ABRIR A CAIXA DE PANDORA EM ÁGUAS PROFUNDAS: REPORTAGEM NA NORUEGA

Uma Guerra Fria chegou ao fundo do mar

por Boštjan Videmšek // Julho 1, 2024


Categoria: Exame

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A Noruega vai abrir o seu fundo marinho à exploração de minérios, prevendo-se o início em 2025. E arrisca ser uma caixa de Pandora. O projecto ameaça colocar em perigo alguns dos ecossistemas menos explorados mas importantes para a dinâmica do planeta. O principal argumento da indústria para a mineração no fundo do mar é a alegada necessidade da ‘transição verde’, mas os efeitos nefastos de ‘mexer’ nas profundezas marinhas não estão sequer avaliados. Oceanógrafos e outros cientistas alertam para a falácia da extracção de minérios em nome do combate à crise climática. O timing da decisão do Governo norueguês, com uma aprovação rápida, não aparenta ser, porém, uma coincidência, enquanto se intensificam vozes belicistas na Europa contra a Rússia. Os mares da Noruega são estratégicos e a exploração de minérios no fundo marinho é algo bastante apetecível para a indústria de armamento. Na generalidade dos países, os riscos da exploração em mar profundo têm levado à instauração de moratórias, para estudar melhores os impactes, sendo que Portugal ficou a meio caminho [ver texto autónomo]. Reportagem do jornalista Boštjan Videmšek em exclusivo para o PÁGINA UM, em Portugal.


No dia 9 de Janeiro, a proposta sobre a mineração em mar profundo foi aprovada no Parlamento norueguês por uma maioria esmagadora – 80 votos a favor e 20 contra. A Noruega, que se considera um dos países mais verdes do mundo, está assim a caminho de se tornar o primeiro país a abrir uma parte do seu fundo marinho à mineração industrial.

A pretendida ‘zona económica exclusiva’ norueguesa compreende 281.000 quilómetros quadrados. A mineração está planeada para ocorrer entre 1.500 e 4.000 metros de profundidade, na escuridão perfeita, iluminada apenas por criaturas que produzem luz bioluminescente.

As profundezas do oceano – incluindo o solo – abrigam alguns dos ecossistemas menos explorados do planeta. Em muitos aspectos, também o mais delicado. A área definida pelo Governo norueguês é o habitat natural de um grande número de espécies animais, incluindo vários tipos de baleias. De acordo com estimativas científicas, a zona também pode ser o lar de milhares de espécies que ainda não descobrimos. Significa que não fazemos ideia daquilo que podemos estar a colocar em risco.

A paisagem natural bela e única de Lofoten, no Ártico da Noruega, poderia sentir as consequências da mineração em mar profundo.
(Foto: Boštjan Videmšek)

As profundezas do mar, na sua maioria inexploradas, são já fortemente influenciadas pelos efeitos das alterações climáticas, da poluição e da pesca excessiva. Na opinião de oceanógrafos e outros cientistas marinhos, a extracção de metais e minerais em nome do combate à crise climática pode colocar ainda mais em risco os ecossistemas de águas profundas.

Parte da área marcada para mineração encontra-se dentro da plataforma continental norueguesa, enquanto uma parte está nas águas internacionais vizinhas, cujo solo está sob jurisdição norueguesa. Uma parte da área de mineração é o arquipélago ártico de Svalbard – visto pela Noruega como a sua área económica exclusiva, apesar de um tratado internacional de 1920 estipular o uso partilhado com a Rússia, Reino Unido e Islândia, juntamente com vários outros países.

As empresas norueguesas planeiam utilizar o fundo do mar para a extracção de cobalto, cobre, zinco, magnésio, níquel e uma série de metais raros. Os metais raros estão localizados na crosta de manganês de montanhas subaquáticas, e nas proximidades de fontes hidrotermais activas ou extintas.

O principal argumento usado pela indústria de mineração em alto mar para conquistar políticos e investidores é que a mineração no fundo do mar é vital para a transição verde. Segundo este ponto de vista, a produção de tecnologias de fontes renováveis e de mobilidade eléctrica exigirá quantidades quase ilimitadas de metais e minerais. A brutal manipulação do ecossistema menos explorado do planeta, mas comprovadamente de extrema sensibilidade, é assim apresentada como o único caminho viável para a descarbonização.

Um dia norueguês de vergonha

“Precisamos cortar 55% de nossas emissões até 2030, e também precisamos cortar o resto de nossas emissões após 2030”, disse Astrid Bergmål, secretária de Estado do Ministério do Petróleo e Energia da Noruega, à Mongabay. “A razão pela qual devemos olhar para os minerais do fundo do mar é a grande quantidade de minerais críticos que serão necessários durante muitos anos”, continuou Bergmål. A governante também ressaltou que a mineração em alto mar só ocorrerá se o Governo norueguês determinar que seja conduzida “de forma sustentável e com consequências aceitáveis”.

A Noruega está longe de ser o único exemplo. As Ilhas Cook, o Japão, a Nova Zelândia e a Namíbia são apenas alguns dos países que também estão a actualizar a sua legislação em matéria de águas profundas.

O Governo japonês já construiu o primeiro navio destinado à colheita de metais subaquáticos. O projecto deve arrancar até o final da década. Em Novembro passado, as autoridades japonesas declararam que a área designada continha cobalto suficiente para 88 anos e níquel suficiente para 12 anos de necessidades japonesas.

