O desfecho (aparentemente feliz) de 14 anos de perseguição a Julian Assange, deixa um sabor agridoce na boca dos defensores da liberdade de imprensa e do jornalismo. Advogados do fundador da WikiLeaks alertam que a acusação dos Estados Unidos contra Assange constitui um “arrepiante precedente” que criminaliza a actividade dos jornalistas e põe em causa a liberdade de imprensa. O jornal britânico The Guardian avisa também que está criado um grave precedente que ameaça a imprensa. Já a secretária-geral da Amnistia Internacional considerou que “o espectáculo global de anos das autoridades norte-americanas” causou “danos históricos”. Julian Assange regressou entretanto à Austrália onde se reuniu com a mulher, Stella. Pelo caminho, o jornalista compareceu no tribunal de uma ilha no Pacífico, em território dos Estados Unidos, aceitando um acordo, considerando-se culpado de ter recebido e publicado informação confidencial, algo que, para as autoridades norte-americanas, constitui uma violação da Lei de Espionagem, mas cuja revelação pública é uma das funções obrigatórias de qualquer jornalista.
Para os Estados Unidos, Julian Assange cometeu um crime: publicou informação confidencial, praticando assim um comum acto de jornalismo. Para os advogados do jornalista e fundador da WikiLeaks, a acusação de que Assange foi alvo por parte dos Estados Unidos criou um precedente grave que pode agora ser usado contra todos os jornalistas.
Visto por muitos como um herói dos tempos modernos, Assange aceitou um acordo com os Estados Unidos para poder sair em liberdade, pondo fim a uma batalha legal que incluiu a sua detenção, nos últimos cinco anos, em condições duras, numa prisão de alta segurança no Reino Unido. “Para obter a sua liberdade, Julian declarou-se culpado do crime de conspiração para fazer espionagem por publicar provas de crimes de guerra e abusos de direitos humanos por parte dos Estados Unidos e irregularidades cometidas pelos Estados Unidos em todo o Mundo”, disse ontem Jennifer Robinson, advogada de Assange, numa conferência de imprensa. “Isto é jornalismo. Isto é a criminalização do jornalismo e, apesar do acordo não constituir um precedente jurídico, não é uma decisão de um tribunal, a acusação em si cria um precedente que pode ser usado contra o resto dos media”, alertou.
Assange foi finalmente libertado da prisão de alta de segurança de Belmarsh, no Reino Unido, na segunda-feira, após um acordo em que o jornalista se declarou culpado de ter divulgado informação confidencial. A caminho da sua terra Natal, a Austrália, Assange compareceu perante um tribunal em Saipã, nas Ilhas Marianas do Norte, território dos Estados Unidos, para ouvir a sua sentença. Foi o fim de uma batalha legal que durou 14 anos e que incluiu a detenção de Assange em condições de quase isolamento numa minúscula cela em Belmarsh, no Reino Unido.
Barry Pollock, que também é advogado de Assange, deixou um aviso, falando aos jornalistas após a sessão em tribunal: “o que cria um arrepiante precedente é a acusação”.
“O tribunal, hoje, concluiu que nenhum dano foi causado pelas publicações do senhor Assange, sabemos que eram motivo de notícia, sabemos que foram citadas pelos maiores media no planeta e sabemos que revelaram informação importante. A isso chama-se jornalismo”, afirmou. Salientou que, “o que é arrepiante, é os Estados Unidos perseguirem o jornalismo como um crime”.
Assange enfrentava 18 acusações, sendo acusado pelos Estados Unidos de ter violado a lei de espionagem do país. Assange deu-se como culpado de uma acusação. “Sim, ele recebeu informação confidencial de Chelsea Manning [ex-analista de informação militar dos Estados Unidos] e publicou essa informação. Isso não deveria ser um crime”, frisou Barry Pollok.
Mas outras vozes se levantaram a alertar para o grave precedente que a acusação sobre Assange levanta. No Reino Unido, o jornal britânico The Guardian publicou num Editorial a sua opinião sobre o desfecho da acusação contra o fundador da WikiLeaks: “bom para Julian Assange, não para o jornalismo”. O jornal considera que “este caso continua a ser alarmante, apesar da sua libertação” e que “a batalha pela liberdade de imprensa deve ser prosseguida com determinação”.
De resto, Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, afirmou anteontem, citada pela Reuters, que o objectivo agora, após a libertação do marido, será “pedir um indulto” para Assange, já que “o facto de haver uma confissão de culpa, ao abrigo da Lei de Espionagem [dos Estados Unidos], em relação à obtenção e divulgação de informações de defesa nacional é obviamente uma preocupação muito séria para os jornalistas”.
Recorde-se que Assange esteve privado da sua liberdade durante 14 anos, tendo sido acusado de violação pela Suécia, e perseguido pelos Estados Unidos, que o queriam extraditar do Reino Unido para ser julgado pela justiça norte-americana. A acusação por parte da Suécia acabou por ser retirada. Nos últimos cinco anos, Assange esteve na iminência de ser enviado para os Estados Unidos para ser julgado por violação da lei de espionagem.
Sob o seu comando, a WikiLeaks divulgou informação que expôs crimes de guerra e violações dos direitos humanos cometidos pelos Estados Unidos, que incluíram o assassinato de civis e jornalistas.
