Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia (CE) para ‘os Valores e Transparência’, certamente que não esperava ser desmentida em público tão prontamente. Mas foi isso mesmo que aconteceu esta semana, quando a responsável da CE decidiu publicar um “esclarecimento”.
Em causa está uma nova regulação polémica que iria ser votada na passada quinta-feira, dia 20 de Junho, em sede do Conselho Europeu, e que foi anunciada como tendo como objectivo o combate à partilha de conteúdos relacionados com abusos sexuais de menores. Mas críticos da regulação, conhecida como ‘Chat Control 2.0’, apontam que se trata de um ‘cavalo de Tróia’ que vai acabar com as mensagens encriptadas e eliminar a privacidade das comunicações digitais de todos os europeus, como noticiou o PÁGINA UM.
A proposta de lei surge numa altura em que na Comissão Europeia floresce um ideia que ameaça provocar um retrocesso civilizacional ao nível dos direitos humanos e civis. Trata-se de uma ideia que também tem vindo a ser semeada pela própria vice-presidente da CE: a ideia de que a ‘segurança’ é tão importante quanto o direito à privacidade. Ninguém decente questiona a importância de se combater e travar a partilha de conteúdos com abusos de menores, um crime hediondo. A questão é quando se admite que a solução é eliminar o direito à privacidade a todos os cidadãos. [Sobre este tema escreverei um outro texto em breve.]
A celeuma que a proposta de nova regulação gerou foi tanta que acabou por ser retirada da agenda de trabalhos do Coreper, onde iria ser votada, e não tem ainda data para nova deliberação.
No seu “esclarecimento”, publicado na rede social X, Věra Jourová tentava desacreditar os muitos críticos da proposta, entre os quais se contam os líderes de empresas de mensagens como Whatsapp e Signal e também políticos e académicos.
“Deixem-me esclarecer uma coisa sobre o nosso projeto de lei para detectar abuso sexual infantil online #CSAM“. A nossa proposta não é quebrar a encriptação. A nossa proposta preserva a privacidade e quaisquer medidas tomadas devem estar em conformidade com as leis de privacidade da UE”, escreveu Jourová.
Imediatamente, a vice-presidente da Comissão Europeia foi desmentida através de uma nota de contexto, ou ‘nota de comunidade’, que foi adicionada ao seu comentário. As notas de contexto são uma ferramenta da rede X que permite que haja uma rápida contextualização (ou desmentido) por parte da comunidade de utilizadores. “A proposta de vigiar todas as comunicações digitais de todos os europeus não preserva a privacidade. É condenada por académicos, reguladores de protecção de privacidade e peritos jurídicos internos do Conselho da União Europeia pela sua grosseira violação de privacidade”, diz a nota que é complementada com ligações para diversas fontes.
Mas a nota de contexto foi actualizada mais tarde e a vice-presidente da CE passou a ser desmentida … por si própria. “A senhora Jourová disse que a proposta de lei quebra a encriptação. Ela disse isso hoje”, lê-se na nota de contexto mais recente, que é fundamentada num vídeo com declarações da própria responsável da CE.
A publicação que partilhou o vídeo transcreve as declarações de Jourová: “mesmo as mensagens encriptadas podem ser quebradas”. [Pode ver o vídeo original na íntegra AQUI]. A publicação acrescenta ainda: “a vice-presidente de Transparência da UE mina as declarações da UE de que #ChatControl não quebra a encriptação na Cimeira de Proteção de Dados da UE“, um evento que decorreu no dia 20.
Mas Jourová foi também desmentida pela presidente da Signal Foundation, entre outros, que se mostraram desconcertados com o “esclarecimento” da vice-presidente da CE.
A presidente da Signal Foundation republicou a publicação de Jourová desmentido a responsável da CE com o comentário: “respeitosamente, a sua proposta quebra a encriptação”. Adicionou que teria “prazer em gastar o tempo que precisar a rever com o máximo de detalhes que se sentir confortável sobre como exatamente isso quebra a encriptação e por que isso é tão perigoso”.
Aliás, a Signal já tinha alertado que se esta legislação for aprovada, a empresa deixará de operar no espaço europeu.
Esta situação serve para reflectir sobre o que se passa nos dias de hoje, em que as fontes governamentais ou oficiais de entidades públicas, organizações internacionais e autoridades diversas, raramente são escrutinadas pelos maiores órgãos de comunicação social. O que colocam nos seus comunicados de imprensa ‘é Lei’ para os media. O que dizem nos seus discursos ‘é inquestionável’ para os media. E quem questionar ou é da extrema-direita ou é classificado como pertencendo a um grupo específico ‘nefasto’ qualquer. Quem questionar é alguém que faz “desinformação”, na óptica dos media dos dias de hoje.