A China, por outro lado, é o maior proprietário individual de licenças para a exploração e mineração do fundo marinho do Pacífico. A Rússia e a Coreia do Sul também possuem um grande número de licenças – como a Índia, que pretende criar sua própria área exclusiva para mineração em alto mar.

A sensação de que a indústria está atormentada por uma grande oposição ambientalista pode ser enganadora. A oposição está presente apenas nas regiões ambientalmente sensíveis do mundo ocidental, e mesmo aí as massas não estão exactamente a exigir para que se acabe com a mineração.

Lofoten, no Ártico da Noruega.
(Foto: Boštjan Videmšek)

A secção norueguesa da organização ambientalista World Wide Fund for Nature (WWF) está convencida de que a decisão parlamentar a favor da exploração mineira dos fundos marinhos não cumpre sequer as normas legais mínimas. A WWF decidiu, assim, processar o Governo.

“A decisão da Noruega de prosseguir com a abertura de vastas áreas oceânicas para mineração destrutiva representa um escândalo governativo sem precedentes”, disse a CEO da WWF-Noruega, Karoline Andaur, há algumas semanas. “Nunca antes vimos um governo norueguês a ignorar tão descaradamente os pareceres científicos e a ignorar os avisos de uma comunidade de investigação oceânica unida. Se esta decisão não for contestada, aceitamos que os políticos possam infringir a lei e gerir os nossos recursos cegamente. Isso criaria um precedente novo e perigoso para a forma como as avaliações de impacto são conduzidas pelos governos atuais e futuros.”

Até agora, 26 países pediram uma moratória temporária sobre o projecto, incluindo França, México, Dinamarca e Grã-Bretanha. A estes juntaram-se mais de 800 cientistas de 44 países que decidiram escrever uma carta aberta às autoridades norueguesas. “A enorme importância do oceano para o nosso planeta e as pessoas, e o risco de perda em larga escala e permanente de biodiversidade, ecossistemas e funções ecossistémicas, exige uma pausa de todos os esforços para iniciar a mineração do mar profundo”, afirmou Karoline Andaur.

Os apelos para uma moratória foram mesmo ecoados por numerosas empresas globais como a BMW, Microsoft, Ford e Google. O Banco Europeu de Investimento retirou da sua carteira os investimentos em mineração de minerais marinhos devido aos seus potenciais impactos climáticos e naturais.

Embora a Noruega não seja membro da União Europeia, em Janeiro a Comissão Europeia lançou um apelo a Oslo para proibir a mineração em alto mar até que se saiba mais sobre seus prováveis efeitos. E até que seja claramente provado que a mineração não prejudicará os ecossistemas marítimos. Em Fevereiro, o Parlamento Europeu aprovou por unanimidade uma resolução altamente crítica dos planos noruegueses.

Animação de mineração em alto mar.
(Foto: Imagem da empresa Loke)

“A mineração no fundo do mar pode colocar em perigo algumas das áreas mais sensíveis e vulneráveis do mundo”, disse-me Peter Haugan, diretor político do Instituto de Investigação Marinha da Noruega e director do Instituto Geofísico da Universidade de Bergen. “O dia em que a Noruega decidiu tomar esta atitude foi um dia muito triste para o nosso país.”

Haugan está convencido de que a decisão das autoridades norueguesas está em desacordo com a lei: “Não foram previamente recolhidas provas científicas suficientes sobre as prováveis consequências”. Segundo Haugan, os políticos agiram de forma precipitada. As respetivas licenças serão atribuídas em breve e as empresas requerentes não possuem capacidade para explorar adequadamente a área separada para a exploração mineira dos fundos marinhos.

“Em absoluto, é demasiado cedo para a emissão de licenças!”. Haugan foi taxativo. “Sabemos realmente muito pouco sobre os ecossistemas a tais profundidades, e também sobre o próprio fundo do mar. Há muita coisa que não sabemos! E o mesmo vale para as espécies animais que podem ser encontradas lá. Estamos a falar de um ambiente extremamente sensível e frágil, que não compreendemos. Os riscos são enormes. A mineração está planeada para ocorrer em níveis significativamente mais profundos do que os de nossos actuais poços de petróleo e gás, onde os riscos são pelo menos um pouco conhecidos!”

Haugan acredita que seriam necessários cerca de 10 anos para uma exploração suficientemente séria dos ecossistemas de águas profundas. O mesmo se aplica a um exame suficientemente sério dos riscos mineiros a longo prazo.

O diretor do Instituto de Investigação Marinha da Noruega teme que o exemplo norueguês possa encorajar outros países com ambições semelhantes. Também acredita que o Governo norueguês pode estar a apressar o processo de emissão de licenças para fortalecer seu controle sobre o Ártico, especialmente o arquipélago de Svalbard. “As preocupações territoriais podem estar a desempenhar um papel importante. Embora isso seja actualmente mera especulação da minha parte.”

Haugan espera que o processo de exploração dos fundos marinhos enfrente uma resistência crescente por parte da comunidade ambientalista. Também duvida muito da viabilidade económica do negócio. “Serão necessários investimentos tremendos, do tipo que até as grandes empresas de gás e petróleo, como a empresa estatal norueguesa Equinor, desconfiam. Para os grandes investidores, ainda há muitas incógnitas.”

Em nome da transição verde

A organização Environmental Justice Foundation (EJF) declarou recentemente que a decisão da Noruega representava “uma marca negra irrevogável na reputação da Noruega como um Estado oceânico responsável”. Um relatório da EJF afirma que a mineração em alto mar não é necessária para a transição energética. De acordo com o relatório, os actuais objetivos climáticos da humanidade poderiam ser alcançados através de uma combinação de novas tecnologias, economia circular e reciclagem. Desta forma, a nossa procura de metais e minerais poderia ser reduzida em 58%. O EJF está firmemente convencido de que os benefícios potenciais da mineração em alto mar não compensam certos danos para o meio ambiente.

