens lugar de fala nenhum senão ser mulher! Olha que esse argumento se vira contra todos, a não ser que encontres um anão autista, racializado, cego, surdo e trans. Que é isto na página 350: «sem-abrigo»?

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— É «pessoa em situação de sem-abrigo» que tem de estar.

— Altero essa também, mas deixa-me que te diga uma coisa: devias mergulhar no proletariado para ver como se fala. Ficarias horrorizada. E mais: são muitas as situações em que não são essas minorias quem reclama, mas antes uma minoria ruidosa dentro dessas minorias que faz passar a ideia de que são a maioria dentro da minoria.

— Continua a ver o que assinalei.

— «Mercado negro»?

— Nem de propósito. Lê este artigo aqui no Ciberdúvidas. Ouve bem: «Não podemos, todavia, esquecer que aqueles adeptos [os adeptos que insultaram Marega com base na cor da pele] não são os inventores da linguagem do ódio. Eles apenas usam o que já se encontra à disposição. É a própria sociedade que guarda, mantém e perpetua as expressões que veiculam o preconceito. Termos como “mercado negro”, “dinheiro negro”, “magia negra”, “lista negra” ou “humor negro” denunciam um preconceito associado à cor da pele, cuja origem se perde no tempo.»

— Ah, os energúmenos racistas são vítimas destas expressões. Coitados… A culpa afinal nem é bem deles. É da malta que usa «mercado negro», «humor negro» e «magia negra». Espantoso. Imagino o neonazi a falar com o juiz: «Meritíssimo, tenha misericórdia de mim: eu ouvia muito “judiar”, “judiaria”, “mercado negro”, “futuro negro”, “cenário negro”, “humor negro”, e dei por mim a espancar negros e judeus.

— Continuas preso a um paradigma cultural que está a ser abolido.

— Eu altero o «mercado negro», descansa.

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— Não revelas empatia, é o que é.

— Poupa-me a isso, por favor. Sabes que a maior parte dos Negros que foi consultada nos Estados Unidos se revelou contra a substituição de black por «afro-americano», e que foi, contudo, este último que vingou na altura da transição dos conceitos? Espera, espera, espera… página 402, assinalaste «denegrir»?

— Essa é claramente racista.

— Nossa Senhora da Agrela! E «branquear» não é? Olha, sabes uma coisa? Mudei de opinião. Não vou alterar nada. Nada de nada. Não publiques o livro. Desisto.

Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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