Há 75 mil açorianos pobres, quase um terço da população do arquipélago, mas a autarquia de Ponta Delgada ficou tão agradada em ter o Congresso do Ministério Público na sua terra que achou boa ideia oferecer ao sindicato organizador, através de uma empresa municipal, o repasto de encerramento. E não foi um jantar volante com garrafas de sumo: foi um opíparo jantar de gala que custou quase 63 mil euros, ficando assim em cerca de 100 euros por cada estômago. Além disto, por ironia, apesar do discreto mas majestático evento ter-se realizado no início de Março, a empresa municipal demorou mais de dois meses a assinar o contrato com o empresário que forneceu o jantar, o que significa que esta refeição teve contornos de ilegalidade. As entidades envolvidas – o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a autarquia de Ponta Delgada e a empresa municipal Coliseu Micaelense – também não quiserem explicar os fluxos financeiros no âmbito do congresso, que envolveram outros apoios e pagamentos.
Quase um em cada três açorianos (31,4%) estava em risco de pobreza no ano passado, divulgou ontem o Instituto Nacional de Estatística, mas isso não incomodou a autarquia de Ponta Delgada que, através da empresa municipal Coliseu Micaelense, se dispôs a suportar os encargos do jantar de gala de encerramento do recente congresso organizado pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP). A ‘prova do crime’ – ou seja, o uso de dinheiros públicos para custear seis centenas de refeições de luxo, na noite de 2 de Março –, foi agora descoberta pelo PÁGINA UM no autêntico ‘palheiro’ que é o Portal Base, sendo que a empresa municipal da autarquia açoriana, com liderança social-democrata, apenas consumou a contratação por ajuste directo mais de dois meses depois do repasto, o que, além de tudo o resto, constitui uma violação das normas do Código dos Contratos Públicos.
Embora o congresso tenha sido uma iniciativa exclusiva de um sindicato, foi a empresa municipal Coliseu Micaelense, que gere o teatro local onde também se realizou o congresso, que decidiu contratar os serviços de catering para o jantar de encerramento. A factura, com IVA, chegou aos 62.655 euros, o que, considerando a capacidade oficial do espaço para jantares (599 lugares), e as informações sobre o número de participantes, representa um custo médio para o erário público de cerca de 100 euros por estômago. Além disto, também houve outros apoios financeiros da autarquia de Ponta Delgada, estabelecidos através de um protocolo, mas cujos termos se desconhecem, uma vez que tanto o município como o SMMP não o quiseram disponibilizar ao PÁGINA UM. Refira-se, em todo o caso, que no site do congresso não surge, até agora, a menção a quaisquer patrocinadores.
Realizado entre os dias 29 de Fevereiro e 2 de Março, este congresso, o décimo terceiro, foi promovido, como habitualmente, pelo SMMP, tendo tido a presença da própria procuradora-geral da República, Lucília Gago. O encerramento contou com a presença do presidente do Governo Regional dos Açores, José Manuel Bolieiro. O último dia coincidiu com o congresso da União Internacional de Procuradores e Promotores do Ministério Público dos Países de Língua Portuguesa, onde se debateu a independência e o estatuto socioprofissional dos magistrados do Ministério Público.
Acabados os trabalhos, a independência aos ‘costumes disse nada’, e as bocas e estômagos dos magistrados e convidados saciaram-se num repasto de 100 euros em pleno teatro com as mesas convenientemente montadas na zona da plateia e primeiro balcão. Apesar de o PÁGINA UM ter pedido esclarecimentos, por duas vezes, e feito um contacto telefónico à empresa municipal Coliseu Micaelense sobre as razões para ter suportado os custos de um jantar de gala ao preço de 100 euros por cabeça, não se obteve qualquer resposta.
Em todo o caso, o contrato de aquisição do jantar por ajuste directo é inequívoco: foi a empresa municipal Coliseu Micaelense a contratar por ajuste directo um empresário em nome individual, Carlos Fernando Santos Furtado – que nunca antes fizera qualquer negócio com entidades públicas –, que gere um negócio de catering no concelho da Lagoa, usando a marca Q’enosso. Esta denominação é a mesma de uma empresa que Carlos Furtado dissolveu em 2018. É, aliás, através da página no Facebook do Q’enosso que se identificam as únicas fotografias do jantar, mas antes da chegada dos convivas. Numa das fotos surge o menu, embora ilegível.
Curiosamente, no site do congresso, apesar de constaram largas dezenas de fotografias do evento, não surge qualquer imagem do jantar de gala. Somente aparecem algumas fotos das refeições mais informais e frugais, realizadas na marina, no decurso dos três dias da programação. Numa dessas refeições até surge a procuradora-geral da República sentada a uma mesa onde se vê garrafas de sumo ‘industrial’, o que denuncia que essas não custaram certamente 100 euros por cabeça.