Como já foi referido, a Greenpeace classificou a votação parlamentar de Janeiro como um dia da vergonha. “É embaraçoso ver a Noruega posicionar-se como líder oceânico enquanto dá luz verde à destruição dos oceanos nas águas do Ártico”, afirmou o gestor de projectos da Greenpeace Noruega, Frode Pleym. A sua visão é ecoada por Haldis Tjeldflaat Helle, líder da campanha contra a mineração em alto mar da Greenpeace Nordic.

“O Governo parece estar com muita pressa”, disse-me Helle, em Oslo. “A sua pressa na emissão de licenças sugere que quer fazê-lo o mais rapidamente possível. O concurso saiu no final de Abril. A data limite para inscrições era 21 de maio. Com todos os feriados nacionais pelo meio, o concurso só esteve aberto durante onze dias úteis. Na indústria petrolífera, o período normal é de dois meses”.

De acordo com Tjeldflaat Helle, a janela excepcionalmente curta para o concurso sugere que o Governo sabia que as empresas já estavam preparadas. Também acredita que o Executivo está a apressar o processo devido às eleições parlamentares do próximo ano – com a actual coligação a querer “cimentar” a decisão de abrir uma grande parte do fundo marinho do Ártico para exploração.

De qualquer modo, três ‘start-ups‘ apresentaram um pedido de licença de pesquisa. As nossas fontes acreditam que o Governo norueguês poderá anunciar a sua decisão já em Julho ou, o mais tardar, até ao final do Verão. Depois disso, a legislação exige um prazo de 90 dias para consulta e debate público. As primeiras licenças deverão, por conseguinte, ser emitidas no primeiro trimestre do próximo ano. O que significa que a exploração real do fundo do mar pode começar em 2025.          

Haldis Tjeldflaat Helle lidera uma campanha contra a mineração no mar profundo da Greenpeace Noruega.
(Foto: Boštjan Videmšek)

Ao conversar com os representantes da enorme indústria, fica-se com a impressão de haver uma confiança esmagadora. “A confiança deles está apenas na superfície”, advertiu Haldis Tjeldflaat Helle. “Tenho a certeza de que eles estão bem cientes do quanto de adivinhação está em jogo. Há tantas incógnitas! Especialmente no que diz respeito ao funcionamento dos equipamentos que estão a desenvolver”.

Como muitos dos seus pares, Tjeldflaat Helle está profundamente perturbada com o facto de que as empresas de mineração negligenciaram a inclusão de um plano de exploração a longo prazo do fundo do mar e das profundezas onde residem numerosas espécies animais desconhecidas. “Normalmente, são necessários oito a 10 anos apenas para classificar e descrever uma nova espécie animal. E, lá em baixo, certamente serão tantas! Noventa e nove por cento da área destinada à mineração está inexplorada. O Governo afirma que a extracção será realizada com a máxima responsabilidade ambiental. Mas como podem dizer isso com tão pouca informação?!”

Para Tjeldflaat Helle, o argumento de que o projecto faz parte da transição verde não resiste ao escrutínio. “A transição verde deve levar a sério a preservação do meio ambiente, e não atacar cegamente ecossistemas completamente inexplorados! Isto não faz qualquer sentido, o que é comprovado pela resposta unânime dos ambientalistas noruegueses e internacionais. A mineração em alto mar representa um risco tremendo para a diversidade biótica. Na verdade, é também um enorme risco do ponto de vista das alterações climáticas, uma vez que o oceano serve de sumidouro de carbono.”

A líder da Campanha contra a mineração em alto mar da Greenpeace Nordic também não está convencida da viabilidade económica do projecto. Helle é rápida em alertar que as descobertas de diferentes levantamentos geológicos se contradizem enormemente.

Ao mesmo tempo, a mineração do fundo marinho do Ártico seria diferente da mineração do Pacífico – muito mais agressiva. De acordo com Tjeldflaat Helle, isso implicaria muitos equipamentos novos. “Não esqueçamos que partes da área designada estão localizadas até 500 quilómetros da costa mais próxima. Trabalhar nas águas longínquas do Ártico será extremamente exigente, e o alcance limitado dos helicópteros de resgate é apenas parte da razão pela qual também será muito perigoso. Serão necessários enormes investimentos apenas para garantir a segurança da força de trabalho”.

A economia e o bem-estar da Noruega foram construídos com base no petróleo e no gás.
(Foto: Boštjan Videmšek)

A cada novo dia, Tjeldflaat Helle está ainda mais convencida de que a abordagem do Executivo norueguês para a mineração em alto mar é a mais irresponsável entre as partes interessadas. “Devo repetir que toda a comunidade ambientalista está extremamente preocupada. Um projecto tão importante deve basear-se na transparência e na responsabilidade. Até agora, não foi esse o caso. Mesmo algumas das perguntas mais básicas que dirigimos aos decisores não foram respondidas. E, no entanto, estão prestes a começar a distribuir licenças!”

Com tão pouco apoio entre os ambientalistas, como é possível que o projecto tenha recebido luz verde? É certamente curioso que a mineração em alto mar pareça ser apoiada apenas por políticos.

