Marketing agressivo fez explodir vendas em 2022; agora, acumula-se informação da ineficácia

Paxlovid: Portugal anda a comprar agora ‘restos de colecção’ de antiviral da Pfizer

por Pedro Almeida Vieira // Junho 21, 2024


Categoria: Exame

Temas: Saúde

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Foi endeusado pela imprensa, anunciado como uma “arma terapêutica” para dar “paz na batalha contra a pandemia”. O antiviral Paxlovid, da farmacêutica norte-americana Pfizer, fez vendas estratosféricas em 2022, totalizando 18 mil milhões de dólares nesse ano. Mas dúvidas sobre a sua eficácia e a ocorrência de recaídas em 20% dos doentes tirou fôlego ao fármaco ‘vendido’ pela imprensa e pelos ‘marketeers de bata branca’. No ano passado até deu prejuízo nos Estados Unidos com as receitas globais a decaírem 92%. No primeiro trimestre deste ano novo tombo: queda de 50% face aos magros resultados do período homólogo de 2023. Pouco isso importou em Portugal. Após uma misteriosa compra de 20 milhões de euros no final de 2022, feita pela Direcção-Geral da Saúde, recorrendo a uma norma revogada, que possibilitou a celebração do negócio sem contrato escrito, nos últimos dois meses uma dezena de unidades de saúde local andaram a comprar Paxlovid, já a preço de saldo. E isto mesmo depois de investigadores da própria Pfizer terem publicado um artigo científico a assumir a fraca valia do fármaco no tratamento da covid-19. A DGS não quis explicar ao PÁGINA UM sequer onde se gastaram os 20 milhões de euros em comprimidos. Agora, são mais 645 mil euros, porque a Pfizer está a despachar os stocks a ‘preço de saldo’.


Nos primeiros meses de 2022, a imprensa portuguesa destacava um antiviral de administração oral contra a covid-19 produzido pela Pfizer, “campeã de vendas” nos Estados Unidos. A revista Visão, num artigo de Maio desse ano, questionava mesmo: “Perante a importância do Paxlovid, surge a dúvida: Por que razão não está ainda disponível no nosso País?”. Seguia-se a resposta do pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com mais ligações comerciais às farmacêuticas, incluindo a Pfizer, que garantir que desde Janeiro daquele ano, a Direcção-Geral da Saúde estava a preparar uma norma “para a utilização o mais racional e equitativa possível deste medicamento”.

Froes era, então, um dos consultores da DGS para a definição das terapêuticas anti-covid, e assegurava que “o Paxlovid é essencial para controlar a circulação do vírus na comunidade e, sobretudo, para diminuir a gravidade da pandemia na população, sobretudo na mais vulnerável”. Passados dois meses, a Sociedade Portuguesa de Pneumologia, que mantém fortes ligações comerciais à Pfizer, dizia mesmo que “a mortalidade associada à doença podia ser muito menor se o país apostasse mais” no Paxlovid. No Expresso, falava-se no Paxlovid como “a arma terapêutica” produzida pela Pfizer “para conseguir a paz na batalha contra a pandemia“. O endeusamento embevecido na imprensa portuguesa ao fármaco da farmacêutica norte-americana era um prolongamento do que sucedia na imprensa mainstream internacional

Dois anos, depois há duas coisas essenciais que se sabe sobre o Paxlovid – e uma que o PÁGINA UM hoje revela.

A primeira é que, efectivamente, o Paxlovid foi um inusitado “campeão de vendas”, mas apenas por vida das campanhas de marketing político e de influência por ‘marketeers de bata branca’. Aprovado em Dezembro de 2021 nos Estados Unidos e no mês seguinte na Europa, este antiviral inventado em poucos meses – e numa fase em que a pandemia já se encontrava a estabilizar, com a dominância da menos agressiva variante Omicron –, a Pfizer mesmo assim conseguiu catapultar este seu novo fármaco para um nível elevadíssimo. Em 2022, de entre o seu portefólio de medicamentos, o Paxlovid facturou 18,933 mil milhões de dólares, que comparava com apenas 76 milhões de dólares que conseguira vender no primeiro mês (Dezembro de 2021) após a aprovação pela Food & Drug Administration (FDA). Este volume de negócios colocou o Paxlovid na segunda posição de vendas, apenas através da vacina Comirnaty, que em 2022 vendeu 37,8 mil milhões de euros.

