RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Portugal: a ameaça da fome

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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem publicada originalmente em Fevereiro de 1985 na mítica Revista GRANDE REPORTAGEM, onde é feito um retrato da fome em Portugal. Com texto de Rui Araújo e fotos de José Paulo Boavida e João Bafo.


O desemprego, o atraso no pagamento de salários e a inflação arrastam para a pobreza famílias operárias e alguns estratos da classe média baixa.

Reaparecem os livros de fiados nas lojas da província.

A GRANDE REPORTAGEM percorreu a geografia da fome portuguesa. Por enquanto ainda se enche a barriga com qualquer coisa, tirada da horta, pescada no rio, cedida pela família ou pelos vizinhos, oferecida pelas instituições de solidariedade social. Mas a fome chegará ao nosso país se a situação não se alterar. Rapidamente.

DE TOMAR À MARINHA GRANDE

CAMINHOS DA MISÉRIA

Ela trinca um palito e conta que à medida que os meses correm se sente cada vez mais esquecida da vida. Atira de longe em longe um olhar vagaroso para a gente que passa sem se arredar das suas cogitações e sorri.

— Aconteceu num sábado. Sábado, 29 de Julho. Era ainda noite ou a manhã estava a romper, já não me lembro. Envenenei-me porque não tinha nada para dar de comer aos meus quatro filhos. Tomei 60 comprimidos para me matar. Achei que era a única solução. Já tinha vendido os dois anéis do meu falecido marido por quatro contos e quinhentos cada um. Naquele momento queria desaparecer. E agora sou capaz de andar de manhã à noite a chorar. Tenho pessoas que me auxiliam. Eu choro-me às pessoas e os meus filhos já não passam fome, mas também não passam fartura… — Guilhermina, 35 anos, ex-operária da Fiação de Tomar, é uma das muitas sem salário da região de Tomar. Para sobreviver sem passar fome prostitui-se num centro comercial da cidade. Como ela há mais algumas.

Dos 900 trabalhadores da Fiação de Tomar, uma empresa com nove meses de salários em atraso, apenas 120 continuam a trabalhar nos três turnos por falta de meios e matéria-prima. A firma está praticamente paralisada. A dívida à Banca ronda os 400 mil contos. Muito recentemente, a Secretaria de Estado da População e Emprego concedeu à empresa um empréstimo de 42 mil contos — a pagar em duas fracções de 21 mil contos — que ainda não foi levantado com receio de que seja imediatamente cativado. Se o cheque não vier a ser transformado em moeda, a administração declarará a falência da sociedade.

— Há casos de fome e até roubos… Dia 11 foi julgada uma rapariga casada que tem uma filha paralisada e outra no ventre, porque roubou 20 contos a um tio que mais tarde veio a denunciá-la —, conta José Maria Serra, dirigente sindical, um homem que não dá sinal de fraqueza.

A mulher «apanhou três anos com pena suspensa» por ela e o marido estarem na situação em que estão na fábrica.

Enquanto Guilhermina e uma amiga se somem sorrateiramente do centro comercial, o sindicalista fala de sonhos desfeitos, de miséria e de fome.

O Regimento de Infantaria de Tomar está a dar de comer aos «sem salário» e hoje em dia há gente que vai todas as tardes ao hospital pedir ao técnico radiologista Fininho os restos da comida dos doentes.

— Isto não tem tendência para melhorar e olhe que não é só pessoal da Fiação: há também toda aquela gente das empresas João Salvador, Adelino Duarte, Fábrica de Papel da Matrena, mais as pequenas indústrias de que ninguém fala. — acrescenta José Serra antes de gritar com rancor que ao contactar partidos e Igreja «toda a gente disse que sim, mas sem passar daí».

Pago o lanche e partimos. José Serra tenta ainda convencer outra rapariga a responder às perguntas da GR, sem sucesso.

— Fome, há fome! — diz-me antes de apressar o passo.