“É uma questão do contexto norueguês específico”, explicou Tjeldflaat Helle. “O primeiro-ministro – o líder do Partido Trabalhista, Jonas Gahr Støre – é um grande apoiante do projecto. Ele tem muito capital político investido nisso. Antes da votação parlamentar, houve muita disputa entre vários Ministérios. A mineração dos fundos marinhos é uma questão controversa mesmo dentro das fileiras governamentais. O único Ministério firmemente a favor do projecto foi o Ministério da Energia. É assustador que a ideia tenha sido aprovada pelo Parlamento de qualquer maneira, uma vez que sugere que a vontade do primeiro-ministro foi o factor decisivo.

Por outro lado, a Noruega é a terra do petróleo e do gás. Os líderes destas indústrias exercem uma grande influência na nossa sociedade, tanto formal como informal. Quando olhamos para as empresas que decidiram candidatar-se, podemos dizer com segurança que uma parte das indústrias mencionadas decidiu embarcar no ‘comboio mineiro’. Mas há tanta coisa que simplesmente não sabemos. Tanto os ambientalistas como os jornalistas têm muita dificuldade em chegar às pessoas que estão a tomar estas decisões. Em geral, apenas nos remetem para algum burocrata inferior ou outro”.

Todos os dias, Tjeldflaat Helle fica cada vez mais horrorizada com a falta de transparência, dado que a Noruega gosta de se orgulhar de ser um dos países mais democráticos que existem. “Talvez o mais arrepiante de tudo seja o facto de o Governo ter decidido por uma posição pública segundo a qual a resposta negativa do Parlamento Europeu foi causada por ambientalistas que espalham desinformação”.

Os pescadores noruegueses são contra o projecto.
(Foto: Boštjan Videmšek)

Muitos ambientalistas noruegueses acreditam que as autoridades de Oslo esperavam ingenuamente que a história da mineração em alto mar passasse abaixo do radar do público. No entanto, a resposta dos ambientalistas foi rápida e contundente – tanto a nível interno como externo.

“Espero que tudo isso ainda possa ser interrompido”, confidenciou Tjeldflaat Helle. “Em princípio, as licenças em questão só dizem respeito à exploração. As licenças de mineração estão condicionadas à comprovação de que o processo não seria muito prejudicial para o ambiente. Ainda há uma hipótese de que o Governo decida dar um passo atrás. E o próximo Executivo também pode reverter as mudanças na Lei. É apenas uma questão de vontade política.”

Neste Verão, a Greenpeace pretende levar um veleiro cheio de cientistas para a área designada do Ártico para realizar suas próprias pesquisas. A viagem pode ser vista como o início da campanha contra a mineração em alto mar, e será seguida por navegar ao longo da costa norueguesa e aumentar a consciência pública.

A brincar com o futuro

Uma sucessão de governos noruegueses tem vindo a considerar a ideia de exploração em alto mar pelo menos nos últimos oito anos. A situação tornou-se grave com a aprovação da Lei dos Minerais do Mar em 2019. “O acto é apenas uma estrutura que pode ser usada para muitos propósitos”, disse-me a bióloga marinha Kaja Lønne Fjærtoft. “Em 2020, a Noruega aprovou uma lei abrindo a área designada. O acto exige uma estimativa holística dos efeitos para o ambiente, para a economia e para a comunidade. Só se a estimativa for favorável é que os políticos podem decidir sobre os próximos passos. Isto também é apoiado pela Lei Mineral do Mar, que afirma que, em caso de dados insuficientes, é necessário um estudo mais aprofundado.”

Como alguém que trabalhou para o Ministério da Energia norueguês, Lønne Fjærtoft está intimamente familiarizada com o funcionamento da indústria fóssil norueguesa e da burocracia do país. Há cerca de 30 meses, decidiu juntar-se à  organização World Wide Fund (WWF) for Nature, onde lidera agora a campanha contra a mineração em alto mar.

O Governo norueguês anterior separou uma área de 600.000 quilómetros quadrados para a mineração do fundo do mar. Uma grande parte da área não faz parte da zona económica exclusiva norueguesa, onde a Noruega tem direito apenas aos recursos no fundo do mar, enquanto tudo acima do fundo é considerado águas internacionais. Estas águas acolhem actualmente barcos de pesca de vários países, muitos dos quais já manifestaram uma oposição fervorosa às intenções mineiras norueguesas.

Não há dúvida de que a mineração em alto mar perturbaria o funcionamento normal das águas internacionais de várias formas. Esta é uma das razões pelas quais a decisão norueguesa causou tanta celeuma junto da comunidade internacional.

Kaja Lønne Fjærtoft, líder da campanha WWF Deep Sea Mining.
(Foto: WWF)

A Agência Norueguesa do Ambiente, um organismo governamental, respondeu à ambição dos planos mineiros notificando os decisores de que dois anos não eram suficientes para a preparação de uma avaliação de risco suficientemente sólida.

Poucos ou nenhuns dados estão disponíveis para quase toda a área designada. “Há partes onde a profundidade exacta do mar nem sequer foi medida”, explicou Lønne Fjærtoft. “A própria análise do Governo confirma que, ‘devido às lacunas no nosso conhecimento’, uma estimativa holística do risco é actualmente impossível. Só esta afirmação exige legalmente que iniciem um estudo mais aprofundado. Mas não o fizeram. No entanto, reduziram a área potencial de mineração para 281.000 quilómetros quadrados. O motivo? Uma análise tendenciosa indicou que esta área reduzida era rica em minerais desejáveis. A análise dos recursos naturais pela Direção Norueguesa de Offshore foi realizada sem consulta pública. Isso causou uma enorme revolta entre numerosas organizações ambientalistas, que viram a abordagem governamental como completamente irresponsável.”

