Contratos públicos de assessoria: só 3 em cada 100 são por concurso público

Assessoria de comunicação: os negócios públicos ao sabor do ajuste directo e do ‘amiguismo’

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por Pedro Almeida Vieira // Julho 4, 2024


Categoria: Exame

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Se um presidente do Tribunal Constitucional acha que pode contratar por ajuste directo uma empersa de comunicação apenas por obra e graça da sugestão de um amigo (neste caso, um antigo presidente do Supermo Tribunal de Justiça), que mal haverá se de entre 1.298 contratos similares, detectados pelo PÁGINA UM, apenas 39 tenham sido sujeitos a prévio concurso público, com concorrência directa? Para quem faz do ‘amiguismo’ e da deslealdade na livre concorrência, uma forma de gestão dos dinheiros públicos, nenhum. Mas para quem acha que o Código dos Contratos Públicos é mais do que um conjunto de regras e princípios para serem contornados com esquemas, então talvez ache que não pode suceder que em cada 100 contratos públicos no sector da comunicação pública haja 97 a serem entregues de ‘mão-beijada’.


João Caupers, o ex-presidente do Tribunal Constitucional que contratou por ajuste directo a agência de comunicação Wonderlevel Partners porque lhe foi sugerida por um antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, conforme relatou uma investigação do Público, constitui o símbolo da decadência do actual regime de contratação pública, onde os princípios da transparência, da livre concorrência e da boa gestão dos recursos públicos são menorizados perante os “amiguismos”, que levam até à corrupção moral e financeira.

Se os casos da contratação da Wonderlevel Partners, de Luís Bernardo – um socialista muito próximo da governação de José Sócrates mas que continuou a manobrar bem nas águas dos Governos Costa –, estão agora na ordem do dia, depois das buscas realizadas esta quinta-feira em vários locais, entre os quais a Câmara de Oeiras, na verdade o mundo das agências de comunicação, algumas integrando consultadoria e outras componentes de marketing, vivem – e muitas bem – através de contratos de ‘mão-beijada’, ou seja, por ajustes directos.

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Em muitos casos, devido aos limites do Código dos Contratos Públicos – que limitam os ajustes directos para este tipo de serviços tanto em montante, como em sequência –, o ‘truque’ passa por lançar – ou simular – uma consulta prévia a outros dois potenciais concorrentes. Em muitos casos, nem sequer existe resposta dos outros dois, não apenas por uma espécie de pacto de não-agressão neste mundo de negócios, mas também por se saber que esse procedimento está ‘viciado’, isto é, serve apenas para legalizar uma escolha já antecipadamente feita.

Uma coisa é certa, conforme constatou uma investigação do PÁGINA UM: encontrar no Portal Base um concurso público para a contratação por uma entidade pública de serviços de comunicação ou de assessoria de imprensa é como apanhar agulha em palheiro. Até porque nem sequer há ‘agulhas’ na cultura das entidades públicas na hora de contratar quem lhes ‘faz’ a imagem.

Num levantamento que envolveu a análise dos contratos públicos de 42 empresas que se dedicam em exclusivo ou sobretudo a serviços de comunicação, constata-se a existência de apenas 39 concursos públicos, no valor de cerca de 3,5 milhões de euros, num universo de 1.298 contratos de todo o género, que envolveram mais de 37,5 milhões de euros. Ou seja, em 100 contratos de comunicação, apenas três são antecedidos por concurso público. Em termos de montante, os concursos públicos representam 9% do total.

Para este ‘desempenho’ mesmo assim destaca-se a Creative Minds, uma empresa que também desenvolve actividade de marketing e consultadoria, e que, por isso, contabiliza 20 contratos por concurso público e ‘apenas’ 43 por ajuste directo e consulta prévia. Se retirarmos essa empresa, só se detectam 19 concursos públicos nas outras 41 empresas, sendo que 29 nunca souberam o que é ganhar um contrato com concorrência a sério.

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De entre todas as empresas, a LPM – fundada por Luís paixão Martins – é aquela que está no topo dos contratos sem concorrência decente. Desde 2008, altura em que começaram a ser registados os contratos no Portal Base, a empresa facturou cerca de 5,7 milhões de euros a entidades públicas, sendo que o período de ouro foi o triénio 2009-2011, ultrapassando mais de 2,3 milhões de euros nesses anos. Quase tudo foi por ajuste directo. Nos anos seguintes decaiu a sua facfuração pública, sobretudo por via da drástica diminuição dos ajustes directos. A partir de 2018, os ajustes directos em cada ano foram já sempre largamente inferiores aos contratos por outros procedimentos, designadamente concurso público, concurso limitado por prévia qualificação e consulta prévia.

O ano 2022 foi para a LPM um ano atípico: mesmo facturando mais de 716 mil euros em contratos público, nenhum dos seis contratos foi por ajuste directo, tendo a maior parte da receita sido obtida através de quatro concursos públicos. No total, a LPM contabiliza cinco contratos após concurso público, num volume de negócios de 516 mil euros, que representam 9% da sua facturação com entidades públicas.