Pelo passeio fora as palavras soam-lhe como indecentes. Não se contém e pergunta-me se então não vou falar com os responsáveis da Fiação. Pois vou. Um dos directores, o dr. Machado, recebe-me mas considera  «inoportuno focar a questão», não dá entrevistas ou faz quaisquer declarações. Contente com estas fracas informações, põe-me praticamente na rua.

Tomo um copo na tasca em frente da fábrica — agora com muitas dificuldades porque lhe faltam os clientes — e arranco com destino ao Tramagal, uma das raras zonas onde o Governo  detectou situações de «carência alimentar» e onde está a actuar o Centro Regional de Segurança Social de Santarém.

A população do Tramagal (5.300 habitantes) depende inexoravelmente  da Metalúrgica Duarte Ferreira (MDF), uma empresa com 10 meses de salários em atraso e que acaba de suspender 475 dos seus 1.500 trabalhadores.

— A MDF é uma empresa do sector da indústria metalomecânica pesada, fundada  em 1880, no Tramagal, região que, em tempo não muito longínquos, fazia parte, com os outros vértices em Tomar e Torres Novas, de um triângulo considerado estrategicamente  como um forte pólo de desenvolvimento industrial do país — indica um relatório elaborado pela Assembleia da República em finais do ano passado.

Para a Comissão Parlamentar de Trabalho, a MDF «tem uma importância simultaneamente nacional e regional, quer pela sua actividade quer pela localização das suas instalações» (Tramagal, Porto e Lisboa). A empresa esteve intervencionada  durante cinco anos (1974 – 1979) até ser entregue aos seus antigos proprietários, que não souberam ou não puderam superar as dificuldades resultantes da crise e da total indefinição governamental.

O relatório parlamentar põe algumas questões pertinentes. «Por que razão o Governo não deu a ajuda solicitada, perfeitamente possível, no caso do DOSSIER MALANGE», a construção de uma fábrica de máquinas e alfaias agrícolas em Angola, no valor de 75 milhões de dólares, com fornecimentos durante seis anos e que acabou por ser realizada pela Jugoslávia, «apenas porque o Governo português não propiciou o único requisito exigido pelo Governo angolano para preferir a MDF e que tinha que ver com a necessidade de convencer a administração daquele país de que não se previa o fecho da empresa durante o tempo considerado para a execução do contrato».

Fico-me por esta e outras respostas e dirijo-me à porta da MDF, onde está um grupo de operários suspensos.

— O problema agravou-se a partir de 8 de Janeiro, quando a administração da empresa, numa demonstração de força e contra a legislação em vigor, resolveu suspender 475 trabalhadores. — diz João Constantino, da direcção do Sindicato dos Metalúrgicos do Distrito de Santarém.

Oiço alguém gritar «raios os partam», mas Constantino acalma imediatamente os ânimos e prossegue: «Depois do Mário Soares nos dizer que temos de fazer sacrifícios, que tem de haver despedimentos e que os trabalhadores despedidos não morrem à fome, destacaram para aqui forças de intervenção da GNR, uns 120 homens com cães, policias e gases.»

E o quotidiano? A resposta é que a vida está a degradar-se dia após dia. Já há mais empresas com salários em atraso. A SOMAPRE e as outras…

Mais uma entrevista de gravador em punho: todas as palavras têm significado…
(Foto: José Paulo Boavida)

As pessoas vão-se amontoando à minha volta. Rostos sem uma aberta de esperança envolvem-me em mil dramas.

— É triste a gente ter uma situação destas depois de estar a sobreviver há 63 anos. — conta Joaquim de Jesus, convulsionado.

— Passo fome! Com quase 10 meses de salário em atraso e a vida cada vez mais cara, com certeza que as pessoas têm que começar a passar fome. Em vez de comer duas sardinhas, comem só uma. Ou nenhuma, em muitos casos. Ou comem uma sopa para enganar o estômago. Se tiver três sardinhas lá em casa, se calhar, cada filho come uma e eu nada. — lamenta-se outro.