A Agência Norueguesa do Ambiente considerou a referida análise inválida, uma vez que não preenchia determinados critérios europeus. Segundo a Agência, a análise também não atendeu às exigências do artigo 22 da Lei dos Minerais do Mar, que elenca claramente os critérios para uma análise válida dos efeitos sobre o meio ambiente. Além disso, a Agência declarou que a análise violava os princípios de precaução e a legislação norueguesa em matéria de biodiversidade.

“Foi a declaração mais contundente da Agência em toda a sua história”, relatou Lønne Fjærtoft na filial norueguesa da WWF, no centro de Oslo. “Na verdade, usaram a palavra ‘ilegal’! Até mesmo a petrolífera estatal Equinor começou a pedir cautela ao Governo.”

A WWF-Nordic e outras organizações ambientalistas esperavam que a sua revolta instigasse as autoridades de Oslo a conduzir mais investigações. No entanto, isso não aconteceu. Muito pelo contrário: em Janeiro, o Executivo submeteu o projecto a votação e o Parlamento aprovou-o por larga maioria.

Muitos dos activistas e cientistas com quem falei, incluindo Kaja Lønne Fjærtoft, acreditam que os deputados foram induzidos em erro – que não lhes tinham sido apresentadas todas as informações relevantes. Eles podem ter sido enganados pela insistência do Governo de que se tratava principalmente de uma questão de exploração. Várias fontes disseram-me que, desde então, alguns dos deputados se arrependeram de terem aprovado a proposta… Mas apenas em privado. Até agora, nenhum deles tentou expiar publicamente o erro.

No entanto, a portas fechadas, o ministro das Relações Exteriores, Espen Barth Eide, classificou o projecto de mineração em alto mar como a maior mancha na imagem pública norueguesa da História. “Antes da votação, alguns dos deputados nunca tinham ouvido falar da exploração mineira dos fundos marinhos”, explicou Lønne Fjærtoft. “O Governo tentou manter o tema abaixo do radar de todos, e os deputados simplesmente aprovaram o que lhes foi dito para aprovar.”

red and white ship on sea under white clouds during daytime
Svalbard (Foto: Alena Vavrdova)

Lønne Fjærtoft também partilhou os seus receios sobre o que pode acontecer caso o projecto seja interrompido. Irão as empresas licenciadas em fase de arranque, depois de terem investido enormes quantias de dinheiro, decidir processar o Estado por terem sido induzidas em erro?

“As empresas privadas interessadas na mineração em alto mar são movidas puramente por motivos financeiros”, garantiu Lønne Fjærtoft. “A sustentabilidade não lhes diz minimamente respeito. A nossa mensagem para o Executivo foi: não sabe o que está a a fazer! O Instituto Norueguês de Pesquisa Marinha afirmou claramente que 99% da área designada estava completamente inexplorada. Por isso, tentámos pressionar o Governo a realizar mais estudos. Durante um ano e meio, apontámos enormes incoerências e até violações da lei. No final, decidimos processar o Estado norueguês. Foi uma decisão difícil, mas tivemos que considerar que as acções do nosso Governo poderiam ser usadas como precedente em outro lugar.”

Primeiro, a WWF alertou o Executivo, esperando que isso pudesse dissuadir os governantes de prosseguirem com novas acções. Todas essas esperanças foram em vão: simplesmente rejeitaram todas as reivindicações da WWF. Assim, em Maio, os ambientalistas finalmente entraram com uma acção a sério. A lei exige que os tribunais realizem a primeira ronda de audições no prazo de seis meses.

Apenas alguns dias após a apresentação da acção, o Governo iniciou o processo de licenciamento. Portanto, é preciso questionar o que acontece caso a acção judicial seja bem-sucedida. O projecto pode ser interrompido após a concessão das licenças e a exploração dos fundos marinhos estar bem encaminhada?

“Não sabemos”, respondeu Lønne Fjærtoft. “Não se trata apenas de uma questão de legislatura interna; é também uma questão de direito internacional. É preciso entender que esta é a pior decisão que qualquer Executivo norueguês já tomou em relação ao meio ambiente. Os oceanos são fundamentais para a nossa sobrevivência. Arriscar a sua segurança significa brincar com o futuro!”

Os cientistas receiam que qualquer forma de exploração do fundo do mar – com as suas montanhas subaquáticas, onde o magma quente frequentemente irrompe das fontes hidrotermais para água gelada – possa causar enormes danos. A mineração causaria o aumento de enormes quantidades de sedimentos, o que provavelmente perturbaria as rotinas das populações de águas profundas de bactérias, algas, esponjas, baleias e golfinhos – para citar apenas algumas espécies.

Os países vizinhos da Noruega também poderão ser afetados. O mesmo se aplica a todo o Ártico, incluindo as suas margens. De acordo com os planos actuais, a mineração em alto mar da Noruega seria mais invasiva do que a do Pacífico.

snow covered mountain near body of water
Svalbard (Foto: Lloyd Woodham)

A velocidade que o Governo norueguês está a impor ao projecto é extremamente preocupante para os ambientalistas. Apesar dos anos que passou como ‘insider‘, Lønne Fjærtoft admite que não compreende totalmente a pressa. “O projecto é empurrado de forma mais agressiva pelo Ministério da Energia”, disse-me. “Mais especificamente pelo próprio ministro da Energia.”