Apesar da existência da prova factual de o jantar ter sido pago pela empresa municipal da autarquia de Ponta Delgada, presidida pelo social-democrata Pedro Nascimento Cabral, advogado de profissão, o SMMP não admite que tenham sido dinheiros públicos a custear o derradeiro repasto do seu congresso. A assessoria de imprensa do SMMP, relevando ter este congresso sido ainda organizado pela anterior direcção – presidida por Adão Pedro, substituído em Abril por Paulo Lona –, salienta que foi celebrado “um protocolo com a autarquia de Ponta Delgada, traduzido num apoio financeiro, recebido pelo SMMP, valor pelo qual o SMMP pagou inclusive IVA”, considerando ser “normal, para a realização de eventos desta natureza, recorrer a parcerias pontuais, numa óptica de valorização das entidades envolvidas”.
Numa segunda fase da investigação do PÁGINA UM, o SMMP admitiu que “foi celebrado, entre outros, um protocolo de cooperação para a organização do XIII Congresso, entre a CMPD [Câmara Municipal de Ponta Delgada] e o SMMP, conferindo ‘um apoio financeiro, destinado à comparticipação dos custos inerentes à organização do XIII Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público”, acrescentando que nesse âmbito o sindicato se comprometeu a “aplicar o apoio financeiro atribuído exclusivamente para os efeitos previstos na Cláusula Primeira do protocolo”.
A fonte oficial do SMMP diz que, em relação “ao jantar que encerrou o evento […], assim como de outros serviços prestados pelo Coliseu Micaelense, os mesmos constam em duas facturas emitidas pelo Coliseu Micaelense (e pagas pelo SMMP) respectivamente, nos valores de 44.283 euros e 46.0031,67 euros, num total de 90.314,67 euros”. Apesar de se ter pedido, as facturas não foram enviadas ao PÁGINA UM. O SMMP não quis também revelar o protocolo nem as condições aí estabelecidas, incluindo o finaciamento autárquico. Também não explicou que serviços prestados pelo Coliseu Micaelense constam nas duas alegadas facturas nem tão-pouco o motivo para, formalmente, ter sido a empresa municipal a organizar e a pagar um jantar de luxo para um evento daquele sindicato.
Além disso, como se desconhecem todos os fluxos financeiros entre as três entidades envolvidas – SMMP, autarquia de Ponta Delgada e a Coliseu Micaelense –, a hipótese de o sindicato ter recebido dinheiro da município para depois entregar à empresa municipal mostra-se bastante plausível. Nessas circunstâncias, nada de substancial muda, ou seja, o jantar de gala dos magistrados foi pago com dinheiros públicos.
Saliente-se que apesar de ser usual a existência de apoios públicos em eventos desta natureza, nomeadamente de cedência de espaços a título gratuito ou com descontos – por exemplo, a preço de tabela, o teatro de Ponta Delgada, onde se realizou o congresso custa 4.500 euros por dia –, não se encontrou nenhum outro caso de uma autarquia a pagar directamente um jantar de gala que fosse da responsabilidade de um sindicato, ainda mais de magistrados do Ministério Público.
Acrescente-se ainda que a situação financeira do SMMP é desafogada, registando, no ano passado, rendimentos de quase 826 euros e um lucro de 173 mil euros. Nos últimos cinco anos, os lucros acumulados deste sindicato ascenderam aos 680 mil euros e conta actualmente com capitais próprios superiores a 1,7 milhões de euros.
O PÁGINA UM também contactou a Pocuradoria-Geral da República – que, obviamente, não tem responsabilidade sobre o SMMP – para saber se considerava ético o uso de dinheiros públicos num evento de magistrados do Ministério Público, e em especial para suportar um jantar de gala desta natureza, mas não obteve qualqyer reacção.
Evidente, para já, é a irregularidade do contrato face às normas do Código dos Contratos Públicos, uma vez que o ‘repasto de gala’ se realizou no dia 2 de Março, mas o ajuste directo somente foi celebrado no passado dia 10 de Maio, após uma decisão da administração da empresa pública em 17 de Abril. Isto é, o contrato foi celebrado mais de três meses depois da execução do serviço. Nenhum problema haverá para os magistrados que deglutiram os 100 euros de comida e bebida do jantar de gala, mas os administradores da empresa municipal de Ponta Delgada podem vir a ter problemas se o Tribunal de Contas se debruçar sobre este contrato irregular.
Quanto aos mais de 75 mil açorianos em risco de pobreza – ou seja, os tais 31,4% –, esses continuarão em risco de pobreza, ou melhor, continuarão pobres sem grandes probabilidades, se a gestão de dinheiros públicos se mantiver nesta linha, de saberem sequer o que é um jantar de 10 euros, quanto mais de 100.
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