— Infelizmente, no Tramagal, não há estações de Metro para eu dormir mais a minha mulher e a minha filha. Agora, é só sopita… Parece que não há salvação para este país! Eu não queria de maneira nenhuma ir roubar, mas a minha filha não há-de passar fome. — chora Esteves Chaves.

— Ao fim de 19 anos para a rua como um cão. Ao fim de tantos anos, não sei o que vai ser. Isto é uma infelicidade… — diz Manuel Marques, coberto de suor, trémulo, a concluir o rol das tragédias.

Interpelo o porteiro da fábrica e peço para ser recebido pelos directores. O homem vem a passos lentos dizer-me que «os senhores directores mandam informar que não estão autorizados a falar com os jornalistas». 

A caminho do consultório do centro médico paro na venda da dona Manuela Feliciana, que deixou de vender bifes para passar a vender «muita fruta tocada». Um homem de rosto seco, comido pelo cieiro, aproxima-se e pede para ser ouvido. Anda a palmilhar o Tramagal à espera que o tempo passe. Tem 34 anos — 12 de empresa — e vive com a mulher e dois filhos.

— Eu tenho que desabafar! Estou farto. Não faço a mínima ideia do que é que isto vai dar. É muito natural que as pessoas venham a perder a ‘tramontana’ porque não têm dinheiro. E, digo-lhe, já que o Governo deste país não quer fazer justiça é muito natural que os trabalhadores deste país a façam pelas suas mãos. Há já aqui casos de pessoas que se querem matar e de pessoas que se desorientam…

E largou. Não tinha mais nada para dizer.

Vou falar com o médico do Centro de Saúde. O consultório está a rebentar pelas costuras. Chego-me a um enfermeiro e pergunto pelo doutor Vítor Goucha Jorge. Duas velhotas sentadas ao lado da janela «rosnam» que não é a minha vez. Entro no gabinete do médico.

— Viva!

— Boa tarde.

O médico olha para a janela do gabinete onde se adivinha a trovoada já próxima e depois de um silêncio, para ganhar segurança — nunca deu entrevistas — faz o seu balanço.

— Há uma insegurança nas pessoas, o que lhes dá uma instabilidade psíquica maior. Por isso, recorrem mais vezes ao médico para obterem tranquilizantes, uns hipnóticos ou qualquer outra coisa que as ajude a passar melhor. Vejo pessoas bastante caídas, depressões, síndromas depressivos… Quando isto começou notou-se um menor rendimento das crianças nas escolas devido à má alimentação.

— Mas não há apoios?

— Alguns. Para minimizar a situação, criámos um grupo — o Centro de Apoio e Desenvolvimento para o Tramagal — para ajudar as pessoas. Ocupamos as mulheres a fazer tapetes de Arraiolos. Temos um curso de ferros forjados e outro de tractoristas. Damos também um lanche, um suplemento alimentar a todas as crianças em idade escolar, que consta de uma refeição a meio da manhã. É leite que a Cáritas nos tem dado, com um suplemento vitamínico, marmelada, queijo e pão. O pão é oferecido pelo Campo Militar de Santa Margarida. São cerca de 800 pães diários para estas crianças… A situação é difícil. É possível que haja fome e que nós estejamos só a tentar minimizar as insuficiências, mas isso não resolve o problema porque depois faltam a carne e o peixe e os outros alimentos essenciais.

A outra faceta da miséria…
(Foto: João Bafo)

Os «novos pobres» do Bairro Social do Tramagal vão enfrentando o tempo sem garantias. Mulheres — algumas muito novas — vestidas de negro e muita miudagem. Uma delas, com uma pequenita ao colo, diz que passa fome, muita fome. Chama-se Manuela Lopes e tem quatro filhos. Reparo que alisa continuamente a penugem do filho, sôfrego de colo.

— Como uma refeição por dia e, muitas vezes, para dar aos meus filhos, não como. Tenho a loja a fiar-me, mas, coitada da pessoa, muitas vezes também não pode…

— O que é que os seus filhos dizem?

— Os mais pequeninos não percebem. Eles pedem-me pão. Os mais velhos é que vêem que já não podem comer tanto e que é preciso dividir.