Mas defensores de Assange também consideram que o jornalista foi sobretudo um preso político, por ter feito afirmações como esta, contra a promoção de guerras pelos Estados Unidos: “o objetivo é usar o Afeganistão para lavar dinheiro das bases fiscais [erário público] dos Estados Unidos e da Europa através do Afeganistão e voltar para as mãos de uma elite de segurança transnacional”. Assange também disse que “o objetivo é uma guerra sem fim, não uma guerra bem-sucedida”.
Críticos de Assange têm falsamente acusado o fundador da WikiLeaks de estar a ‘trabalhar para os russos’, nomeadamente por ter divulgado e-mails prejudiciais para Hillary Clinton, quando era candidata democrata à Presidência. Outros contestam que Assange seja jornalista.
Certo é que os principais media, jornalistas e organizações representativas da classe jornalística, nomeadamente a International Federation of Journalists, e da imprensa fizeram parte da campanha massiva pela libertação de Assange.
Também organizações de defesa dos direitos humanos, como a Amnistia Internacional, apelaram à libertação do jornalista. Em reacção à libertação de Assange, a secretária-geral da Amnistia Internacional deixou críticas aos Estados Unidos. “O espetáculo global de anos das autoridades norte-americanas empenhadas em violar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão ao dar o exemplo de Assange por expor alegados crimes de guerra cometidos pelos EUA causou, sem dúvida, danos históricos”, afirmou Agnès Callamard, citada num comunicado da organização. Adiantou que a Amnistia Internacional acredita “firmemente que Julian Assange nunca deveria ter sido preso em primeiro lugar”, lembrando que a organização tem “continuamente pedido que as acusações fossem retiradas”.
Várias figuras públicas e políticos celebraram a libertação de Assange, nomeadamente Lula da Silva, presidente do Brasil, que escreveu na rede X: “O mundo está um pouco melhor e menos injusto hoje. Julian Assange está livre depois de 1.901 dias preso. Sua libertação e retorno para casa, ainda que tardiamente, representam uma vitória democrática e da luta pela liberdade de imprensa”. Mas o presidente brasileiro foi de imediato criticado por permitir que estejam a ser perseguidos jornalistas no seu país.
Também o candidato à presidência dos Estados Unidos Robert F. Kennedy Jr. classificou Assange como um “herói de uma geração” e lamentou que os Estados Unidos tenham conseguido “criminalizar o jornalismo e alargar a sua jurisdição globalmente a não-cidadãos” norte-americanos. “Julian teve que aceitar isso [um acordo]. Ele tem problemas cardíacos e teria morrido na prisão. Mas o Estado de segurança [os Estados Unidos] impôs um precedente horrível e desferiu um grande golpe na liberdade de imprensa”, escreveu na rede X.
Em Portugal, Mariana Mortágua e os deputados do PCP no Parlamento Europeu expressaram solidariedade com Assange. Já o primeiro-ministro, Luís Montenegro, no dia em que foi anunciado que Assange foi libertado, difundiu apenas palavras em defesa de media portugueses que foram banidos na Rússia, mas ficou em silêncio sobre a libertação de um jornalista que esteve detido em condições duras no Reino Unido por fazer aquilo que cabe aos jornalistas, que é investigar e divulgar informação. Nenhum outro partido com assent0 parlamentar fez qualquer menção à libertação de Assange. No meio jornalístico, nenhuma palavra veio da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista nem do Sindicato dos Jornalistas.
Certo é que o desfecho feliz da perseguição a Julian Assange deixa um sabor agridoce na boca dos defensores da liberdade de imprensa e do jornalismo.
Em entrevista ao PÁGINA UM, em Abril passado, Stella Assange já tinha alertado que o caso do seu marido era apenas um dos sinais alarmantes da crescente tendência de se querer eliminar a liberdade de imprensa e censurar.
De resto, na Europa tem vindo a ser implementada legislação, como a nova directiva para os media e a directiva sobre serviços digitais, que tem merecido críticas por abrir a porta ao amordaçar de jornalistas e agrilhoar da liberdade de expressão. [Sobre este temas pode ler mais AQUI e AQUI].
Mais recentemente, uma proposta de lei da Comissão Europeia causou polémica por permitir o fim da privacidade das mensagens digitais de todos os europeus, incluindo as mensagens encriptadas. A proposta, que anuncia como objectivo o combate à partilha de conteúdos relacionados com abuso sexual de menores, deveria ter sido votada no dia 20 de Junho em sede do Conselho Europeu, no Coreper, mas foi colocada em banho-maria devido à celeuma pública que levantou.
Certo é que, apesar de a libertação de Assange ser uma notícia positiva para a comunidade jornalística e a imprensa, os defensores da liberdade de imprensa têm uma longa batalha pela frente e a hora de enterrar o machado de guerra não será para já. Pelo contrário. Se os defensores do jornalismo e da liberdade de imprensa têm um motivo para dar ‘vivas’, por Assange estar livre, em simultâneo, a altura não é para baixar a guarda. Os alertas dos advogados de Assange e de outros é de que lutar pela liberdade de imprensa passou a ser uma prioridade nestes tempos em que, da Casa Branca à Comissão Europeia, se quer dificultar a vida aos jornalistas ou mesmo tornar a profissão de jornalista ilegal no mundo ocidental, reservando a actuação dos media a divulgação de comunicados e propaganda oficial.
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