Grande parte deste sucesso comercial instantâneo deveu-se à ajuda do Governo Federal norte-americano que, sem a existência de uma eficácia garantida, financiou na íntegra a administração do fármaco nos Estados Unidos, que custava, em média, por tratamento de cinco dias cerca de 529 dólares, mesmo se o custo de produção rondava apenas 13,38 dólares, o que resultava num lucro excepcional. Porém, a Administração Biden deixou de garantir esse pagamento no ano passado, o que causou um descalabro nas previsões de facturação. No relatório e contas do ano passado ficou a saber-se que as receitas do Paxlovid desceram a nível mundial para apenas 1,279 mil milhões de dólares – uma queda de 92% face ao ano anterior –, sendo que deu mesmo prejuízo nos Estados Unidos (cerca de 1,3 mil milhões), por via de devoluções. O Paxlovid caiu para a sétima posição dos medicamentos da Pfizer e o seu destino parece traçado: o abandono por inutilidade.

Notícia da Visão de Maio de 2022, como exemplo da ‘visão’ delicodoce do Paxlovid que contribuiu, com a ajuda de ‘marketeers de bata branca’ para pressionar a compra de 20 milhões de euros deste fármaco pela Direcção-Geral da Saúde.

E a razão nem advém sequer de já não ser necessária uma terapêutica para a covid-19. Necessária será porque o SARS-CoV-2, já endémico, mantém-se letal para uma pequena faixa da população vulnerável. Tanto assim é que, por exemplo, em Portugal registou-se já este mês, até ontem, a morte de161 pessoas por esta doença, de acordo com os dados da DGS. Mas o Paxlovid, neste cenário, vale zero – ou, pelo menos, não vale aquilo que custa.

Com efeito, é a própria Pfizer que, implicitamente, o admite agora. Num artigo científico publicado em Abril passado na conceituada revista científica The New England Journal of Medicine, integrado na fase 2-3 dos ensaios clínicos da própria Pfizer, os investigadores da própria farmacêutica chegaram à conclusão que “o nirmatrelvir-ritonavir [princípios activos do Paxlovid] não foi associado a um tempo significativamente mais curto para o alívio sustentado dos sintomas da covid-19 em comparação com o placebo, e a utilidade do nirmatrelvir-ritonavir em pacientes que não apresentam alto risco de contrair covid-19 grave não foi estabelecida”.

Note-se que estes ensaios foram conduzidos entre Agosto de 2021 e Julho de 2022, sendo certo que, mesmo demorando dois anos a serem publicados numa revista científica, a administração da Pfizer já teria há muito tempo informações sobre os resultados decepcionantes em termos de eficácia do fármaco.

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Compras da Administração Biden e marketing agressivo permitiu à Pfizer vender 18 mil milhões de dólares no primeiro ano do Paxlovid. Queda nas receitas no ano seguinte foi de 92% e começou a dar prejuízo no mercado norte-americano.

Além disto, o Paxlovid já registava outro problema. Depois do tratamento, 20% dos pacientes sofriam ‘recaídas’ (denominado, em inglês, por rebound). Ao contrário, em pacientes que não usaram Paxlovid só cerca de 2% registaram esse fenómeno.

Aliás, apesar desse evento adverso estar a ser cada vez mais consolidado em artigos científicos – do qual é exemplo um publicado no passado dia 14 de Novembro no Annals of Internal Medicine –, já era conhecido desde o início da sua comercialização. Por exemplo, em Julho de 2022 o presidente norte-americano Joe Biden sofreu um rebound após tratamento com Paxlovid. Também Antony Fauci alegou ter sofrido este evento. Na altura, o médico da Casa Branca, Kevin O’Connor, garantia que eram situações raras, e a própria FDA informara que os ensaios clínicos da Pfizer os rebounds tinham uma probabilidade de ocorrência entre 1% e 2%. Mas afinal o rebound é de 20%, conforme confirmou um artigo científico em Novembro passado, seja, pelo menos 10 vezes mais do que inicialmente indicado.