A líder da campanha contra a mineração em mar profundo também destacou os enormes esforços que as autoridades norueguesas têm investido para acalmar a comunidade internacional. A Noruega enviou recentemente uma delegação a Kingston, na Jamaica, onde se situa a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA). A delegação era composta por três representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dois do Ministério da Energia, um da Direcção Offshore e nenhum da Agência Ambiental. O objetivo oficial da visita era, naturalmente, garantir “os mais elevados padrões ambientais”.

Os proponentes do projecto de mineração em alto mar estão claramente interessados em impedir uma proibição internacional. Embora tal proibição não pareça muito provável, a ofensiva diplomática de Oslo contra a ISA ainda pode ser interpretada como uma tentativa de antecipar estrategicamente as acções daquele órgão internacional.

A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos funciona no âmbito das Nações Unidas e deverá aprovar o seu veredicto final sobre a mineração em mar profundo em 2025. Está também a ser preparado um regulamento para a exploração mineira em alto mar. Actualmente, a prática não é proibida em águas internacionais. A iniciativa para a formação do regulamento foi dada pelo pequeno Estado insular de Nauru, um dos ‘Estados patrocinadores’ para os beneficiários de licenças de exploração mineira em mar profundo.

O contexto geopolítico

Assim que desligava o meu gravador, muitas das minhas fontes mostraram-se ansiosas para falar sobre as razões negligenciadas e difíceis de provar pelas quais uma parte da elite política e económica norueguesa está a curvar-se para garantir o controle sobre os recursos naturais no Ártico.

As razões, muitos acreditam, são principalmente geopolíticas.

A Noruega pretende reforçar a sua posição nos confins setentrionais do globo, não só devido à abundância de recursos naturais, mas também devido à rápida escalada das tensões entre os Estados Unidos e a Rússia. A Noruega partilha a sua fronteira ártica com a Rússia, enquanto o tratado de Svalbard é suficientemente frouxo para deixar margem para várias interpretações. A última vez que a Noruega expressou publicamente a convicção de que tem direito a uma interpretação mais generosa foi em 2007 – quando o actual primeiro-ministro Jonas Gahr Støre era ministro dos Negócios Estrangeiros.

A situação actual lembra muito o tempo da Guerra Fria. Naquela altura, como hoje, uma Noruega altamente militarizada era considerada como um dos principais membros – e territórios da NATO. “O momento não é coincidência”, disseram-me as minhas fontes norueguesas. Os próprios territórios do Norte são considerados tão vitais como os recursos localizados abaixo do fundo do mar.

Para compreender o contexto geopolítico da mineração em mar profundo, as seguintes informações podem ser úteis. Três das cinco empresas de armamento que recebem os maiores investimentos financeiros da Comissão Europeia – através da ASAP (Act in Support of Ammunition Production ou Lei de Apoio à Produção de Munições, em português) e da EDF (Fundos Europeus de Defesa) – estão sediadas na Noruega: Nammo (Nordic Ammunition Company), Nammo (Raufoss) e Kongsberg (Defence and Aerospace AS). Através da  empresa Rheinmetall Nordic AS, a Noruega está também ligada à alemã Rheinmetall, o maior beneficiário de contratos europeus de defesa.

Resumindo: a Noruega está no bom caminho para se tornar o principal parceiro da União Europeia na produção de armas.

A  empresa Kongsberg, parcialmente detida pelo Estado norueguês, é o maior investidor individual na empresa norueguesa de mineração em mar profundo Loke. A Kongsberg é o maior produtor mundial de sistemas militares de longo alcance. É também o parceiro estratégico da canadiana The Metals Company, actualmente o ‘player’ mais forte no mercado global de equipamentos de mineração em alto mar.

Lofoten, no Ártico da Noruega.
(Foto: Boštjan Videmšek)

A ‘start-up’ canadiana é vista como a mais avançada quando se trata de desenvolvimento de tecnologia e mineração do fundo do mar. No final de 2022, realizou uma escavação teste das primeiras 3.000 toneladas de rochas e pedras do fundo do mar. Este ano, a The Metals Company deve solicitar uma licença para iniciar a mineração em escala industrial.

Walter Sognnes, CEO (presidente-executivo) da Loke, é geofísico por formação. Depois de mais de três décadas na indústria petrolífera, passou os últimos 20 anos a trabalhar como empresário focando-se nas transações petrolíferas na Noruega e na Grã-Bretanha. Há cinco anos, decidiu embarcar no comboio de transição verde, como muitas pessoas que costumavam trabalhar para a indústria do petróleo.

Nas próprias palavras de Sognnes, a razão por detrás da sua mudança de carreira foi a sua percepção da “interessante convergência entre as indústrias de petróleo e gás e potenciais projectos de mineração em alto mar”. Por isso, foi cofundador da empresa Loke.

“No início, decidimos concentrar-nos na Noruega”, lembrou Sognnes. “Conseguimos atrair uma série de investidores poderosos – do tipo ‘smart-money‘, aqueles que trazem dinheiro e novas tecnologias. Juntamente com os nossos parceiros, temos desenvolvido tecnologias de mineração e tecnologias para exploração do fundo do mar com o objetivo de causar danos mínimos ao meio ambiente.”