Ou seja, há uns anos, ainda se podia contar com os media, em geral, para contradizer e apanhar políticos e autoridades a mentir. Hoje, com raras excepções, já não é assim. Governos, Comissão Europeia, autoridades diversas, sabem que a maioria dos principais meios de comunicação social não vai contrariar absolutamente nada do que disserem. São raras as ocasiões, nos últimos anos, em que os media mainstream fizeram escrutínio real de comunicados, de políticas e de anúncios de entidades como a Comissão Europeia, a Casa Branca, ou outra, incluindo a ‘suprema’ Organização Mundial da Saúde ou a Direcção-geral de Saúde, que estão colocadas pelos media num pedestal, como se de divindades supremas se tratassem. O mesmo sucede com multinacionais e empresas de certas indústrias, como a farmacêutica. Já viu algum grande jornal a verificar as afirmações da Pfizer, por exemplo?
Claro que para este lodo tem contribuído a situação financeira deficitária de grandes grupos de comunicação social. [ Veja-se o caso português]. Cada vez, dependem mais das chamadas parcerias comerciais com entidades públicas e privadas. Além da falta de transparência (também por culpa dos reguladores), a situação não augura uma melhoria. Pelo contrário: paira no ar o perigo de grupos de comunicação social ou títulos virem a ser alvo de ‘resgates’ ou de financiamento público no futuro.
Por outro lado, os meios de comunicação social independentes, com jornalistas experientes mas com menos recursos humanos e financeiros – como o PÁGINA UM – fazem escrutínio, mas centram-se em alguns temas. Não conseguem ‘ir a todos’.
A acrescentar aos media dóceis e domesticados junta-se uma indústria de supostos ‘verificadores de factos’, os quais têm demonstrado que nem sempre são imparciais e em muitos temas alinham com o comunicado oficial, o press release, o discurso do político ou autoridade, em resumo, alinham com a propaganda. Com algumas excepções, não fazem verdadeiro escrutínio. Alinham com os dogmas do momento, tal como os media.
Aliás, ‘verificadores de factos’ usariam a frase de Jourová publicada na rede X para poder classificar como falsa qualquer notícia que mencionasse críticas à proposta de lei colocada na mesa pela CE!
Existem muitas tácticas para conseguir criar uma cortina de fumo sobre a verdade e ajudar os verificadores de factos a perseguir … os factos e a classificá-los como falsos.
Aconteceu, por exemplo, com toda a campanha elaborada para censurar a tese de que a covid-19 teve origem num laboratório. E-mails que foram tornados públicos, recentemente, são relevadores sobre como um artigo foi publicado numa publicação científica para desacreditar a tese de que a covid-19 poderá ter surgido de um laboratório. Os e-mails sugerem que o ‘guru’ da gestão da pandemia nos Estados Unidos, Anthony Fauci, teve conhecimento e esteve ligado à criação desse artigo. A organização liderada por Fauci tinha interesse no tema: tinha financiado pesquisa controversa no laboratório em Wuhan, na China. Fauci negou o seu envolvimento, apesar do e-mail de um seu assessor que o implica no caso. Mas, certo é que, com o artigo publicado e a activa colaboração dos media e dos chamados ‘fact-checkers‘, o ‘problema’ estava resolvido. A tese de que a pandemia teve origem num laboratório foi censurada nas redes sociais e plataformas na Internet e ridicularizada nos media. O mesmo tem sucedido com muitos outros temas.
É assim que tem funcionado a rede que protege os ‘dogmas oficiais’ enquanto espezinha os factos e impede o apuramento da verdade. Quando não se consegue manter o ‘dogma’, tem-se recorrido ao plano B: politizar os temas, forjar facções, tribos, e acusar os críticos de serem ‘conservadores’ ou mesmo da ‘extrema-direita’ (chegando a recorrer à difamação e ao insulto).
Por isso, é tão refrescante ver uma vice-presidente da Comissão Europeia ser desmentida publicamente de forma tão pronta. Não quer dizer que defenda as notas de contexto do X como sendo infalíveis. Estão longe de ser perfeitas. Mas são uma ferramenta plural e em que toda a comunidade pode intervir, apesar de já estar a haver uma batalha para as controlar. É que, como se sabe, mais do que nunca, dominar a mensagem que chega ao público é o verdadeiro poder. Por isso, tem havido tanta censura e tanta pressão para impedir que informação rigorosa e verdadeira chegue ao público em diversas matérias cruciais para políticos e para grandes multinacionais.
Se ferramentas como as notas de comunidade servirem para trazer maior transparência e contrariar o lodo de propaganda que chega hoje ao público em massa através dos media, é positivo.
Preferia, naturalmente, que fossem os media e os jornalistas a fazer o seu trabalho de escrutinar comunicados oficiais e discursos e de questionarem as versões de Ursula von der Leyen, de Jourová, de Anthony Fauci, de Tedros Adhanom, director-geral da OMS. Estamos muito longe desse escrutínio ser feito pelos principais media.
Mas, para já, enquanto as redacções dos maiores órgãos de comunicação social alinharem com os ‘dogmas oficiais’, percorrendo o caminho para a sua autodestruição, a desinformação proveniente de fontes oficiais vai continuar a florescer e a prosperar. E é uma das principais ameaças à democracia e ao modo de vida dos europeus. Precisa ser combatida. Por todos. Se tiver de ser através de notas de contexto em redes sociais, assim seja.
Elisabete Tavares é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.