Monte-Leste

Liberdade & Engano: no centenário da morte de Franz Kafka

Icra Iflas Piled Book

por José Melo Alexandrino // Junho 24, 2024


Categoria: Opinião

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E, tal como a liberdade se conta entre os sentimentos mais sublimes, também o engano correspondente é dos mais sublimes.

Franz Kafka[1]


Tal como sucedeu, no final de Fevereiro, com um outro texto, que jamais pensara vir a divulgar[2], também agora sou forçado a dar a conhecer um outro do mesmo género. Bendita seja a liberdade de expressão e de crítica política, por poder recair sobre lícitos ou ilícitos que jamais prescrevem, embora esteja longe de ser esse o maior dos seus atributos!

1. Perfizeram-se no passado dia 18 de Junho dois meses que dirigi ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, sem que dele ou do Município a que preside tenha recebido qualquer resposta, o requerimento que passo a transcrever:

Ex.mo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa,

Prezado Dr. Carlos Moedas,

O signatário, docente universitário, depois de muito ter pesquisado no sítio do Município de Lisboa, no Boletim Municipal e de o tentar indagar junto de Departamentos do Município e mesmo do Gabinete de V. Ex.ª e do da Senhora Vereadora Joana Almeida;

Depois de registar o deplorável episódio de ontem, na Bélgica, da proibição de uma reunião por uma autoridade local, estando no entanto a Polícia munida do respectivo despacho escrito, com os fundamentos tidos por aplicáveis;

Sabendo que nem a Câmara Municipal de Lisboa (na sua reunião de 24 de Janeiro de 2024), nem a Assembleia Municipal, que apenas se pronunciou sobre o assunto a 30 de Janeiro de 2024 [conforme o Boletim Municipal, 5.º Suplemento ao n.º 1564, de 8 de Fevereiro de 2024, p. 192(80)], deliberaram sobre o assunto – nem podiam deliberar, por tal competência policial ser exclusiva do Presidente da Câmara, órgão ao qual foi transferida por lei em 2011;

Vem, perante V. Ex.ª requerer informação sobre a data, os termos, o conteúdo e os fundamentos do despacho [presumo que de 26 de Janeiro de 2024], e seus anexos, relativos à proibição da manifestação requerida [presumo também que] por elementos do grupo 1143, para ser realizada junto ao Martim Moniz, no início de Fevereiro.

Aproveita a ocasião para dar nota da falta de critério visível na publicação de informações devidas no Boletim Municipal, designadamente dos actos relevantes do Presidente da Câmara Municipal (e outros), e para a desrazoabilidade de informações escusadas que dele não deviam constar, matéria que deve ser realmente repensada, tanto por razões legais, como pelo declarado empenho do Município na concretização do valor da Transparência.

people gathered on street

2. Se tomo aqui como ponto de partida o decurso desses dois meses, após o requerimento apresentado em 18 de Abril de 2024, no que toca à minha inquietação com o tema da liberdade de manifestação num “caso concreto”[3] em Portugal (inquietação académica, primeiro; depois, cívica; agora, já de “outra natureza”[4]), tal não significa que entre 26 de Janeiro e 18 de Abril de 2024 não tivesse havido uma infinidade de percalços e de episódios, envolvendo múltiplas e variadas pessoas, estruturas e instituições. Bem pelo contrário.

Para não aborrecer o leitor, darei nota resumida de uma pequena parte deles:

  • Perante a estranheza das notícias (aliás bem homogeneizadas na generalidade dos meios de comunicação social)[5] que, na tarde do dia 26 de Janeiro, davam conta da recusa da autorização de uma manifestação pela Câmara Municipal de Lisboa, consegui, às zero horas e sete minutos do dia 27 de Janeiro, obter informação fidedigna de que fonte oficial do Município tinha transmitido aos jornalistas, no dia anterior, a seguinte nota: “A CML não irá autorizar a manifestação marcada para o próximo dia 3 de fevereiro e que tinha previsto percorrer diversas ruas da Mouraria. O parecer da PSP é claro ao salientar um elevado risco de perturbação grave e efetiva da ordem e da tranquilidade pública”[6];
  • Como, segundo os mesmos meios de comunicação social, a proibição da manifestação tinha sido notificada aos requerentes nessa mesma noite de 26 de Janeiro de 2024, havia qualquer coisa que não “batia certo” na nota transmitida à comunicação social pelo Município, preocupação que dei a conhecer a diversas editorias políticas (incluindo a da LUSA), bem como a diversos jornalistas;
  • Perante o contexto, fui-me socorrendo entretanto do meio que, desde Agosto de 2023, comecei a fazer uso efectivo: o do recurso aos comentários como assinante do jornal Público, tendo escrito, entre os dias 26 e 28 de Janeiro (e de entre textos próprios e de resposta a interpelações de outros leitores), um total de 12 comentários sobre a matéria em questão;
  • Entre esses comentários, contavam-se designadamente os seguintes:

– A audácia pode fazer um líder; mas a decisão de Moedas é política, não é jurídica, pois não tomou na devida conta o Direito aplicável, nem a relevante doutrina sobre a liberdade de manifestação. 26 de Janeiro foi um dia demasiado pesado. O futuro o julgará.