Através do registo na Grã-Bretanha, a Loke já obteve duas licenças para a exploração e mineração da Zona Clarion-Clipperton, localizada em águas internacionais entre o México e o Havai. Acredita-se que o fundo marinho da zona seja o mais rico do mundo em metais e minerais. A empresa norueguesa conseguiu obter as duas licenças através da compra de uma empresa anteriormente detida pelo gigante norte-americano do armamento Lockheed Martin. No processo, a Loke transformou-se num dos principais detentores de licenças na gigantesca Zona Clarion-Clipperton, que se pode tornar a Arábia Saudita da mineração subaquática.

Em 21 de Maio, a Loke enviou uma proposta ao Executivo norueguês, na qual listou as áreas árticas consideradas mais adequadas para mineração. “Os locais para exploração e potencial mineração devem ser escolhidos este Outono”, apontou Sognnes. “As coisas devem avançar relativamente rápido dado que a legislação norueguesa sobre minerais é quase uma cópia da legislação que rege a indústria de petróleo e gás. Mas a referida indústria desenvolveu-se ao longo de várias décadas, enquanto a indústria mineira em mar profundo está apenas a ser formada. Acho que isso significa que teremos que nos adaptar à medida que avançamos.”

Dissonância cognitiva norueguesa

Sognnes acredita que as primeiras licenças de exploração serão emitidas no início de 2025.

É assim que ele descreve a sua motivação para ter entrado no negócio de mineração em alto mar: “A Noruega tem uma longa história de falar sobre mais cedo ou mais tarde ter que fechar a indústria de petróleo e gás e procurar alternativas. Mas não podemos simplesmente fechar a nossa maior indústria! Os engenheiros petrolíferos deveriam procurar novas formas de emprego mais verdes. Mas que tipos de empregos seriam esses, exactamente? Foram apresentadas muito poucas propostas específicas. Dado o nosso vasto conjunto de excelentes quadros, isso despertou a minha ideia de criar uma empresa de mineração de fundos marinhos. Quero ajudar a construir esta nova indústria, que tem muito em comum com a indústria petrolífera. A transição verde só será possível se forem assegurados recursos suficientes para as suas tecnologias.”

Na opinião de Sognnes, a indústria norueguesa de mineração em mar profundo não precisa da indústria de mineração quando se trata de exploração, escavação e transporte de recursos para a superfície. Todo o ‘know-how’ e equipamento necessários estão nas mãos da indústria petrolífera.

“É muito diferente do que na superfície”, disse Sognnes, continuando a listar os argumentos para a exploração do fundo do mar. “Se queremos manter o mundo ocidental competitivo com a China no contexto da transição verde, temos de criar a nossa própria linha de abastecimento. E uma adequada, abrangendo todos os elos desde a mineração até o processamento e a fabricação de produtos finais. A China controla actualmente a maior parte das minas e dos recursos naturais que nelas se encontram. Devido a razões ambientais e comerciais, o Ocidente desistiu quase totalmente da mineração e processamento, meio que realocando-os ou transferindo-os para a Ásia … Portanto, agora estamos muito atrasados na frente dos recursos naturais. E a procura certamente só aumentará e aumentará.”

Walter Sognnes, CEO da Loke.
(Foto: D.R./Loke)

“O Ocidente tem padrões excepcionalmente elevados de proteção do ambiente, o que é excelente. Também temos uma mentalidade de ‘não no meu quintal!’. Essa mentalidade é parte da razão pela qual a maior parte da mineração foi feita longe de nossos olhos e mentes. Não nos importávamos. Mas quando as imagens da escavação de cobalto na República Democrática do Congo chegam ao público, há um enorme clamor”, disse Walter Sognnes, a dissecar a dissonância cognitiva e moral em jogo em todo o mundo ocidental.

O CEO da Loke está ciente da forte oposição nacional e internacional a incursões agressivas no mundo natural. Especialmente nos seus impactos desconhecidos. Segundo Sognnes, a fase de exploração deve ser bastante fácil, ou seja, tecnologicamente pouco exigente. E também barata. Não é difícil localizar minerais e metais na crosta de manganês. O mesmo vale para a localização das áreas onde a mineração deve se mostrar comercialmente viável. A tecnologia usada pela indústria de petróleo e gás – como submarinos sem tripulação e drones navais – já está disponível.

Sognnes acredita que a fase de exploração, incluindo a marcação do fundo do mar e o aprofundamento da nossa compreensão dos ecossistemas de águas profundas, deve demorar entre três e cinco anos.

“Até lá, tanto o plano ambiental como o plano mineiro estarão prontos. Caso o Governo confirme esses planos, o processo de produção poderá começar dois anos depois. A tarefa mais exigente é estabelecer um processo de produção eficiente com um impacto mínimo no meio ambiente. Uma vez que os recursos sejam trazidos para a costa, precisaremos da infraestrutura para processá-los. Este é actualmente o nosso maior desafio, uma vez que a referida infraestrutura não existe. O que havia, fechámos. O que significa que temos de construir de raiz. Hoje, a maioria dos minerais são processados na China. Mas se os enviarmos para lá, não teremos conseguido nada. O mundo ocidental precisa de reagir o mais rapidamente possível”, afirmou Sognnes.

Na sua opinião, o monopólio chinês é um grave problema geopolítico e económico. “Somos bastante vulneráveis. Quer queiramos quer não, a nossa transição verde está firmemente ligada à nossa indústria mineira. Não vejo a abertura de novas minas na densamente povoada Europa e nos Estados Unidos. As nossas melhores minas estão encerradas há décadas. Então, o que devemos fazer? Esta pergunta é melhor dirigida aos geólogos. E a resposta que eles encontraram está no fundo do mar, com sua abundância de metais e minerais. É claro que precisamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para optimizar os equipamentos, a fim de proteger a natureza. Se conseguirmos isso, e se formos capazes de ganhar a confiança das pessoas, então estamos olhando para o nascimento de uma nova indústria incrivelmente benéfica”, disse o CEO da Loke em resposta aos críticos da mineração no fundo do mar Ártico.