— O que foi o vosso almoço?

— Grelos com batatas e um ovo para cada um.

Cala-se. Uma vizinha aproxima-se. Maria F. Almeida, 55 anos, viúva há 24, tem um filho que é pintor na fábrica. Às tantas, ele já nem se admira de não comer e, se calhar, ela também não.

— Não tenho de onde venha um pratinho de sopa. Não tenho casa nem eira. Estou junta com a minha filha. E ainda tenho mais dois filhos ao meu encargo. Um trabalha ali e o outro está desempregado. Sim, senhor! Tenho passado muita fominha. As almas boas é que nos têm valido., mas chegou-se ao mês de Janeiro e deixaram de dar fiado à gente…

Fontela. Km 213,63 da CP. À frente dos portões selados da fábrica, um mar de vidro partido, uma tasca às moscas e o rio. Os 650 trabalhadores da Vidreira que se encontram no desemprego desde 23 de Dezembro de 1982 ainda continuam a aparecer aqui para matar saudades, mas qualquer dia já não vem ninguém. Agora, muitos já vão ficando pelo café de Vila Verde a conversar e a beber uns copitos.

Fontela está a tornar-se definitivamente uma vila fantasma. Até nem padre há na igreja… Fontela é um calafrio.

José Aranha Grilo é um dos despedidos da Vidreira, onde trabalhou dos 14 aos 24 anos. O rapaz recebe, hoje, um subsídio de desemprego  de 12 contos. O preço de uma existência. Trabalho, não há. Toda a gente «vivia da Vidreira». Fala telegraficamente dos casos dos outros. Dos cortes de linha, da história do rali e dos suicídios. José Aranha Grilo traz a amargura consigo. Diz adeus e desaparece.

— As pessoas passam um mau momento. Passam muito mal. Há pessoas aí a lutar com grandes dificuldades. A Junta de Freguesia de Vila Verde não tem hipóteses de ajudá-las. Tem ajudado naquilo que pode — burocraticamente, mas é tudo. — conta o presidente da Junta PS, enquanto João Gomes, dirigente sindical PC, se ri por dentro. Aqui, como lá fora, socialistas e comunistas continuam a ter relações mancas. Para o sindicalista há que denunciar a miséria — a fome envergonhada. Logo que entra no carro berra um «ora bolas» e depois de acenar para o presidente da junta, afirma que «há fome e a prova disso é a campanha de solidariedade encetada pela organização holandesa Tulipa Vermelha com vista ao abastecimento de Fontela/Vila Verde em géneros alimentícios».

Bairro dos Pobres, em Vila Verde, é uma aldeia onde vive uma grande parte dos operários da Vidreira. Roupa estendida, garotada a brincar e mulheres a trabalhar — atentas à chegada de estrangeiros. É aí que reside Cecília Oliveira. Acolhe-me de braços abertos e, logo a seguir, começa a queixar-se.

— Quando o meu marido trabalhava, eu tinha dinheiro e governava-me bem, mas agora já não sei o que há-de ser da gente. Ou temos de morrer de forme ou não sei o que há-de ser isto. Se não nos dessem de comer, já tínhamos morrido…

Atentas, as crianças dão por finda a sua intrusão e voltam para o beiral da porta. Dona Cecília aconselha-me a falar com o marido que está no café e mergulha na faina caseira.

A caminho do café, por entre ruelas gastas, encontro um rebanho de ovelhas e, um pouco mais adiante, um grupo de pessoas. Vejo luto carregados e caras mortificadas. Paro. Depois da saudação, indago a vida que por ali corre.

— O meu marido trabalhava na fábrica e o meu cunhado também. Depois, o meu cunhado  ficou sem emprego e agora está cá a comer e a beber, mais os seus cinco filhos. Se não fosse a gente, morriam à fome!

Uma velhota, sentada na soleira da porta, aponta-me a casa 6 e espeta os olhos na negrura, sem dizer patavina.

— Vossemecê vem dar alguma coisa?

