Diploma em marcha em 2023, caducou com queda do Governo

Mineração no mar profundo português: moratória ficou em ‘águas de bacalhau’

por Elisabete Tavares // Julho 1, 2024


Categoria: Exame

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O Parlamento português tinha aprovado, na generalidade, um projecto de lei proposto pelo Pessoas–Animais–Natureza (PAN) que visava impedir a exploração de minerais em mar profundo até 2050 em águas territoriais e na Zona Económica e Exclusiva. Mas a queda do Governo, em Novembro passado, atirou o diploma para a pasta de arquivo dos ‘caducados’. O PAN já avançou com nova proposta no Parlamento para fixar uma moratória, mas a discussão da proposta ainda não tem data marcada. O consórcio ambientalista ANP/WWF Portugal reuniu na semana passada com a secretária de Estado do Mar, Lídia Bulcão, e defende ser urgente que o Governo e a Assembleia da República garantam a proteção dos ecossistemas marinhos através de uma moratória, contrariando as diligências já tomadas pelo Governo da Noruega, que decidiu avançar com o projecto de mineração em mar profundo. [Pode ler AQUI a reportagem do jornalista Boštjan Videmšek na Noruega, que publicámos hoje, em exclusivo em português, no PÁGINA UM].


Voltou à estaca zero o plano para proteger o fundo mar português da exploração de minérios. Um projecto de lei da autoria do partido Pessoas Animais Natureza (PAN), que deu entrada na Assembleia da República em Julho de 2022, propunha uma moratória à mineração em mar profundo em águas nacionais até 2050, mas acabou por caducar na sequência da queda do Governo de António Costa.

O diploma chegou a ser aprovado no Parlamento, na generalidade, em Outubro do ano passado, mas ainda não tinha cumprido os trâmites processuais, em termos de discussão na especialidade da Assembleia da República, para poder entrar em vigor. Com a dissolução da Assembleia da República no decurso das legislativas de Março, tudo o que foi feito se perdeu. O PAN já avançou, entretanto, com a apresentação de uma nova iniciativa no mesmo sentido, mas aguarda ainda data para a ver discutida pelos deputados.

Octópode de mar profundo (Sauroteuthis syrtensis) que se pode encontrar a 800 metros de profundidade no Oceano Atlântico.
(Foto: WWF).

“Infelizmente, e devido à realização de eleições antecipadas esta proposta não pode ser foi concluída e acabou por caducar (como todas as outras que se encontravam em situação idêntica)”, lamentou o PAN, em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM. O partido garante que “não deixará cair este tema”.

“Apesar de o Governo português ainda não ter aplicado o princípio da precaução em relação às águas nacionais , sabe-se que uma moratória em toda a ZEE [Zona Económica e Exclusiva] e plataforma continental estendida, protegeria uma grande percentagem dos mares europeus, como defendem aliás também várias associações ambientalistas com quem temos estado em contacto”, defendeu o partido.

Para a Associação Natureza Portugal, que no nosso país trabalha em consórcio com a World Wide Fund for Nature (WWF) é urgente que seja aprovada uma moratória para proteger o fundo do mar da indústria de exploração de minérios. “A mineração em mar profundo destina-se a extrair minerais como cobalto, níquel e lítio do fundo do mar, com máquinas gigantescas e poderosíssimas a operar em condições muito adversas e arriscadas (elevada profundidade e sujeitas a grande pressão), destruindo localmente ecossistemas e perturbando outros a largos milhares de quilómetros em redor”, disse Bianca Chaim Mattos, coordenadora de Políticas da ANP/WWF ao PÁGINA UM.

Larva de estrela-do-mar (Luidia sarsi) no oceano Atlântico profundo.
(Foto: WWF)

Para esta responsável da organização ambientalista, “em Portugal, 2023 foi um ano de grandes avanços políticos nesta matéria, com a posição precaucionária defendida pelo Governo nas reuniões da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês) e também pelo posicionamento maioritário da Assembleia da República contra esta atividade, através da aprovação na generalidade do Projeto de Lei 230/XV/1 do PAN para estabelecer uma moratória à mineração em mar profundo”.

