TEM DIAS

Olhão

open book on brown wooden table

por Sílvia Quinteiro // Junho 23, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Olhão. Final de tarde. Estacionam perto da Marina e seguem a pé junto à Ria. Procuram o concerto anunciado para aquele jardim.

Têm tempo. Saboreiam o ar fresco que vem do mar e tempera a brisa morna de um verão que principia. O amigo visita pela primeira vez o Algarve e  Leonor explica-lhe  a origem da designação “Olhão, cidade cubista”. Abrandam o passo. Ela aponta e pergunta:

 ⎼Vês os cubos? Vês como se sobrepõem? Olha ali, um maior na base, depois um mais pequeno e por fim um bem menor. Parecem legos.

a yellow and white boat in a body of water

Ele sorri e imagina mãos de crianças a descobrir formas e volumes. A experimentar equilíbrios. Prosseguem. Vão olhando e comentando os edifícios mais próximos. Cubos, mirantes, platibandas, açoteias… Tudo é para ele novidade e espanto.  Mas a atenção de ambos é subitamente desviada para outras formas. À sua direita. Parecem vir do mar. Formas completamente opostas à  geometria retilínea das casas. Uma ondulação de pedra que  prolonga em terra firme a da água agitada pelo vento. Os bancos de jardim e a calçada ondulantes a replicar-lhe o movimento. Uma réstia de sol a espalhar sobre a tarde as sombras trémulas das folhas das árvores. No chão, no rosto, nas costas e palmas das mãos. Tatuagens flutuantes.

Ecoam então os primeiros acordes e vislumbram-se ao fundo os movimentos redondos da orquestra. A melodia enche o jardim. Enche a tarde. Sinuosa, sobe em direção às gaivotas suspensas numa dança hipnótica. Música e aves pairam embaladas pela brisa. Lânguidas. Tranquilas.

Tudo parece encenado. Um bailado grandioso. Uma coreografia rigorosa. Atenta aos mínimos detalhes: orquestra, maestro,  público, aves, árvores, vento. Os aviões que surgem hesitantes entre o descer e o planar. Essas aves imensas. Aproximam-se ao ritmo da música.

a flock of birds flying over a body of water

Subitamente, um movimento firme, um braço em riste, uma nota  forte que atravessa o ar e os corpos. Duas andorinhas, em perfeita sintonia, rasgam o céu. Caças velozes num voo rasante em direção ao palco. Um pequeno cão a fazer acrobacias. Saltita. Ladra. Disputa o protagonismo com Tchaikovsky. A vida a  entrar pela música. A música a entrar pela vida.

Leonor convida-o a ir com ela até ao lago dos patos. A música envolve-os ainda. Passam o Mercado do Peixe, depois o da Fruta. A alegria de Leonor depressa dá lugar à perplexidade. O lago já não existe. Mas os patos estão lá. Não de carne e osso, como antigamente. Apenas pequenas estátuas que evocam a sua existência. Uma instalação escultórica: o “Jardim dos Patinhos”.

⎼ Que alívio! Afinal não sou só eu que me lembro. Olha que até duvidei da minha memória. Vir até aqui era parte de um ritual. Ia-se ao mercado, depois comer um gelado à Gelvi e, claro, tínhamos de vir ver os patos. ⎼ explica ao amigo.

Outros tempos. Outros patos. A estes não os embala a água. Embala-os o som dos violoncelos. Observa-os e consegue sentir o incómodo do metal que se enfiava debaixo das costelas quando se debruçava sobre a vedação. Sente as mãos da mãe a segurá-la pela cintura. A  elevá-la e a sustê-la enquanto ela se estica e tenta tocar as penas com as pontas dos dedos…

a woman sitting on a chair next to a body of water

O concerto termina.  Leonor procura escapar à nostalgia que a assalta. Agarra na mão do amigo e puxa-o até à proa simulada de um navio que entra pela Ria adentro. Ensaiam a famosa cena do Titanic. Trauteiam a música da Céline Dion e riem da figura que sabem estar a fazer. Registam o momento numa fotografia divertida e encetam o caminho de regresso. Os olhos de Leonor seguem as linhas traçadas pelo rasto de um barco que ruma à Culatra. A perfeição da linha reta desfeita pelo movimento ondulante das águas. Também é Olhão.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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