 Em todo o caso, analisando todo o período temporal a partir de 2008, a LPM viveu de ajustes directos nas suas relações com entidades públicas. De um total de 120 contratos, 90 foram por ajuste directo, 21 por consulta prévia, quatro por concurso limitado por prévia qualificação e apenas cinco por concurso público. Neste caso, os contratos através de concursos públicos ocorrerem em 2022 e 2023, sendo que o de maior montante (177.838 euros) foi assinado com a EMEL e terminou recentemente.

Em termos de volume facturação, quase dois terços (63%) do montante dos contratos públicos da LPM foram por ajuste directo (3,6 milhões de euros), sendo que os concursos públicos atingiram um valor de pouco mais de 516 mil euros, o que representa 9% do total.

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A segunda empresa com maior facturação pública é a First Five Consulting, que também estará a ser investigada no processo que envolve Luís Bernardo. Com um crescente domínio no mundo comunicacional, a empresa detida formalmente por Rui Farias, conta com 131 contratos públicos no valor de 4.956,171 euros, Não há um contrato sequer ganho por concurso público. Tudo feito por ajuste directo e consulta prévia, isto é, resolvido por telefone, correio electrónico, reuniões ou outras confraternizações.

A Wonderlevel Partners é a terceira com maior facturação a entidadEs públicas, apesar de nos anos mais recentes ter ultrapassado a LPM. Considerando os contratos a partir de 2012, apenas 315 mil euros numa facturação de quase 3,6 milhões de euros foram provenientes de contratos após  concurso público.  Esse montante corresponde apenas a um concurso público aberto pelo município do Barreiro, tendo sido assinado o contrato em Janeiro do ano passado. O contrato permite, porém, que a edilidade prescinda dos serviços ao fim de cada ano, pelo que apenas está garantida uma verba de 105 mil euros em cada um dos três períodos.

Este é, no entanto, um caso absolutamente excepcional no histórico da Wonderlevel Partners, que conta agora com exactos 100 contratos públicos, sendo que 45 são por ajuste directo e 54 por consulta prévia. No entanto, as relações comerciais contínuas entre a Wonderlevel e certas entidades públicas mostra à evidência que a opção pela consulta prévia, em vez do ajuste directo, não se deve ao interesse em permitir a concorrência ou serviços a preços mais adequados. Mostra ser, sobretudo, um truque para contornar os limites do Código do Contrato Público aos ajustes directos.

Volume de negócios e número de contratos públicos (total e por concurso público) celebrados por empresas de comunicação e assessoria de imprensa. Fonte: Portal Base.

Um exemplo paradigmático – e ainda por cima vindo de uma instituição universitária pública que tem a função de também ensinar o respeito pela transparência e boas práticas de gestão dos dinheiros públicos – passa-se com a Universidade Nova de Lisboa que nos últimos seis anos tem celebrado sucessivos contratos com a empresa de Luís Bernardo, ora por ajuste directo, ora por consulta prévia (para a qual, na generalidade dos casos, os outros convidados nem respondem  por saberem ser uma consulta ‘viciada’, uma espécie de ‘pro forma’).

Em 2018 houve um ajuste directo e uma consulta pública; no ano seguinte dois ajustes directos; em 2020, mais um ajuste directo que ‘obrigou’ a fazer uma consulta prévia em 2022; e a seguir em 2023 houve mais um ajuste directo e duas consulta prévia. Este ano já houve mais uma consulta prévia. Em resumo, em seis anos, a Universidade Nova de Lisboa entrega 10 contratos sem concorrência num montante que já vai em 268.525 euros.

Com contratos públicos acima de um milhão de euros, o PÁGINA UM detectou para além das quatro já referidas (LPM, First Five Consulting, Wonderlevel Partners e Creative Minds), outras cinco: Essência Completa, Mediana, Multicom, YoungNetwork e Unimagem. No conjunto, estas empresas celebraram 301 contratos no valor de quase 7,5 milhões de euros, mas destes somente sete foram por concurso público, que representaram menos de 900 mil euros.

Em empresas de pequena e média dimensão, que desenvolvem em muitos casos uma actividade de regional, nota-se ainda mais a ausência de contratos ganhos em concurso público. Essa situação é demonstrativo de se estar perante empresas que obtêm os contratos por ajuste directo ou consultas prévias por via de relacionamentos pessoais com os gestores públicos, incluindo presidente de autarquias.

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Com efeito, na amostra das 33 empresas com menos de um milhão de ‘facturação pública’, apenas se encontram seis contratos por concurso público num universo de 583. Ou seja, apenas um contrato ganho por concurso público em cada 100. Em termos de montante, esses seis contratos representaram apenas 2,5%.

No caso das empresas com menos de 500 mil euros de ‘facturação pública’, então o ajuste directo (complementado pelas consultas prévias, grande parte das quais simulada) é rei e senhor: em 220 contratos assinados, grande parte dos quais com valores que nunca passam dos 20 mil euros, só se encontra um por concurso público. Aqui é onde as amizades valem literalmente euros… públicos.


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