RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

As seitas à descoberta de Portugal

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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, do grande repórter Rui Araújo, uma reportagem publicada originalmente em Abril de 1985, na revista GRANDE REPORTAGEM, sobre a Igreja de Cientologia em Portugal.


Igreja de Cientologia: «chantagem económica», lavagem ao cérebro e ruptura com os laços afectivos. (Foto: D.R.)

Uma seita exige ao Estado português três milhões de dólares de indemnização pelos prejuízos causados ao iate Apollo, assaltado por populares. 

Foi no Funchal, durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC).

O cônsul da Bélgica no Funchal acabou o último rolo de Super 8 e foi para casa jantar, descansado. Tinha cumprido a sua missão. As actividades da tripulação do iate «Apollo» estavam metodicamente anotadas e filmadas. Visitas, carregamentos de papel, etc. O barco interessava-o. Atrás dos seus proprietários oficiais — a Cindusta – Consultores Industriais e a Operation & Transport Corporation Ltd (registada no Panamá no dia 1 de Janeiro de 1968)— escondia-se uma seita religiosa das mais esquisitas: a «Igreja de Cientologia».

3 de Outubro de 1974.

O «Apollo» é assaltado durante a noite por um bando de populares exaltados que acusam a tripulação de trabalhar para a CIA. Os prejuízos elevam-se — segundo os jornais da época — a 115 mil contos. Com a subida progressiva do dólar e a morosidade do processo, a bagatela inicial subiu já para cerca de meio milhão de contos.

Dez anos depois do incidente, a Auditoria Administrativa de Lisboa abriu o processo e deverá decidir em meados de Maio se houve de facto incúria por parte das autoridades portuguesas e tão elevados danos materiais.

A história da Cientologia começou muitos anos antes. Em 1950, o «profeta», Ron Hubbard, abre uma clínica de «Dianética»  em New Jersey, nos Estados Unidos, para «libertar as pessoas de sentimentos, sensações e emoções indesejadas.»

O negócio dá bons lucros, mas também levanta algumas dúvidas às autoridades do Estado de New Jersey e à Associação Médica Americana.

É nessa altura que Hubbard começa a andar com uma caixa de sapatos cheia de notas, para o caso de se ver obrigado a partir para horizontes mais tranquilos.

O «profeta» Hubbard cria em 1954 a «Igreja de Cientologia». A sua filosofia — considerada uma amálgama de ficção científica e de psicanálise de meia tigela — resume-se a um lacónico «saber como saber».

Também eu quis saber, mas afinal aquilo é uma ciganada! Querem-nos é vender pechisbeque por ouro… — conta Rui S., 37 anos, criativo plástico numa multinacional, em Lisboa.

Foi abordado, no Largo do Chiado, por uma rapariga que lhe pediu para «responder a duas ou três perguntas» de um inquérito sobre personalidade humana.

 — A princípio, não sabia que era uma seita religiosa; pensava tratar-se de mais uma daquelas sondagens chatas…

Tratava-se, afinal, de um contacto da «Igreja de Cientologia», desta vez sob o nome de «Instituto de Dianética de Lisboa», uma das muitas denominações que a organização de Hubbard tem vindo a adoptar para esconder a sua verdadeira identidade nos 25 países onde está a actuar. Rui S. teve que comprar livros da seita no valor de algumas dezenas de contos para poder ver-se livre dela.

Um outro processo bastante utilizado pela Cientologia é o anúncio discreto na imprensa. Aí se propõe «grande futuro» e melhoria de conhecimentos.

Foi através de um desses anúncios (publicado no Diário de Notícias) que cheguei à fala com os cientologistas, na Travessa da Trindade, em Lisboa, a sede da organização.

Uma sala nua, paredes decrépitas e muita sujidade. Luxuosos cartazes (em inglês) propõem a felicidade a toda a gente, amanhã. E um teste gratuito, para já.

São 200 perguntas sobre a vida pessoal, os gostos, os temores, as ambições e as opiniões políticas de cada um de nós. Uma maneira hábil de a seita se informar sobre os eventuais adeptos  e assim poder preparar o melhor ângulo de ataque.

Os métodos de marketing são subtilmente aplicados: «Custa-lhe aceitar um fracasso?; Acha que está a ser gasto muito dinheiro na Segurança Social?; Acha fácil ser imparcial?; Se invadisse um país, simpatizaria com os objectores de consciência desse país?; A sua voz é bastante variável em vez de calma?»