– O Povo é sereno. Esperemos para ver o teor da decisão do órgão competente; por enquanto, pelo que vejo, ainda só há um parecer da PSP.

– A Câmara não tomou decisão nenhuma!

– Um país autoritário gosta sempre de regressar às raízes. Não se esperava era isso de um cosmopolita como Carlos Moedas, que há poucos dias se encontrou com Ayuso. Ela tem de lhe explicar o valor da Liberdade, porque na França, reconheço, é muito difícil aprender tal coisa. Moedas aplicou portanto o que aprendeu ainda em Beja.

– Só os santos é que têm direitos? Onde é que isso está consagrado?

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  • Durante todo esse dia, e até à noite de 28 de Janeiro de 2024, o último comentário que constava da “caixa de comentários” (relativo à notícia de 26 de Janeiro «Câmara de Lisboa impede manifestação de extrema-direita. Há “elevado risco”, diz PSP») era meu e dizia:

É a democracia constitucional que garante a TODOS a universalidade dos direitos. Há quem queira destruir a democracia, por fundadas ou infundadas razões. A esses, tem de ser feito o devido combate “político”, com todas as armas do combate político legítimo, ou seja, no respeito por aquilo que é sagrado na Democracia – e não pisando-o. Os defensores da Liberdade têm de ser os primeiros a dar o exemplo, respeitando os direitos e as regras que a TODOS protegem, sob pena de serem adjuntos dos coveiros da democracia. Aí, sim, são eles que vão de mãos dadas com os grandes inimigos da Liberdade – que não podem vencer!

  • Ora, na manhã do dia 29 de Janeiro, tendo verificado o desaparecimento dos comentários na notícia em causa, depois de interpelado o jornal, foi-me respondido, em e-mail das 14:52 desse mesmo dia (da responsável pela área das redes sociais): «Caro leitor, a caixa de comentários foi encerrada para limitar a proliferação de discurso de ódio»;
  • Para adiantar serviço, depois de duas reclamações dirigidas à direcção do jornal, por ofensa às regras do próprio jornal, à liberdade de expressão e ao princípio da proporcionalidade (alegando designadamente que não fazia sentido o encerramento de uma caixa de comentários quando já tinham sido publicados mais de uma centena de comentários, quando já tinham passado mais de dois dias da publicação do artigo e quando se estava a poucas horas do encerramento automático dessa mesma caixa de comentários), reclamações às quais até hoje não obtive a graça de uma resposta[7], resolvi dirigir igualmente uma queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (abreviadamente, ERC), o que fiz em 6 de Fevereiro de 2024;
  • Obtive então finalmente uma resposta. 13 dias volvidos da apresentação da “queixa” contra o Público[8], recebi um ofício do Gabinete do Conselho Regulador onde se dizia basicamente o seguinte: (i) a ERC tem defendido que os comentários dos leitores estão protegidos pela liberdade de expressão; (ii) tais comentários estão, no entanto, sujeitos designadamente às “Guidelines” definidas na Diretiva da ERC 2/2014, de 29 de outubro de 2014; (iii) «tem sido entendimento da ERC que a decisão de proceder à publicação de comentários de leitores se situa no âmbito da responsabilidade da direção do respetivo órgão de comunicação social (…), tendo os jornais a autonomia para definir os critérios para análise e seleção de comentários»; (iv) «Face ao exposto, entende-se que não se justifica, no presente caso, uma intervenção da ERC».

3. Resumidos os dados, não é este o lugar, nem o momento, para apreciar, como haverá por certo ocasião de fazer, as muitas lições a extrair da minha relação com o jornal Público (desde o início da pandemia até ao dia 29 de Janeiro de 2024[9]), nem tão-pouco é este o momento para regressar à apreciação do papel da ERC[10], entidade à qual se deve em boa medida o colapso do jornalismo no nosso país, embora, para sermos justos, militem a seu favor duas atenuantes de monta: o karma negativo recebido do “especial contexto português” (e, nele, de todas as entidades que a antecederam)[11], mas sobretudo as causas profundas desse défice de prestação, que radicam no modo como são designados os respectivos titulares e nos efeitos nefastos da cartelização do sistema partidário[12].

4. Resta, por isso, regressar ao ponto de partida: o requerimento dirigido ao Presidente da Câmara Municipal de Lisboa.

Um leitor atento – que, mentalmente ou numa folha de papel, tenha tomado nota dos pontos principais deste enredo – já se terá dado conta dos motivos pelos quais o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa ainda não conseguiu – e porventura não irá conseguir – responder àquele meu singelo pedido de informação.