A ANP/WWF defende que “é urgente que o Governo e a Assembleia da República retomem o processo para estabelecer uma moratória à mineração em mar profundo em águas nacionais, garantindo assim a proteção dos nossos ecossistemas marinhos”. “Infelizmente, alguns países, como a Noruega, já sucumbiram aos interesses económicos em detrimento da proteção da natureza, permitindo a exploração mineira de parte dos seus mares, o que serve de alerta para o nosso país”, lamentou Bianca Chaim Mattos.

A Noruega aprovou o avanço da exploração de minérios em mar profundo, o que está a gerar contestação e protestos de organizações ambientalistas, nomeadamente a WWF que processou o Governo norueguês. [Pode ler a reportagem do jornalista Boštjan Videmšek na Noruega publicada hoje no PÁGINA UM]. Em Portugal, a ANP/WWF também defende que o país deve apoiar a moratória para águas internacionais. “O Governo português deve continuar a defender ativamente uma moratória à mineração em mar profundo em águas internacionais, principalmente nas reuniões da ISA”, argumentou Chaim Mattos.

Ilha de São Miguel, Arquipélago dos Açores. Em 2023, a Assembleia Regional dos Açores aprovou uma resolução para uma moratória até 2050 à mineração em mar profundo. Mas cabe ao Governo dos Açores dar seguimento a esta resolução.
(Foto: D.R.)

Por outro lado, a organização ambientalista também considera importante “promover o conhecimento científico”, pelo que recomenda que “o Governo deve investir em projetos científicos para melhor compreender os ecossistemas de mar profundo e os impactos potenciais da mineração”. Segundo Bianca Chaim Mattos, “sabemos menos sobre o mar profundo do que sabemos sobre a lua”. Lembrou que “perturbações num único local de exploração mineira poderiam aniquilar espécies inteiras”. “As consequências podem ser dramáticas para a biodiversidade, para as comunidades costeiras e para a saúde humana”, avisou a coordenadora da ANP/WWF Portugal.

“Face ao desconhecimento dos efeitos potencialmente devastadores da atividade mineira em mar profundo, as Organizações Não Governamentais de Ambiente que trabalham este tema consideram que os governos de todo o mundo devem aplicar o princípio da precaução, declarando já uma moratória a esta atividade em todas as áreas marinhas sob a sua jurisdição nacional, e defender o mesmo para as águas internacionais, pois permitir a mineração em ambientes tão pristinos e valiosos sem termos o conhecimento necessário é um retrocesso, e não um passo à frente rumo a um futuro sustentável, equilibrado e equitativo”, recomendou.

Segundo a coordenadora da ANP/WWF, a organização “tem mantido conversas e reuniões com várias partes interessadas sobre esta questão, aliadas também com duas ONGA com implantação no território português: a Sciaena e Sustainable Ocean Alliance (SOA)”.

A organização ambientalista ANP/WWF reuniu na semana passada com Lídia Bulcão, secretária de Estado do Mar, para “discutir a importância de manter uma abordagem precaucionária em relação à mineração em mar profundo e estabelecer o quanto antes uma moratória”. (Foto: D.R.)

“Ainda esta semana [na semana passada] nos reunimos com a Secretária de Estado do Mar, Lídia Bulcão, para discutir a importância de manter uma abordagem precaucionária em relação à mineração em mar profundo e estabelecer o quanto antes uma moratória. Temos feito o mesmo apelo junto de vários partidos representados na Assembleia da República, principalmente aqueles que tiveram um papel ativo na aprovação do referido projeto de lei”, disse.

Bianca Chaim Mattos relembra “as ações de ‘advocacy’ junto do Governo dos Açores e dos partidos açorianos”, que teve os seus frutos: no ano passado, a Assembleia Regional dos Açores aprovou uma resolução para uma moratória até 2050 à mineração em mar profundo. No entanto, cabe ao Governo dos Açores dar seguimento a esta resolução – e ainda não é totalmente claro se e quando o fará.

Contactados os Ministérios da Economia e do Ambiente, ainda não foi possível obter um comentário do Governo sobre este tema.


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