São 10:30 da manhã quando  acabo de responder a 192 perguntas do questionário. Uma jovem, visivelmente ainda mal desperta, tira-me as folhas das mãos e manda analisá-las. Minutos depois, chama-me ao seu gabinete e comunica-me os resultados.

Sou um tipo «porreiro, estável, calmo, certo, activo, agressivo, responsável causativo, crítico, discordante e retraído.» Em suma, «um elemento aceitável sob condições perfeitas, mas…»

— Como é que cá vieste parar?

— Li o anúncio do Diário de Notícias e, como ando à procura de emprego, dei uma saltada até cá…

— O teu teste até nem está mau… Vejo que não precisas de tratamento. Tens disponibilidade?

— Não tenho nada para fazer o dia inteiro…

— Então, ofereço-te um emprego! Podes ser o nosso ‘PPO’, é uma espécie de Director do Pessoal. És pago à semana…

— E quanto é que vou ganhar?

— Isso, não sei. Mas o dinheiro também não é importante. O ambiente aqui é muito bom. Aqui, trabalha-se sete dias por semana. De segunda a sábado, trabalhas 11 horas por dia, mais duas horas e meia de estudos. Ao domingo só trabalhas nove horas.

— Mas quanto é que vou ganhar?

— Isso depende da tua produtividade… que é calculada segundo uns métodos complicados. O contrato é verbal.

— …

Em função dos resultados do teste a Cientologia  propõe um emprego ou mais frequentemente uma «cura». O tratamento é um sistema terapêutico (com implicações de natureza cósmica e uma justificação mística) intitulado «Dianética». Um método especulativo que pretende diagnosticar doenças mentais e outras, atribuídas a causas mais psicológicas do que bacteriológicas ou biológicas. Hubbard é o primeiro a tentar justificar a qualidade da terapêutica: «Estava cego devido a lesões no nervo óptico, coxo por causa de ferimentos na anca e nas costas e a minha caderneta militar indicava que sofria de incapacidade física permanente.» — conta o «profeta». Apesar de abandonado por toda a gente, conseguiu «recuperar em menos de dois anos».

O homem terá sido, deste modo, o primeiro miraculado de uma técnica que ele próprio descobriu.

Pseudo-teste de personalidade: a Cientologia propõe um emprego ou mais frequentemente uma «cura».

A Cientologia define-se como um «guia espiritual e religioso destinado a tornar as pessoas mais conscientes de si mesmas enquanto seres espirituais.» «Não pretende tratar nem estabelecer diagnósticos para todas as doenças do corpo e da mente, nem se dedica ao ensino ou à prática das artes ou das ciências da Medicina.» Assim, o credo da «Igreja» afirma: «Nós acreditamos que o estudo da mente e a cura de doenças de origem mental não deveriam estar separadas da religião, nem ser toleradas em organizações não-religiosas.»

Os cursos (cujos preços variam entre 1.000 e 132.000$00) têm como finalidade fazer os «doentes» ultrapassar escalões de uma «clarificação» crescente, desembaraçando-os progressivamente dos seus «engrams» (imagens mentais relativas a experiências de dor física; gravação na mente reactiva — o inconsciente — de um acontecimento do passado e até mesmo sensações pré-natais sentidas pelo feto…). Durante as sessões de «clarificação» — também chamadas audições — o auditor ajuda o paciente a descobrir e a suprimir os limites espirituais por ele fixados através de perguntas, de exercícios e de um aparelho que é apresentado como um protótipo denominado «E-METRO», uma maquineta do tempo da avozinha que serve apenas para medir reacções fisiológicas  (Wheatstone machine). As agulhas da máquina movem-se estupidamente da esquerda para a direita pela módica quantia de 31.000$00, a pagar antecipadamente à «Dianética», a tal associação sem fins lucrativos… A qualidade do tratamento é tão boa ou tão má que o ministro britânico da Saúde qualificou, em 1968, os métodos utilizados durante essas audições como «contrários à Sociedade, constituindo um sério risco para todos aqueles que a eles se submetem.»

Os cientologistas só estão oficialmente em Portugal desde 1980 mas já nos frequentam há 16 anos. O «Diário de Notícias» (de 16 de Maio de 1969) alertava para o «mistério» de um barco de nome «Apollo» que navegava nas nossas águas em busca de «milhares de espíritos perturbados à procura de um significado para a Existência.»