A explicação é até muito simples: não é possível que a nota transmitida pelo Município à comunicação social corresponda à realidade, o que, por sua vez, leva à conclusão de que a agência de notícias e todos os jornalistas que até hoje escreveram sobre o assunto compuseram “notícias” sem base alguma real: num facto (ou acto), numa norma, num documento, num autor.

  • Por um lado, porque a Câmara Municipal de Lisboa não tomou decisão alguma de proibição da manifestação antes de 26 de Janeiro de 2024, tão-pouco a tendo tomado nesse dia ou depois desse dia (uma vez que os interessados foram notificados de que a sua pretensão não fora atendida, na noite de 26 de Janeiro);
  • Por outro lado, se assim foi, como podia o Município transmitir, como transmitiu, aos jornalistas que «A CML não irá autorizar a manifestação»? E como é que os jornalistas puderam fazer as suas notícias sabendo (ou devendo saber) que a Câmara Municipal de Lisboa não reuniria nesse dia (nem nos seguintes), ao contrário do que fazia crer o teor da nota que lhes fora transmitida?
  • Mais: como é que os jornalistas puderam elaborar pacificamente as suas peças, sem se questionarem a quem pertencia a competência para decidir sobre a matéria, sabendo (ou devendo saber) que tal poder policial tinha sido transferido do governador civil (figura inconstitucionalmente extinta nos tempos da troika)[13] para o Presidente da Câmara Municipal?
  • Pior: como é que os jornalistas portugueses puderam fazer e replicar a mesma notícia, por quase todos os meios de comunicação social, sem terem visto um único documento e sem conhecerem a data, o conteúdo ou o autor do acto que relatavam?
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5. Haveria, no entanto, uma hipótese remota a considerar, ainda que a mesma apresentasse a fragilidade de ser ofensiva do núcleo sagrado do Estado de Direito e se aproximasse terrivelmente da prática dos regimes de não-Direito de há um século (onde as leis efectivamente aplicadas aos cidadãos eram secretas, e só as demais eram publicadas): a escapatória (Kafka) de ter existido uma reunião secreta da Câmara Municipal (algures entre o momento da transmissão da nota à comunicação social e o momento da notificação da não autorização da manifestação aos interessados).

Mas, se a reunião fosse secreta, como poderíamos nós saber que tinha existido?

José Melo Alexandrino é professor universitário


[1] No texto «Um relatório a uma academia», agora disponível na cuidada tradução de António de Sousa Ribeiro, Franz Kafka, Contos, Parábolas, Fragmentos, Lisboa, Relógio D’Água, 2024, p. 110; em versão distinta (quer no título, quer na passagem citada), Franz Kafka, O Abutre e outras histórias, trad. de João Bouza da Costa, Lisboa, Presença, 2024, p. 51.

[2] Na verdade, o primeiro texto que dei a conhecer na imprensa escrita (não académica), por razões que derivam deste caso.

[3] Em abstracto, já me pronunciara sobre o assunto, em sessão realizada no Supremo Tribunal de Justiça, em 3 de Abril de 2014 (o leitor interessado pode ver o texto dessa intervenção aqui).

[4] Sobre a abdicação do recurso, para já, ao sistema judicial – reservado como está essencialmente aos ricos e poderosos ou, com graves limitações, aos indigentes – e sobre algumas das reformas a empreender nesse domínio, veja-se aqui.

[5] E, como tal, ainda disponíveis on-line em (corroboradora) abundância.

[6] Muito mais tarde, viria a verificar que o próprio Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, transcrevera, sem outras considerações, essa nota na rede social X, às 21:08, desse mesmo dia 26 de Janeiro de 2024.

[7] A única resposta que existiu foi capciosa, por recurso ao expediente de encerrar, nos dias imediatos, duas outras caixas de comentários, a um artigo de opinião de Carmo Afonso, a 31 de Janeiro, e a outro de Cristina Roldão, a 1 de Fevereiro – prática de que jamais dera conta de ter sido utilizada pelo jornal.

[8] Queixa a que a ERC, apesar de a lei dizer o contrário, insiste em chamar “participação” (tanto nos formulários que disponibiliza ao público, como no ofício que me remeteu).

[9] Note-se que os comentários à notícia de 26 de Janeiro, até à data da redacção deste artigo, ainda não foram repostos no jornal.

[10] Jorge Miranda/José de Melo Alexandrino, «Art. 39.º», in Jorge Miranda/Rui Medeiros (orgs.), Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 875 ss.

[11] Sobre o assunto, José Melo Alexandrino, Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, Petrony, 2024, pp. 99 ss., 153-154 (no prelo).

[12] Com interesse, pode ler-se esta Introdução a um conjunto de estudos publicados em 2020.

[13] Porque a Constituição continua a dispor que os governadores civis permanecem até à criação das regiões administrativas (sobre o assunto, José Melo Alexandrino, Contexto e sentido da reforma do poder local, Bragança, 2011, pp. 16 ss., em texto disponível aqui).


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