— Vim só falar com eles…

Uma luz trémula escapa-se das fendas do barracão (3 quartos) onde vivem os Dias. Noémia, o marido, os seis filhos do casal, mais uma cunhada e a neta.

Casa 6, rua 7, Ordem, Marinha Grande.

Uma cachopa abre a porta e uma voz cansada manda-me entrar. No ar paira um cheiro de lenha. A mulher mastiga um pedaço de couve ­— saudação monossilábica — e bebe um trago. A miudagem, dispersa à volta da lareira, sorri. Uma lamparina a petróleo aparece na mesa onde acabo de deixar cair o meu bloco. A matrona começa a falar enquanto come a sopa. A sopa, aqui, é entrada, conduto e sobremesa.

— Quando há feijão é todos os dias sopa de feijão. Hoje é uma espécie de cozido, porque deram um naco de carne à minha filha. Outras vezes, bebe-se café de cevada com um papo-seco. A minha comadre também me dá a sopa que não come lá em casa…

Noémia Dias, 4 anos, 10 filhos, ex-operária do vidro, leva a mão gordurosa à cabeça do petiz mais novo e faz-lhe uma festa.

— A minha menina, ao sábado vai pedir esmola. O dinheiro ainda não dá para viver. Eu, ao fim do mês, dou logo metade a cada merceeiro, senão não me fiam. O Governo deu-me alguma coisa para a escola dos miúdos o ano passado, mas este ano não deu nada. Ainda não lhes comprei os livros porque quando tenho algum dinheirito é para o leite do bebé, que anda a beber café.

O bebé, o 10.º filho!

— Porquê tantos?

— O meu homem não tem cuidado! O médico dizia-lhe para ter cuidado que a vida não está para ter tantos filhos…

O filho mais velho, Vítor Manuel, 23 anos, junto com a Lurdes, olha para a mãe.

A lenha seca estala. O bafo da nossa respiração ergue-se, lentamente, na humidade.

— E o futuro?

Se isto não se resolver vai para pior… Mas temos esperança!

Há meses atrás, a palavra ‘esperança’ já não fazia parte do vocabulário dos operários da indústria vidreira da Marinha Grande. A região, que durante anos tinha absorvido mão-de-obra de todo o país, viu-se subitamente confrontada com a realidade da crise. Cinco das maiores empresas do vidro — Dâmaso, Cive, J. Ferreira Custódio, Manuel Pereira Roldão e Ivima — cessaram de pagar salários em finais de 1983, princípios de 1984, colocando cerca de 2.650 trabalhadores em situação dramática. Cinco outras empresas de menor dimensão encerraram as portas, empurrando 410 operários para o desemprego. Mais de 70% do comércio fechou, segundo dados sindicais. O número de pedintes não parou de aumentar desde então. Houve pais que chegaram a mandar os filhos para a província e que ainda hoje continuam separados deles.

A Vidreira da Portela deixou de ser um porto de abrigo…
(Foto: José Paulo Boavida)

O Pacto Social — acordo de viabilização — de 4 de Janeiro de 1985 foi apenas um balão de ar fresco para uma indústria em crise. E se hoje algumas destas empresas já actualizaram os ordenados, não é menos verdade que há centenas de trabalhadores a receber no «dia 50», de 50 em 50 dias. Em Março, a situação deveria estar regularizada, apesar de não haver certezas.

— O Governo prontificou-se a tomar algumas medidas de apoio para minimizar a situação, mas há empresas que têm oito, nove meses de salários em atraso. Temos de nos apetrechar tecnologicamente. Não podemos ficar pelas meias tintas. Eu ainda não sei como vai ser o mês que vem… — diz-me um dos directores da Ivima.

Entretanto, resta a caridade. A organização internacional Tulipa Vermelha fez, em fins de Dezembro, um donativo de 2.987 contos para ajudar os trabalhadores com salários em atraso. A verba foi distribuída pelo Sindicato dos Vidreiros e esgotou-se num mês.

— Demos 1.650$00 [escudos] por criança até aos 13 anos — uma caderneta com senhas para os pais irem à Cooperativa do Povo da Marinha Grande comprar géneros alimentícios. — diz o presidente do sindicato, Raúl Ferreira, também ele com salários em atraso.