Dois anos mais tarde, o mesmo matutino volta a anunciar a presença do iate em Portugal, dessa vez com uma quantidade de gente a bordo: 380 pessoas. E como não há duas sem três, o «mistério» repete-se em Março de 1974, data em que o «Apollo» leva a vários pontos do país «um concerto de jazz para esconder um Ovo de Colombo.» É precisamente nessa altura que que se dá o ataque do Funchal, a pretexto de a tripulação pertencer à CIA. Ora, tal acusação não deixa de ser curiosa. Até aí, Hubbard e «companhia» sempre tinham sido associados ao KGB, como o comprovam relatórios de alguns serviços secretos ocidentais. O próprio filho do «profeta» garante que Hubbard «traiu os Estados Unidos por dinheiro.» Segundo Hubbard Junior «o KGB conseguiu, com a sua ajuda (a do pai) arranjar em plena Guerra Fria os planos de um míssil termo-orientado ocidental. Os soviéticos obtiveram a informação através da audição de um engenheiro membro da Igreja de Cientologia.»

O KGB treinou ainda agentes da HVA (Administração Central das Informações), a espionagem leste-alemã, supostamente membros da seita, para se infiltrarem, via Dinamarca, na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos.

Iate Apollo: as águas turvas da seita.
(Foto: Jorge Santos)

O iate «Apollo» (proibido de entrar, por exemplo, nas águas gregas) é apenas a parte visível do «iceberg» Cientologia. As águas turvas são, de resto, as preferidas da seita.

«A Sétima Vaga já cá está!» — assegura-me Victor Estrela, Director Executivo da seita, muito aborrecido porque me identifica como jornalista, depois de me ter lá visto como simples candidato a um emprego. Jura que «pertencemos todos a uma Geração que pela sétima vez consecutiva ocupa a Terra» antes de insinuar algumas ameaças e de voltar aos seus afazeres. Agradeço a preocupação, sorrio a um jovem apático de negro vestido, que se encontra por lá e saio.

Resta saber como se articulam todos estes conceitos místico-filosóficos com a natureza, o objectivo e o funcionamento real da seita. Uma coisa é certa: a Cientologia foi e continua a ser associada à burla, à lavagem do cérebro e à ruptura com todos os laços afectivos.

O Departamento sueco da Saúde acusou em 1975 a seita de ter exercido «pressões intoleráveis» e «chantagem económica» sobre os seus membros. Os cientologistas fizeram alguns adeptos assinar reconhecimentos de dívidas (fictícias) para com a «Igreja». Mais recentemente, em Fevereiro de 1978, a Justiça francesa julgou quatro dirigentes da organização por burla. Ron Hubbard, cujo paradeiro é, hoje, desconhecido, foi um dos condenados. O tribunal francês considerou a «Igreja de Cientologia» como uma associação «dissimulada em empresa comercial bem gerida e em pleno desenvolvimento (…) que pratica pseudo-testes de personalidade efectuados por pessoal sem qualificação e realiza por este meio uma pressão intelectual e moral sobre as pessoas esperançadas num melhor equilíbrio pessoal, num maior sucesso profissional (…) e que obteve de numerosas pessoas a entrega de importantes quantias de dinheiro, extorquindo assim toda ou parte da fortuna alheia.»

A Cientologia muda logo a seguir o nome para «Igreja da Nova Compreensão» e continua a actuar em França. O Relatório Vivien, elaborado pelos serviços secretos franceses e divulgado há poucos dias, considera a Cientologia como uma das nove mais perigosas seitas presentes em França (num total de 120).

Uma grande parte das organizações filosófico-religiosas internacionais (desde «Moon» aos «Meninos de Deus», passando pelos neonazis da «Nova Acrópole») estão em Portugal, mas ainda não há qualquer controlo das suas actividades. E mais: «Ainda não temos nenhuma lista das associações filosófico-religiosas existentes em Portugal porque o fenómeno ainda não é preocupante» — disse à GR um alto funcionário do MAI, aparentemente surpreendido com a formulação de tal pergunta…


Reportagem originalmente publicada na revista GRANDE REPORTAGEM, 26 de Abril a 2 de Maio de 1985 – Lisboa.


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