O empresário norueguês está bem ciente de que o sucesso do projecto estimularia o desenvolvimento em países concorrentes como a China, a Índia e a Rússia, onde acredita que as autoridades terão pouca simpatia pelas preocupações ambientalistas. “A transição verde não significa apenas ‘desligar-nos’ das fontes de energia fósseis. Na verdade, significa substituir a indústria fóssil pela indústria mineira. Isto é uma espécie de paradoxo.”

Qual é, então, a sua resposta às preocupações inteiramente justificadas do público sobre os potenciais danos irreparáveis para o ambiente? Que tipo de garantias pode oferecer?

Animação de mineração em alto mar (Foto: Imagem da empresa Loke)

“Agimos de acordo com a legislação e com o plano do Parlamento norueguês”, respondeu Sognnes. “Estamos estritamente sujeitos à regra da precaução. Também não somos nós que decidimos se a indústria avança ou não. Mas temos de começar por algum lado. Precisamos, pelo menos, de recolher o máximo de informação possível para preencher as lacunas no nosso conhecimento. Os cientistas estão sempre a aprender. Estou bem ciente de que nunca saberemos tudo. Mas devemos esforçar-nos por saber o suficiente para tomar as decisões correctas. O fundo do mar contém tudo o que precisamos para a transição verde, excepto lítio. Existe actualmente uma moratória sobre a exploração mineira dos fundos marinhos até que seja aprovada uma regulamentação adequada. Àqueles que se opõem a nós, diria: permitam-nos, por favor, que preenchamos as lacunas do nosso conhecimento. E com base nisso, podemos decidir.”

Se tudo correr como planeado, Sognnes espera que a mineração no círculo polar ártico comece depois de 2030.

“Penso que as elites políticas e económicas vêem a mineração em alto mar como a continuação da indústria do petróleo e do gás, que está lentamente a seguir o seu curso. Os burocratas do petróleo precisam de um novo projecto. E estão a usar a transição verde como desculpa”, disse-me Gytis Blaževičius, que dirige a ONG (organização não-governamental) norueguesa Natur og Ungdom (Natureza e Juventude).

“Durante 10 anos, as pessoas encarregadas de gerir os recursos naturais dentro das estruturas governamentais não sabiam que o Ministério da Energia estava a preparar-se para a mineração em alto mar. Tudo aconteceu furtivamente, em silêncio…”, adiantou o activista de 23 anos.

Blaževičius também demonstra o seu espanto com a velocidade estonteante com que o processo de emissão de licenças tem vindo a desenrolar-se, dada a fama da burocracia norueguesa pelo seu ritmo glacial. Blaževičius está também perplexo com a confiança dos representantes da “futura grande indústria”, dado que todas as empresas candidatas estão ainda na sua fase de arranque. E o pouco que sabemos não deve exactamente encorajar os investidores a virem a correr.

“Até os custos de exploração serão astronómicos. Há alguns anos, a Universidade de Bergen realizou uma única pesquisa na área marcada para mineração. A conta era de um milhão de euros. Para explorar toda a área serão necessários milhares de milhões. E muito tempo. Não há garantia de que uma abundância de metais e minerais esteja à nossa espera lá em baixo”, disse Blaževičius. Acrescentou que, nas perspectivas actuais, acha difícil acreditar que a indústria do mar profundo será viável. “Estou bastante confiante em prever que o projecto vai acabar por ser um fracasso.”

Gytis Blaževičius, Natur og Ungdom (Jovens Amigos da Terra)
(Foto: Boštjan Videmšek)

Ao mesmo tempo que pressiona em prol da exploração mineira dos fundos marinhos, o Governo norueguês está também a emitir novas licenças para projectos de petróleo e gás no Mar do Norte e no Mar de Barents. Durante alguns anos, isso foi visto como controverso até mesmo na Noruega – um país que alimenta a sua transição verde com os lucros de exportação da indústria fóssil. Na Noruega moderna, a dissonância cognitiva parece estar na ordem do dia.

Até agora, o público não reagiu aos planos do Executivo de lançar a indústria de mineração em mar profundo. O homem e a mulher comuns não sabem praticamente nada sobre o projecto de mineração do fundo do mar. Blaževičius explicou que isso não se deveu apenas aos métodos não transparentes do Governo, mas também ao facto de que o público norueguês prefere deixar as questões ambientais para as ONGs. A Noruega possui cinco milhões de habitantes e 24 milhões de membros de organizações não governamentais. O que significa que, em média, cada cidadão é membro de quase cinco ONG diferentes. Em muitos aspetos, estas organizações substituíram a sociedade civil.

Na opinião de Blaževičius, a resposta do público norueguês tem sido, até agora, bastante fraca devido à natureza distante do projecto. Tanto de uma forma geográfica como temporal: “A Noruega ganhou muito dinheiro com a guerra ucraniana e os consequentes picos nos preços do petróleo. Assim, começámos a comercializar-nos como a fonte de gás segura e fiável da Europa. E, de repente, a energia fóssil deixou de ser tão controversa como era! Isso trouxe um novo vento para as velas do ‘lobby’ do petróleo e gás, e muitas novas licenças para plataformas estão a ser entregues.”

N.D. : Reportagem original em inglês traduzida para português.


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