Certo é que, em Portugal, estas questões essenciais são pouco relevantes na hora de comprar medicamentos a determinadas farmacêuticas, porque conta sobretudo o marketing e as influências dos ‘marketeers de bata branca’. Através de uma compra milionária de quase 20 milhões de euros – cuja informação somente foi revelada no revelada no Portal Base mais de 11 meses depois –, a DGS adquiriu no último dia do ano de 2022 um número indeterminado de unidades de Paxlovid. Nunca se soube as unidades compradas nem sequer o preço unitário porque não houve sequer contrato escrito, tendo-se usado uma norma que já tinha sido revogada. O Tribunal de Contas, que se saiba, nunca se pronunciou sobre esta grosseira irregularidade

Também se desconhece os mecanismos de distribuição das unidades de Paxlovid compradas pela DGS no final de 2023, nem sequer se sabe quais as unidades de saúde que as facultaram a doentes. O obscurantismo é a imagem de marca dos fármacos relacionados com a pandemia.

Albert Bourla, presidente-executivo da Pfizer. A farmacêutica norte-americana conseguiu, com uma campanha de marketing agressiva, vender 18 mil milhões de dólares num fármaco que sabia ser pouco eficaz. Agora, vende os ‘restos de colecção’ a países como Portugal.

Mas apesar desta compra volumosa em finais de 2022, aparentemente o stock de Paxlovid em Portugal já se ‘esfumou’, quer por ter eventualmente sido consumido na totalidade ou por perda de validade, o que neste caso aparente ser pouco provável porque houve autorizações de extensão de validade por mais 24 meses.

Certo é que nos últimos dois meses houve uma dezena de unidades locais de saúde (ULS) que, sem razão aparente, decidiram fazer compras de Paxlovid, que atingem, neste momento, um montante de 645.300 euros. A maior destas compras foi feita este mês, no dia 12, pelo Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa, que gastou 198 mil euros, seguindo-se a ULS de Lisboa Ocidental – que integra o Hospital de São Francisco Xavier –, com 135 mil euros. Com compras acima dos 50 mil euros encontram-se mais três unidades de saúde: a ULS do Algarve (72 mil euros), o Hospital Amadora-Sintra (86.400 euros) e a ULS do São João (90 mil euros).

Os montantes relativamente baixos face aos 20 milhões gastos pela DGS no final de 2022 não se explica apenas por uma eventual menor quantidade. Na verdade, aparentemente, a Pfizer está a fazer ‘preços de saldo’ perante o descalabro do negócio com este antiviral de evidente baixa eficácia e com elevada taxa de rebounds. De facto, se no auge do marketing em 2022, a farmacêutica conseguia ‘despachar’ um tratamento de cinco dias por cerca de 500 euros – ou seja, 100 euros por dia –, agora está a exigir um pagamento de apenas 30 euros por comprimido, o que perfaz um custo por tratamento de cinco dias (com dois comprimidos) de 300 euros.

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‘Vai ficar tudo bem’, prometia-se. Mesmo gastando ao desbarato…

Mas, convém, repetir que o Paxlovid já mostrou para que serve; e não é propriamente para salvar muitas vidas – e não é por não ‘querer’; é mais por não ‘poder’.   

Como habitualmente, o PÁGINA UM não teve reacção da DGS às questões colocadas sobre as compras de Paxlovid em 2022, nomeadamente a distribuição e consumo pelas unidades de saúde em Portugal, e sobre os dados da própria Pfizer relativos à baixa eficácia deste fármaco. Nesse aspecto, apesar de dizerem que Rita Sá Machado é “perspicaz, tímida, mas divertida”, tem semelhanças com Graça Freitas no culto do obscurantismo sobre gastos públicos.


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