— A fome não é tão visível porque houve recurso a outros lados, desde a venda de fios, pulseiras e alianças à concessão de facilidades por parte dos comerciantes. — conta o sindicalista. Na realidade, instaurou-se um clima de solidariedade. O próprio gerente da Sapataria Bom Preço, José Mendes da Silva, chegou a oferecer no Natal aos sem salário 50 pares de sapatos e, no Dia da Mãe, deu uma saltada à escola para entregar um cheque de 100$00 aos garotos mais pobres. Para o homem do Bom Preço «até houve muita humildade na escolha e se fosse necessário fazer o mesmo, voltava a fazê-lo, mas já não deve ser.»

A situação parece estar a melhorar. Na Escola Preparatória da Marinha Grande já nenhuma criança vai buscar, às escondidas, restos de pão aos caixotes do lixo. Também já não há mais garotos que desmaiam na aula por causa da fome. E se no dia 2 de cada mês não era raro ver crianças espancadas — pagavam o desespero dos pais que não recebiam ordenado — hoje isso já acontece com menos frequência. Até princípios de 85, as bolachas, os chocolates  e os bolos não se vendiam na escola. As crianças comiam unicamente pão com manteiga. Alunos que não gostavam de peixe pediam sempre repetição, enquanto que agora já recuam quando aparece «peixinho» ao almoço.

— A única vantagem foi começarem a gostar de salada porque, como tinham fome, comiam de tudo… — diz Abel Monteiro, o vice-presidente da escola, antes de levar a mão a um espesso «dossier» e garantir que «houve mães que chegaram a dar filhos a feirantes». A secretária, Maria Melo, enternecida, não deixa de acrescentar que testemunhou um dos casos em que uma mulher se dirigiu à professora para lhe oferecer o filho. Uma dessas crianças nunca mais voltou…

Com ou sem melhoria, ainda houve 30 alunos que não se matricularam em 1985, apesar de a escolaridade ser obrigatória. A razão invocada é sempre a mesma: falta de meios. Senão vejamos: «Eu, João C., responsável pela educação do meu (neto) educando Marcos S., não compareci à matrícula, por motivo de me encontrar impossibilitado de trabalhar, já há um ano, tendo a necessidade de que o meu educando , logo que complete os 14 anos vá ganhar para sobreviver. Por este motivo peço a V. Ex.ª a máxima desculpa. 31/Outubro/84.»

Dou mais uma saltada até à Ordem, zona  onde vive uma grande parte dos «sem salário» da indústria vidreira para saber até que ponto é que a esperança no futuro pode ser contabilizada.

Chove. Ao lusco-fusco, personagens indistintas esgueiram-se paredes meias com a dormência que parece ter invadido a vila. Entro no primeiro comércio que vislumbro, a loja do senhor Madeira. O homem vende de tudo. O local é simultaneamente supermercado, tasca e salão de jogo. Meia dúzia de pessoas disputam uma partida de bilhar, na sala do fundo, enquanto uma cliente vai barafustando ao ajeitar as compras dentro de um saco de lona.

— Eu dantes não vendia Kentucky e depois passei a vender. Por 12 mil réis mata o vício à malta. Agora é que começo a vender outras marcas… — diz-me o dono da loja, enquanto ampara uma lata aqui e acomoda uma embalagem acolá.

Insiste:

— Dantes até vendia roupas e tive de deixar de vender. O rol tem vindo a aumentar… mas é provável que a partir do mês que vem isto se recomponha. Já começaram a receber…


Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM,  22 a 28 de Fevereiro de 1985 – Lisboa

Nota do autor: Agradeço o empenho e o excelente trabalho dos repórteres fotográficos João Paulo Boavida e João Bafo. 

N.D.: O PÁGINA UM agradece a João Paulo Boavida pela sua generosidade e contributo para a publicação desta reportagem e aproveita para deixar uma singela homenagem póstuma a João Bafo.


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